BRASÍLIA - O presidente da França, Emmanuel Macron, virá duas vezes ao Brasil no ano que vem, afirma o novo embaixador do país em Brasília, Emmanuel Lenain. Um dos principais líderes políticos da Europa, Macron finalmente cumprirá a promessa de realizar uma visita de Estado ao País, a convite do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no início de 2024. Depois, voltará ao Rio em novembro para a cúpula do G-20.
Em entrevista exclusiva ao Estadão, a primeira concedida no País, o novo embaixador francês diz que Lula e Macron compartilham uma visão comum sobre o mundo e tentam desempenhar a diplomacia presidencial de forma semelhante - e às vezes incompreendida, ele observa. Para Lenain, ambos buscam exercer o papel de “ponte” em um mundo cada vez mais parecido com o cenário da Guerra Fria.
“O papel da França no mundo é ser uma ‘potência do equilíbrio’. Quer dizer, tentar conversar com todos. Algumas vezes não somos plenamente compreendidos. Sabemos que o Brasil, com o presidente Lula, compartilha do mesmo espírito”, disse Lenain, em seu gabinete na embaixada francesa.
Antes de desembarcar em Brasília, Emmanuel Lenain, de 53 anos, serviu como embaixador em Nova Délhi, na Índia, como cônsul-geral em Xangai, na China. Ele é diplomata de carreira desde 1997. Atuou no Conselho de Segurança das Nações Unidas, em Nova York, e foi encarregado de mediações de paz para Kosovo. Também trabalhou nas embaixadas francesas em Pequim, na China, e Washington, nos Estados Unidos.
A seguir, trechos da entrevista:
O presidente Macron frustrou a expectativa, algumas vezes, de visitar o Brasil. Ele virá?
O presidente Macron está muito entusiasmado com o Brasil. Eu participei do encontro entre os presidentes em Nova Délhi e pude ver como eles se entendem bem, como foi caloroso. Macron disse que viria ao Brasil, mas ele virá duas vezes. Ele vem ao G-20, em 18 e 19 de novembro de 2024, mas ele acha importante dedicar uma viagem específica ao Brasil para tratar de assuntos bilaterais, de temas que ele deseja impulsionar. Será no início do ano que vem, no primeiro semestre. A data ainda não foi fechada.
Qual a agenda de Macron?
Temos discussões políticas importantes que precisam feitas em alto nível, porque o Brasil está no comando do G-20 e estará na direção da COP-30, estava na presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Temos visões de mundo muito próximas. É importante que nossos líderes possam trocar essas informações e chegar na mesma página para essas reuniões futuras. Apoiamos totalmente as prioridades do Brasil para o G-20. Temos trabalhado juntos na redução da pobreza, na luta contra a fome e contra a mudança climática, pela preservação da biodiversidade, por muitos anos. O Brasil tem sido muito inteligente na forma de construir a agenda, com objetivos e metas concretas. Sabemos que a comunidade internacional está dividida, então é importante assegurar que possamos alcançá-las.
A divisão global é um desafio.
Os nossos dois presidentes têm algo em comum: eles sentem que o mundo está muito fragmentado. Estamos vivendo num mundo perigoso. Temos crises de segurança, tivemos e podemos ter de novo uma crise de saúde. Temos a crise climática. Precisamos de toda a comunidade internacional para resolvê-las. Os dois presidentes sentem que devem servir como pontes entre os países, que devem ajudar a criar alguma unidade para sermos capazes de enfrentar esses desafios. E eles têm a mesma visão sobre como deveria ser. Ambos os países são muito apegados ao multilateralismo, queremos vê-lo funcionando. Apoiamos fortemente, há muitos anos, a entrada do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O órgão precisa refletir o equilíbrio de poderes atual, e o Brasil precisa estar lá. O mundo deve ser regido pelo direito internacional, tanto quanto possível. Por isso Macron tem sido tão vocal sobre a guerra na Ucrânia.
