Quando o aristocrata britânico conhecido como lorde Elgin navegou voltando da Grécia no início do século 19, ele trouxe à Inglaterra alguns dos maiores tesouros da Antiguidade: uma coleção que incluía estátuas de deuses gregos e painéis entalhados que retratavam centauros que haviam decotado o Partenon, em Atenas.
Em certos casos arrancados das paredes do templo, ostensivamente com a permissão dos otomanos, que governavam a Grécia na época, os chamados Mármores de Elgin foram vendidos posteriormente para o governo britânico e se colocaram entre os artefatos mais célebres na coleção do Museu Britânico.
Mas também se tornaram, quase a partir do mesmo dia em que foram removidos, objetos da disputa cultural provavelmente mais notória do mundo.
Desde os dias de lorde Byron, o poeta romântico que foi um dos primeiros críticos à remoção, o destino dos mármores tem sido contestado amargamente. Os britânicos afirmam que os mármores foram adquiridos legalmente e são exibidos mais apropriadamente ao lado de outros artefatos, em um museu universal, enquanto os gregos os consideram tesouros roubados que constituem a fundação de sua herança nacional.
O debate se aprofundou nos anos recentes, conforme ações de antigos impérios recaem sob novo escrutínio e batalhas por restituições passam a desafiar as fundações dos museus ocidentais. A pressão para a devolução dos mármores cresce à medida que museus devolvem itens importantes, como os Bronzes do Benin, antiguidades italianas e outros fragmentos do Partenon que foram cedidos pelo Vaticano no mês passado.
Agora há sinais que dão esperança de que talvez a resolução entre o Museu Britânico e a Grécia possa estar à vista, conforme autoridades de ambos os lados reconhecem que negociações secretas ocorreram. Mas mesmo enquanto essas revelações florescem em otimismo de que um progresso verdadeiro logo será alcançado, ambos os lados deixam claro que ainda não estão na iminência de nenhum acordo.
Geopolítica da arte
Divergências na negociação
Na verdade, grandes diferenças persistem entre as partes em relação a algumas questões cruciais.
As negociações têm ocorrido em Londres desde novembro de 2021, entre o primeiro-ministro da Grécia, Kyriakos Mitsotakis, e George Osborne, ex-ministro das Finanças do Reino Unido e atual presidente do Museu Britânico. Em meio à privacidade de hotéis luxuosos e da residência do embaixador grego, as partes têm tentado alcançar um acordo a respeito do futuro dos mármores, segundo duas pessoas com conhecimento a respeito das negociações que preferem o anonimato para relatar conversas confidenciais. Uma das fontes conhecia a posição grega; outra, a do Museu Britânico.
Em várias dessas reuniões, Giorgos Gerapetritis, um ministro que não possui pasta específica no governo grego, agiu como representante de Mitsotakis, de acordo com ambas as fontes.
O sucesso das conversas, porém, tem sido tema de grande especulação. Uma reportagem publicada mês passado no jornal grego Ta Nea, que revelou a existência das negociações, afirmou que elas estavam “90%”completas, citando fontes gregas “bem colocadas”. A Bloomberg noticiou anteriormente este mês que as partes estavam “se aproximando” de um acordo, e outros relatos otimistas se seguiram em outros veículos. Segundo a proposta discutida, afirmou a reportagem da Bloomberg, alguns dos monumentos voltariam para Atenas temporariamente em troca de outros tesouros ancestrais.
Mas o acordo definitivo permanece muito mais distante do que essas reportagens sugerem, afirmaram as duas pessoas com conhecimento a respeito das negociações que conversaram com o New York Times. E, de fato, nos dias recentes, autoridades de ambos os lados falaram publicamente em pisar nos freios em relação às crescentes expectativas de que qualquer acordo seja iminente.
De sua parte, Mitsotakis pediu para o Museu Britânico devolver toda a coleção de mármores, cerca de 76 metros de pedra entalhada que envolvia o Partenon, afirmou a fonte ciente da posição grega. Mitsotakis queria um acordo estabelecendo que esses painéis ficassem na Grécia pelo menos 20 anos, acrescentou a fonte. Lá, as peças seriam reunidas com outros painéis entalhados já em exibição no Museu da Acrópole, em Atenas.
