Mundo vive a ameaça da recessão global do Estado de Direito; leia coluna de Moisés Naím

Pode-se viver num país onde o governo é escolhido por eleições, mas se esse governo viola repetidamente os limites do seu poder, é corrupto e transgride os direitos fundamentais dos indivíduos dificilmente pode-se dizer que se vive em liberdade

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colunista convidado
Foto do author Moisés Naim

Com a democracia recuando em muitas partes do mundo, muito tem se falado sobre o mundo viver uma “recessão democrática”. Mas há outra recessão oculta, que anda de mãos dadas com a primeira mas a supera: a recessão global do estado de direito.

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O que é o estado de direito? Uma série de instituições que garantem que a sociedade funcione com base em regras explícitas e aplicadas com imparcialidade. O conceito abrange muitas coisas: limites ao poder governamental, corrupção contida, decisões governamentais transparentes, proteção dos direitos civis fundamentais, ordem pública e segurança dos cidadãos, cumprimento de regras e regulamentos e, em geral, o bom funcionamento da Justiça.

A democracia sem o estado de direito é vazia. Pode-se viver num país onde o governo é escolhido por eleições, mas se esse governo viola repetidamente os limites do seu poder, é corrupto, opaco e transgride os direitos fundamentais dos indivíduos dificilmente pode-se dizer que se vive em liberdade. Onde não há ordem, os regulamentos não são seguidos e os tribunais são fraudados, é de pouca utilidade realizar eleições a cada poucos anos.

Guatemaltecos protestam em apoio a democracia e ao Estado de direito após a eleição de Bernardo Arevalo Foto: Cristina Chiquin/Reuters

Daí a seriedade do enorme estudo que acaba de ser publicado e está resumido no Índice de Estado de Direito do World Justice Project, citando percepções e experiências sobre o estado de direito em 142 países com base em pesquisas realizadas em cerca de 149 mil lares e mais de 3,4 mil especialistas.

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O que as sondagens constatam é preocupante. O estado de direito está em declínio. “Nossos dados mostram que, no último ano, o estado de direito piorou em 82 países, ou 59% dos países incluídos no índice”, afirma Daniela Barba, pesquisadora do WJP. “Na América Latina e no Caribe, vemos que 18 dos 32 países da região experimentaram uma degradação do estado de direito”, acrescenta.

E esses dados não são isolados. Essa degradação é um fenômeno global. Pelo sexto ano consecutivo há mais países registrando resultados piores do que melhorando.

Tunisianos protestam contra o governo em 2011, em meio a chamada primavera árabe  Foto: Holly Pickett/ NYT

Ninguém se surpreenderá ao perceber que os países do mundo em que o estado de direito é mais forte são os que proporcionam uma excelente qualidade de vida aos seus cidadãos: a Escandinávia destaca-se, com a Dinamarca, a Noruega, a Finlândia e a Suécia ocupando as quatro primeiras posições no índice; e países como Alemanha, Nova Zelândia, Holanda e Irlanda também ocupam os dez primeiros lugares.

No outro extremo, temos uma série de países devastados por conflitos e corrupção: Camarões, Egito, Nicarágua, Haiti e Camboja estão entre os dez piores do mundo, mas todos alcançam uma pontuação melhor que a da minha amada e malfadada Venezuela, que aparece em último lugar no ranking mundial por não ter limites ao poder do governo nem tribunais que funcionem minimamente.

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Na América Latina, Uruguai, Costa Rica e Chile lideram o índice, todos situando-se acima de 60% da pontuação ideal. (A Dinamarca atinge 90%.) Mas os números estão baixando em quase toda a região: Nicarágua, El Salvador, Equador e México registraram declínios acentuados na força do estado de direito este ano. Honduras apresenta a maior melhora na região, embora sua pontuação ainda suba apenas para 41% da pontuação ideal.

Estado de direito não é o mesmo que democracia e não se pode confundir as duas coisas. Existem países como Cingapura, onde é quase impossível mudar de governo por meio do voto mas onde há sim estado de direito — e efetivamente Cingapura fica no 17.º lugar do índice global, à frente até de democracias consolidadas como França, Espanha e Estados Unidos.

Mas Cingapura é a exceção. São muito mais comuns os casos em que, pouco a pouco, primeiro se perde o estado de direito e depois a democracia, que já não tem como se defender e entra em colapso. É por isso que a tendência sustentada ao longo do tempo, confirmada pelo World Justice Project, é tão preocupante. Porque à medida que o estado de direito deixa de vigorar em cada vez mais países, suas democracias tornam-se cada vez mais fracas e mais vulneráveis.

Casos como o da Argentina, que passou do 46.º lugar no ranking mundial em 2019 para o 63.º este ano, são muito preocupantes. O mesmo vale para a Colômbia, que caiu da 71.ª posição para a 94.ª em 7 anos; para o Peru, que passou da 60.ª posição para a 88.ª, e para o México, que caiu da 79.ª posição para a 116.ª. Em cada um desses países a erosão das bases institucionais da democracia tem sido gradual e imperceptível. Mas suas consequências a longo prazo são incalculáveis.

E talvez seja por isso que países em democratização se tornaram tão raros nos últimos anos. Porque percorrer o caminho da democracia onde o estado de direito não vigora é muito mais difícil que onde o cumprimento das regras já é um hábito estabelecido. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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