Qual é o lugar e o papel da França no mundo tão polarizado, com guerras e uma rivalidade crescente entre China e EUA?
O mundo está perigoso, divido, mas é uma completa surpresa, na verdade. Ao fim da Guerra Fria, pensávamos que os valores liberais estavam avançando e que o mundo estava se convertendo à democracia. Não foi assim. O mundo está voltando ao passado, ao que foi por séculos, com rivalidades intensas, países competindo por poder, por territórios... É muito importante que possamos unir esforços contra a fragmentação entre países em desenvolvimento e desenvolvidos, entre o Sul Global e o Norte.
O papel da França no mundo é ser uma ‘potência do equilíbrio’. Quer dizer, tentar conversar com todos. Insistimos muito nisso e algumas vezes não somos plenamente compreendidos por nossos parceiros. No começo da guerra na Ucrânia, Macron tomou um avião e foi conversar com Putin. Ele pensa que precisamos manter os canais abertos para discussão. Conversar apenas com amigos pode ser legal e agradável, mas não resolve os problemas. O dever da diplomacia é conversar com os inimigos e adversários, eliminar diferenças e encontrar soluções. Sabemos que o Brasil, com o presidente Lula, compartilha do mesmo espírito. O Brasil tem sido mediador da paz. É muito importante que um país seja capaz de construir pontes entre países do Brics e desenvolvidos. Seu país tem uma posição única para fazer isso.
A França foi muito proeminente, em 2003, no Conselho de Segurança da ONU ao se opor à invasão do Iraque pelos EUA. Mas não liderou agora na guerra entre Israel e Hamas. Por quê?
Eu servia em Nova York, em 2003, e estava envolvido nas negociações. Foi muito duro. Sabíamos desde cedo que a guerra no Iraque não era legítima. Nossa inteligência dizia que não havia armas de destruição em massa no Iraque, e sabíamos que os norte-americanos iriam à guerra com outros propósitos, e a operação não estava fundamentada no direito internacional.
Em Gaza, apoiamos plenamente a resolução apresentada pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU. Era uma boa proposta, focava no acesso humanitário e lembrava dos nossos princípios, então até pedimos apoio a nossos parceiros. E foi vetada pelos EUA. Já havia propostas suficientes em discussão, da Rússia e outras. Nós somos um dos países que mais apresentam resoluções, e dessa vez apoiamos a liderança do Brasil. Não havia razão para submetermos um texto diferente e competir.
No início do mês, o ex-chanceler Celso Amorim, enviado por Lula, repetiu o que o presidente já havia dito e afirmou que um genocídio ocorre em Gaza. É uma palavra forte, que a França não usa, por exemplo. É a mais apropriada para descrever a guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas?
É uma palavra forte, sem dúvida. Não cabe a mim comentar (se é a palavra correta). Há um critério específico para considerar genocídio e cabe à Justiça Internacional um dia decidir. A palavra genocídio nos traz memórias muito sombrias, na Europa, e somos sempre muito conscientes ao mencionar. Tenho certeza que Amorim tinha o apoio e a confiança do presidente.
Evidentemente, estamos muito preocupados com a situação e apoiamos 100% o direito de Israel de existir e de se defender. Porém, também achamos que cada ação deve proporcional e seguir o direito internacional. E também deve haver abertura para uma solução política, porque ao fim das contas é a única saída. A poiamos a solução da coexistência de dois Estados. Ficamos muitos desmoralizados por causa das mortes de civis, por causa da operação, e também pelo comportamento do Hamas. O Hamas não é a Palestina. O Hamas é um grupo terrorista.
O presidente Macron também mostrou muita preocupação recentemente, dizendo que Israel deveria parar de matar mulheres e bebês. Por que agora?
Porque a situação está se deteriorando.
A França tem a terceira maior comunidade judaica do mundo. Macron está sendo ouvido pelos líderes israelenses?