A fonte afirmou que Mitsotakis espera que, após 20 anos, o acordo seja estendido e os painéis entalhados permaneçam em Atenas.
O lado grego espera negociar a devolução das esculturas remanescentes em uma data posterior, afirmou a fonte ciente sobre sua posição. Em troca, museus gregos forneceriam ao Museu Britânico uma seleção rotativa de artefatos inestimáveis, acrescentou a fonte, alguns dos quais nunca saíram da Grécia.
Relembre a disputa entre Grécia e Reino Unido
O Museu Britânico quer um acordo diferente, segundo a pessoa que conhece a posição da instituição. Até aqui, Osborne sugeriu devolver uma porção menor das obras, assim como entalhes de deuses e centauros, como um empréstimo a curto prazo, afirmou a fonte. O museu poderia oferecer até um terço dos artefatos do Partenon em sua coleção, acrescentou a fonte.
Quando a Grécia devolvesse esses artefatos a Londres, outros itens seriam mandados a Atenas para substituí-los, afirmou a fonte. Com o tempo, o número de artefatos enviados à Grécia aumentaria para refletir a crescente confiança entre as partes, acrescentou a fonte.
Impedimentos da lei britânica
A visão do Museu Britânico é que a instituição não pode oferecer mais, mesmo se quiser, afirmou a fonte ciente sobre sua posição. Sob a lei britânica, o museu não pode remover itens de sua coleção a não ser que eles sejam “impróprios para retenção”, mas é livre para emprestar objetos para outros entes. O museu argumenta que o lorde Elgin (cujo nome é pronunciado com um “g” forte, como em Helga) adquiriu os artefatos legalmente, após administradores do Império Otomano, que governava Atenas na época, lhe concederem uma permissão. O museu também insiste que as esculturas são apresentadas mais apropriadamente entre as coleções globais da instituição, para que contem parte de uma história maior sobre a civilização humana.
Qualquer acordo com o governo grego que não incluir uma provisão declarando que os mármores devem retornar para Londres poderá ser contestado nos tribunais britânicos. Mas qualquer acordo seria escrito de maneira a não requerer que a Grécia desistisse de sua reivindicação de propriedade sobre os artefatos, afirmou a fonte ciente da posição do museu.
O Museu Britânico recusou-se a comentar as negociações, mas um porta-voz da instituição reconheceu, por e-mail, que elas ocorrem. “Estamos buscando ativamente uma nova parceria sobre o Partenon com nossos amigos na Grécia e, conforme adentramos o novo ano, discussões construtivas ocorrerão”, afirmou o porta-voz.
Com uma oferta formal e uma contraoferta na mesa, as negociações chegaram a um estágio “jamais visto anteriormente”, afirmou a fonte do lado grego. Ambas as partes estão “negociando de boa-fé”, acrescentou a fonte, mas não esperam mais progresso até que a Grécia realize eleições parlamentares este ano.
Enquanto isso, cresce a pressão sobre o Museu Britânico. No ano passado, a Itália devolveu um fragmento do Partenon que ficou mais de 200 anos em exibição em um museu na Sicília. E em dezembro o Vaticano anunciou que daria três fragmentos do Partenon para o líder da Igreja Ortodoxa Grega, que, espera-se, os repassará para o Museu da Acrópole.
Fora de compasso com outras instituições
Outras grandes coleções do Ocidente, incluindo da Smithsonian Institution e do Humboldt Forum, em Berlim, devolveram recentemente importantes obras de arte em disputa, e o Museu Britânico parece cada dia mais fora de compasso. Assim como os artefatos do Partenon, a instituição mantém uma extensa coleção de Bronzes do Benin, reivindicados pela Nigéria; a Pedra de Roseta, que alguns arqueólogos querem que seja devolvida ao Egito; e uma estátua da Ilha de Páscoa que seu povo originário, rapa nui, pede de volta.
Este ano, o Museu Britânico tem previsto o anúncio de uma grande reforma, incluindo melhorias no telhado e no sistema de aquecimento, que poderá resultar no fechamento de algumas galerias por longos períodos. O projeto deverá custar 1 bilhão de libras (em torno de US$ 1,2 bilhão), de acordo com reportagem do Financial Times.
