Mulheres mexicanas estão furiosas, e López-Obrador deveria começar a ouvi-las

Farto da violência, movimento feminista se tornou uma das principais fontes de oposição ao presidente

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Por Denise Dresser

CIDADE DO MÉXICO - O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, é um homem cada vez mais poderoso. À frente do que ele chama de "Quarta Transformação" do país, ele destruiu pesos e contrapesos, enfraqueceu instituições autônomas e assumiu o controle discricionário do orçamento. 

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AMLO, como o presidente é amplamente conhecido, parece ter a intenção de trazer o México de volta a uma era de domínio de um único partido e, na ausência de uma oposição coesa, seu sonho de controle centralizado e desobstruído ainda pode se tornar realidade. Graças em parte à corrupção e à crueldade de seus antecessores, López Obrador continua popular apesar da má gestão em resposta à covid-19 e de uma queda esperada no PIB este ano de cerca de 10%.

No entanto, há uma força que pegou López Obrador de surpresa - e ameaça descarrilar seus planos e prejudicar sua reputação. Frustradas com a falta de resposta do governo a uma pandemia de violência contra as mulheres, que só piorou nos últimos anos, as feministas mexicanas se tornaram a única verdadeira pedra no sapato de AMLO: um movimento político singular que ele parece não entender, não pode controlar e não será capaz de reprimir.

As mulheres no México estão com raiva, e com razão. Dez mulheres morrem em média a cada dia como resultado da violência, com 1.932 vítimas só no ano passado, um aumento de 4,9% em relação a 2018. Todos os anos, mais de 11 mil meninas entre 10 e 14 anos engravidam, a maioria como resultado de abuso sexual, e 15% das mulheres presas pelas autoridades relatam ter sido estupradas enquanto estavam sob custódia. 

Nos últimos quatro anos, o feminicídio aumentou 111%. E os lockdowns por conta da covid-19 pioram as coisas. As mulheres agora estão frequentemente confinadas com seus agressores, levando a um aumento sem precedentes nas ligações relacionadas à violência doméstica para a emergência. Em suma, ser mulher no México significa viver em um estado de medo perpétuo.

Membros de coletivo feminista confrontam policiais durante protesto a favor do aborto na cidade do México Foto: Carlos Jasso/REUTERS

A frustração de longa data das mulheres com a passividade e negligência do governo - que precede López Obrador - tem sido exacerbada por um presidente que parece insensível e até mesmo desdenhoso das demandas delas, incluindo apelos para legalizar o aborto em nível nacional. AMLO saúda ostensivamente a esquerda e as feministas deveriam ser suas aliadas naturais. 

Mas, em vez de demonstrar empatia e sensibilidade, ele respondeu com desprezo e ridicularização aos protestos das mulheres nas ruas da Cidade do México e em outros lugares. Em sua opinião, as feministas não são condutoras independentes de um movimento social legítimo, mas fantoches conservadores manipulados por seus adversários políticos. Produto de seu próprio conservadorismo social e visão de mundo inspirada na religião, AMLO vê as mulheres pelas lentes de um suposto passado no qual elas mantiveram seu lugar “adequado”: cuidar dos filhos, cuidar dos pais idosos, manter a família intacta.

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As visões patriarcais e paternalistas de AMLO não seriam tão prejudiciais se não fosse pelo fato de que suas políticas e compromisso com a austeridade têm sido prejudiciais também para as mulheres. Apesar de manter a promessa de paridade de gênero em seu Gabinete, seu governo tem fechado creches subsidiadas publicamente, eliminado abrigos para vítimas de violência doméstica, cortado fundos do Instituto Nacional da Mulher e de muitos programas nacionais de gênero que protegiam as mulheres, especialmente em comunidades indígenas. 

Conforme a violência segue de forma persistente, as mulheres que suportam o peso dessas decisões se juntam às filas daqueles que estão decepcionados com um governo que fez promessas progressistas, mas tem agido com instintos conservadores.

O fracasso de AMLO em abraçar as causas das mulheres pode voltar para assombrá-lo, à medida que mais mulheres vão às ruas e desafiam sua falta de liderança antes das eleições intermediárias de 2021. Feministas não são o animal político com o qual ele está acostumado e sabe como lidar. 

Elas não podem ser compradas, cooptadas ou apaziguadas por acordos que AMLO recorre com sindicatos e outros movimentos sociais. A solidariedade das mulheres tende a transcender as divisões de classe, filiações partidárias e posturas ideológicas. Isso torna mais difícil para López Obrador dividir e conquistar, como tem efetivamente feito com outras organizações da sociedade civil.

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E enquanto AMLO pode facilmente desacreditar os líderes da oposição como “moralmente derrotados” e “neoliberais” como resultado de suas travessuras do passado, mulheres furiosas não são tão facilmente ignoradas. Entre aquelas que marcham, gritam, pintam monumentos históricos com spray, desfiguram prédios públicos, ocupam o escritório central da Comissão de Direitos Humanos do México e, em geral, exigem mudanças, estão as mães de mais de 65 mil "desaparecidos" no México. 

A autoridade moral delas está acima de qualquer reprovação e está fora do alcance das tradicionais táticas de difamação que o presidente usa contra seus adversários políticos. Até os esforços da prefeita da Cidade do México, Claudia Sheinbaum, para retratar as manifestantes feministas como "vândalas" e conter marchas femininas com o uso de força e gás lacrimogêneo, saiu pela culatra.

Hoje, as feministas mexicanas estão com mais energia e mais combativas do que nunca, e buscam reformular o debate público a seu favor. Elas são unidas em todo o espectro político por uma causa comum: o desejo de substituir a repressão governamental por ações governamentais e políticas específicas destinadas a proteger as mulheres de seus predadores. E elas não estão sozinhas. Em todo o mundo, o movimento #MeToo está enfrentando políticos tradicionais e se recusando a permanecer em silêncio.

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Diante de um movimento que não vai embora, AMLO ainda parece incapaz de entender do que se trata. Ele ressalta repetidamente que é um "humanista, não um feminista". Para muitas mulheres - especialmente aquelas de uma geração mais jovem - a postura de AMLO é a de um tio idoso, distante da realidade da vida delas, onde a misoginia, o machismo, a violência e a discriminação abundam.

Além disso, elas estão lutando por direitos iguais cara a cara com um presidente que está focado em construir uma clientela em vez de empoderar os cidadãos. A visão de igualdade de López Obrador não se baseia em uma cultura de direitos, mas em uma visão de generosidade do Estado, centrada na distribuição de apoio por meio de programas sociais. A única política social válida é aquela que ele dita de cima, enquanto ignora as demandas que vêm de baixo. Seus esforços para marginalizar e desacreditar as feministas fazem parte de um padrão mais amplo de deslegitimação da sociedade civil em geral. Organizações autônomas não são aliadas a serem cortejadas, mas adversárias a serem criticadas.

Muitas mulheres mexicanas, portanto, acreditam que não têm nada a perder, e isso as torna oponentes ainda mais perigosas. Elas lutam por suas vidas em um país onde tantas acabam espancadas, mortas, estupradas por seus parceiros, em uma lista de desaparecidos, seus corpos são abandonados em canais, rios e estradas de terra. 

O que as mulheres gritam para López Obrador quando vão às ruas é que sua chamada Quarta Transformação deve ser feminista ou não acontecerá de maneira alguma. Elas são sujeitos de uma narrativa diferente, democrática e autenticamente popular. E AMLO as ignora por sua conta e risco. /TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA* ANALISTA POLÍTICA, ESCRITORA E ATIVISTA MEXICANA