Espero que sim. Somos um país cheio de diversidade, temos a maior comunidade judaica da Europa, talvez a maior comunidade muçulmana e budista. É muito difícil porque as autoridades de Israel querem erradicar o Hamas e ninguém consegue contestar a ideia de que o Hamas deve ser eliminado do cenário político em Gaza. Para nós, o Hamas não representa todos os palestinos.
Houve protestos em Paris de viés antissemita, manifestações contra o antissemitismo e discurso de ódio e ameaças de bombas em escolas. Como a guerra está mudando a situação interna nos países europeus e afetando a segurança?
Globalmente, está despertando a raiva em vários países, no mundo árabe, com tensões. Na França, como somos uma sociedade muito diversa, está havendo um debate interno, assim como no Brasil. Soube que existe aqui uma grande comunidade judaica e cerca de 10 a 12 milhões de pessoas de origem libanesa, o que é enorme.
A guerra em Gaza e Israel tirou os holofotes da guerra na Ucrânia. Isso não dificulta os pedidos de ajuda de Zelenski?
Não é verdade. A Ucrânia continua totalmente na nossa cabeça, nossos compromissos estão intactos. Não é porque temos uma crise em Gaza que vamos esquecer da Ucrânia.
Um general ucraniano reconheceu que existe um impasse na contraofensiva. E continuam a pedir apoio.
Eles estão conseguindo algum progresso. A defesa se fortificou. Tem sido difícil, mas os ucranianos vem sendo impressionantes. Em Moscou todos apostavam que em três ou quatros semanas chegariam a Kiev, mas a resistência ucraniana foi incrível. Talvez estejamos surpresos em ver que o Exército russo, que pensávamos ser muito poderoso e bem equipado, como vimos na Síria, quando confrontado com uma guerra intensa, não se saiu como o esperado. Não podemos esperar que os ucranianos consigam recuperar o território em uma noite.
O cenário pode mudar com os caças?
Vão ajudar, são F-16. A Rússia, que é a responsável por essa agressão que condenamos, é uma potência nuclear. É complicado dar um fim a essas agressões.
Houve um acordo político na Venezuela, mas o regime de Nicolás Maduro não reconheceu a escolha da candidata opositora María Corina Machado. O acordo é confiável? Lula deveria mudar sua forma tão suave de lidar com o aliado Maduro? Não é um risco dar apoio a Maduro, os EUA levantarem sanções, melhorar a economia, e ele desrespeitar o acordo?
É comum, quando estamos numa situação complicada, dividir os caminhos. Nunca sabemos se vai funcionar. O que precisamos é ter parâmetros de referência claros, checar a cada estágio se todos se todos cumpriram seus compromissos. É evidente que a França será muito rigorosa, respeitosa e impulsionará o processo democrático. O acordo foi um bom processo. Ocorreu por meio do Fórum de Paz de Paris, ano passado, e foi muito positivo. O presidente Lula foi muito útil ao estender a mão a Maduro.
A França é vista como obstáculo e Macron já manifestou dificuldades políticas ligadas ao agronegócio para conclusão do Acordo Mercosul-UE. Agora há o fator Javier Milei na Argentina. As preocupações francesas estão resolvidas para que seja concluído até o começo de dezembro?
A questão central do debate atual, há apenas alguns dias da abertura da COP-28 em Dubai, é como concluir o acordo de livre comércio de forma que contemple as preocupações que todos nós compartilhamos sobre a proteção ambiental. Não haverá estabilidade ou prosperidade comercial em um mundo com 2°C a mais. É por isso que a União Europeia quer que esse acordo inclua garantias de que nossos compromissos com o clima e a biodiversidade, bem como com os direitos dos trabalhadores, serão respeitados.
Não há obstáculos por parte de nenhum Estado-Membro, mas sim condições estabelecidas pela União Europeia para a conclusão desse acordo. A França apoia o mandato dado à Comissão Europeia para conduzir negociações e os presidentes Lula e Macron conversaram sobre o assunto em várias ocasiões. No entanto, você deve ter notado que vários parlamentos na Europa, incluindo o parlamento francês, expressaram fortes preocupações sobre as condições de produção no Mercosul. Essa é uma questão política altamente sensível.