Leslie Ramos, fundadora e diretora da Arteater, uma agência que presta consultoria a museus sobre arrecadação de fundos, afirmou em entrevista que possíveis doadores para a reforma “podem querer ter uma ideia específica” a respeito do que o Museu Britânico pretende fazer em relação aos artefatos do Partenon antes de decidir contribuir. Para o museu, empreender negociações sobre objetos em disputa seria “uma maneira de atrair uma nova geração de filantropos”, acrescentou ela.
Além das ofertas divergentes entre os dois campos, existe um outro grande obstáculo: a aprovação de legisladores britânicos e gregos a um eventual acordo. O governo britânico afirmou no ano passado que não planeja mudar a lei para permitir a devolução dos mármores. Na quarta-feira, a ministra da Cultura do Reino Unido, Michelle Donelan, disse à BBC que devolver os artefatos abriria “uma lata cheia de vermes” e poderia ocasionar demandas por outros itens no museu. “Devolver é um caminho perigoso”, afirmou Donelan.
Também é incerto se a Grécia aceitaria uma “parceria” caso isso implicasse que os mármores pertencem ao Museu Britânico. Sia Anagnostopoulou, legisladora grega do partido Syriza, de oposição, e porta-voz da legenda em relação a cultura, afirmou por e-mail que se opõe a qualquer acordo que não deixe claro que os mármores são propriedade legítima da Grécia e que um empréstimo seria inaceitável.
“É uma questão de dignidade para todos os gregos”, afirmou ela, “como seria para o povo britânico caso lhe fosse pedido que ‘pegasse emprestado’ peças roubadas do Stonehenge”.
Especialistas em direito e administradores de museus de todo o mundo acompanham atentamente a situação. “Se houver algum tipo de acordo, seria um grande símbolo para outros em busca de restituições”, afirmou Alexander Herman, diretor do Instituto de Arte e Direito, em Londres.
Max Hollein, diretor do museu Metropolitan, de Nova York, afirmou por telefone que “toda a questão dos Mármores de Elgin é uma história tão longa e complexa” que qualquer solução “seria um grande passo para as instituições e para o diálogo cultural no mundo”.
O Met chegou recentemente a um acordo com a Grécia prevendo que o museu novaiorquino possa exibir uma coleção de antiguidades cicládicas reunida pelo filantropo Leonard Stern — e reconheça, ao mesmo tempo, que os artefatos pertencem, em última instância, ao Estado grego. Segundo o acordo, os artefatos viajarão entre Estados Unidos e Grécia. Hollein afirmou que o governo grego está aberto para negociar soluções inovadoras no sentido de restabelecer a propriedade do país sobre sua herança cultural ao mesmo tempo que permite a exibição dos itens no exterior.
No Museu Britânico, na semana passada, a galeria onde os mármores são exibidos estava repleta de turistas, muitos tirando selfies diante das estátuas e dos painéis entalhados.
A estudante de arte Dilan Polat, de 20 anos, que copiava o torso musculoso de um centauro entalhado em um dos painéis, afirmou que se sente “realmente sortuda de poder desenhar a partir de esculturas gregas verdadeiras”. Mas, acrescentou ela, as obras devem retornar para a Grécia, que é “seu devido lugar”. O motorista de ônibus John Lancaster, de 59 anos, afirmou que os mármores devem voltar para a Grécia porque são parte da história daquele país. “São como as Joias da Coroa”, acrescentou ele. “Se alguém as roubasse, você gostaria que elas fossem devolvidas, não?”
No ano passado, uma pesquisa do instituto YouGov, afirmou que 59% dos britânicos acreditam que as esculturas pertencem à Grécia. Mas opinião pública dificilmente será um fator decisivo nas negociações. Herman, o especialista em direito, afirmou que a cada poucos anos “há o que parece ser um lampejo de esperança” no debate sobre as esculturas do Partenon — mas logo o processo empaca.
O mesmo poderia ocorrer agora, afirmou Herman. Ele acrescentou, contudo, que tanto Mitsotakis quanto Osborne são empresários “de mentalidade prática”, acostumados a alcançar acordos. “Se existem duas pessoas capazes de se trancar numa sala e fazer isso acontecer”, afirmou Herman, “provavelmente serão pessoas como esses dois”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.