Quais são as expectativas da França para o G-20 no Brasil?
O papel do G-20 é solucionar desafios globais, como a urgência da mudança climática, a reforma do sistema multilateral e a luta contra a pobreza, a segurança alimentar. Queremos ajudar em parte de agenda. Nós nos comprometemos em junho durante a Cúpula do Novo Pacto Financeiro Global em prover mais dinheiro para lutar contra a mudança climática. Muitos países do Sul Global estão reclamando, com razão, que os US$ 100 bilhões prometidos nunca chegaram. A França está muito confortável porque está além do objetivo, mas é claro que se precisamos atingir o objetivo e talvez ultrapassá-lo precisamos continuar nesse caminho. O dinheiro não virá somente de governos, precisamos trazer uma coalização de atores privados, mobilizar os bancos privados para realocar prioridades ao clima e desenvolvimento.
O senhor esteve na Amazônia pela primeira vez. O que reportou a Paris?
Acabo de voltar de Manaus nessa grande seca. Com o El Ñino e o aquecimento global, o mundo não vai ficar cada vez mais seco, mas os eventos serão mais extremos. A temporada seca será mais seca do que nunca, e as cheias serão as mais altas da história. A vida se tornará muito mais difícil. Há lugares que ficarão inacessíveis. É um grande problema. Temos que trabalhar mais. Um objetivo é aumentar a capacidade do Brasil de controlar as queimadas, que também temos na França. Podemos compartilhar equipamento, experiência, como organizamos nossos bombeiros, helicópteros, aviões... Como preservar a floresta é uma decisão do Brasil, é território brasileiro. Mas como podemos ajudar? Não acredito muito em somente dar dinheiro para as pessoas pararem de derrubar árvores. Só vai funcionar se as pessoas tiverem um modo de vida sustentável, com qualidade razoável. Estamos disponibilizando nossa experiência e modos de financiamento a projetos que possam apontar caminhos que funcionam. Há muito tempo preferimos financiar programas na Amazônia sobre como cultivar de forma responsável, como comercializar e beneficiar sem precisar desmatar, sem usar muita área. Esses são desafios.
A ministra das Relações Exteriores, Catherine Colonna, falou em fevereiro sobre a possibilidade de doar recursos ao Fundo Amazônia. Por que tem demorado tanto?
Acho que ela não se comprometeu com a doação. Talvez doemos dinheiro. O Fundo Amazônia funciona. Não descarto que iremos doar ao Fundo Amazônia, mas nada foi decidido ainda. Hoje a forma como atuamos na conservação florestal é tentar apoiar programas sob medida. Na Cúpula Florestal de Libreville (Gabão), em março, lançamos a ideia dos pacotes de conservação e assinamos um imediatamente com Papua Nova Guiné. Essa é a abordagem.
Por que a França deseja agora fazer parte da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA)?
Sentimos que somos um país da região, com a Guiana Francesa, e temos múltiplas questões a resolver com vizinhos, como tráfico ilegal, ouro, grupos criminosos, meio ambiente, poluição. Achamos que é importante ser parte da organização e dar apoio máximo. Já trabalhamos com a organização há algum tempo. É hora de entrarmos na OTCA.
Em 2025, haverá a celebração do Ano do Brasil na França e do Ano da França no Brasil. Como estão as preparações?
Estamos escolhendo os comissários, as pessoas responsáveis pela organização dos eventos nos países. Teremos eventos culturais, cinema, ciência, música, literatura, em diversas cidades, o que desperta muito interesse. Fui ao museu aqui e vi um público muito jovem. Claro que muita gente não tem acesso ainda, mas a maioria é de graça e as pessoas podem ir. Os museus na França podem intimidar.
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