‘Na América Latina, as pessoas não estão votando em projetos de esquerda’, diz cientista político

Para analista Nicolás Saldías, da Economist Intelligence Unit, o que está acontecendo na região não é uma ‘maré rosa’, mas uma onda antigoverno

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Foto do author José Fucs

O cientista político Nicolás Saldías, de 36 anos, faz parte da equipe de analistas da Economist Intelligence Unit (EIU), ligada ao grupo que publica a revista britânica The Economist. Como responsável pelas análises de América Latina e do Caribe da empresa, ele está acompanhando com lupa o avanço da esquerda na região, tema de uma série de reportagens especiais lançada pelo Estadão.

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Nesta entrevista, Saldías diz que não acredita que esteja acontecendo uma “maré rosa” na América Latina, mas uma onda contra os incumbentes. Por isso, segundo ele, a vitória de candidatos de esquerda em vários países da região não significa que os eleitores estejam votando num projeto político, como afirmam líderes e apoiadores do grupo, mas apenas contra quem estava no governo. “As pessoas simplesmente não gostam dos presidentes que estão no poder, independentemente de serem de esquerda ou direita, porque eles não estão resolvendo os problemas”, afirma.

Saldías, que tem dupla cidadania, uruguaia e canadense, e mora em Fairfax, no estado da Virgínia, na costa leste dos Estados Unidos, dá um recado para os líderes de esquerda latino-americanos que estão chegando ao poder: “Seja cuidadoso com o que você está prometendo, porque se estiver prometendo demais e não tiver apoio no Congresso para aprovar suas propostas, só vai criar uma situação em que a população ficará muito desapontada e provavelmente daqui a quatro anos haverá uma volta à direita”.

Como o sr. vê a chamada “maré rosa” na América Latina, com a ascensão de diversos governos de esquerda na região?

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Quando as pessoas falam de uma “maré rosa”, não acredito que isso é o que está acontecendo. Na minha avaliação, o que está acontecendo é uma maré contra os incumbentes. As pessoas simplesmente não gostam dos presidentes que estão no poder, independentemente de serem de esquerda ou direita, porque eles não estão resolvendo os problemas. Então, na região, não é tanto que as pessoas estão votando em favor de um projeto político. Elas estão votando contra quem estava no governo.

Recentemente, o sr. disse que, se houvessem eleições hoje, muitos desses governos de esquerda que chegaram ao poder seriam derrotados. O que o leva a ter essa percepção?

Quando a gente olha para muitos dos governos de esquerda que foram eleitos recentemente, como o do (Gabriel) Boric, no Chile, que foi eleito com quase 60% dos votos no segundo turno, o que se observa é que sua taxa de aprovação agora está em torno de 35%. Uma das razões para essa queda é que o Chile está registrando níveis muito altos de inflação. Não é por causa do Boric, mas ele tem sido culpado por isso, que é algo que está afetando todos os governos na América Latina, independentemente de serem de esquerda ou direita. Outro ponto importante é que as políticas do Boric, na verdade, não são populares em certas questões, como segurança pública. O governo é percebido pela população como tendo uma atitude fraca em relação à segurança.

Há também o caso da nova Constituição do Chile, que será votada neste domingo, 4, defendida pelo Boric. Como isso está afetando a popularidade dele?

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O governo apoia fortemente a nova Constituição, mas a população vai rejeitá-la. Parece claro agora que a população não quer o tipo de políticas de esquerda que o Boric e a nova Constituição promovem, como as políticas identitárias. Eles querem transformar o Chile em um Estado plurinacional. A maioria das pessoas não quer isso. Então, diria que o Boric e os constituintes superestimaram seus mandatos, superestimaram o quanto de apoio teriam para as reformas que defendem. Eles tiveram apoio da população para certo tipo de reforma, mas levaram isso muito mais longe do que as pessoas queriam. Acredito que este é um problema que está acontecendo com governos de esquerda na região de forma geral. Por isso é que eu digo que, se houvesse uma eleição amanhã no Chile, o Boric não ganharia. Se houvesse um candidato de centro-direita, ele ganharia. As pessoas não votaram no Boric, mas contra o (ex-presidente Sebastián) Piñera.

Hoje, o Lula tem uma agenda que é muito mais para a esquerda do que há dez, quinze anos

Como isso deverá influenciar o governo do Boric?

Uma coisa que talvez seja um divisor de águas é que o Boric não tem maioria no Congresso. Ele não pode simplesmente fazer o que quer. Os partidos de direita, centro-direita e mesmo de centro-esquerda, que são mais para o centro do que no Brasil e na Argentina, não vão dar um cheque em branco para tudo o que ele quiser fazer. Eles vão reagir. Ainda mais agora que o Boric se tornou tão impopular. Ele foi eleito com um programa de reformas em massa, de remoldar o Chile, com a criação de estatais e aumento de gastos governamentais e de impostos. Para aprovar tudo isso, ele precisa de grande apoio popular e também de apoio no Congresso – e não tem nenhum dos dois. Agora que vão rejeitar a Constituição, ele vai ficar sem quase nenhum capital político, e acabou de começar seu mandato. Não faz nem um ano que está no poder. Sua popularidade caiu vinte pontos percentuais e ele não conseguir se recuperar. Não tem como se recuperar de uma queda dessas. Então, acredito que a oposição será reforçada no Chile, ainda mais com a rejeição da nova Constituição.



Como a questão da rejeição aos incumbentes se expressa em outros países?

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A gente observa a mesma coisa na Argentina. As pessoas não gostavam do (ex-presidente Mauricio) Macri, mas também não queriam as políticas que o (presidente) Alberto Fernandez está tentando implementar. Elas queriam algo só para corrigir alguns excessos do governo anterior. Então, é quase certo que no ano que vem o Fernandez vai perder as eleições. A (vice-presidente) Cristina Kirchner também, se for candidata, vai perder. Quem quer que seja o candidato peronista no ano que vem vai perder. É só uma questão de saber se será o vencedor será a coalização de centro-direita Juntos por El Cambio, ou um candidato de direita mais radical. No caso do Brasil, é a mesma coisa. As pessoas vão votar mais contra o Bolsonaro do que a favor do Lula. O Lula tem seus próprios problemas, como o escândalo de corrupção e muitas outras questões. Ele tem hoje uma agenda que é muito mais para a esquerda do que era há dez, quinze anos. Isso pode não funcionar bem para o Lula e ele pode apenas repetir o que está acontecendo com o Boric.

Isso vale também para a Colômbia e o Peru?

No Peru, o (presidente Pedro) Castillo foi eleito como Boric e Fernández, contra um candidato de direita. Ninguém queria um Fujimori (no caso, Keiko Fujimori, filha do ex-presidente Alberto Fujimori) fosse eleito de novo. Então, as pessoas votaram no Castillo. Houve simplesmente uma rejeição de um candidato específico da direita. Mas elas não estavam votando em favor de Castillo ou do que ele representava. E o Castillo é um presidente muito ruim, muito inexperiente. Está sofrendo muitas investigações de corrupção e as chances de ele terminar seu mandato são muito baixas. Depois do Castillo, a esquerda vai cair no esquecimento por outros 30 anos. As pessoas deram uma chance para a esquerda no Peru e eles se enroscaram completamente. É um desastre completo. É um típico outsider, que veio do nada para se tornar presidente do Peru. Não tem capacidade de dirigir uma complexa organização como o governo. Ele já teve quase 60 ministros em menos de um ano. Demitiu seu ministro do Interior, que era o sétimo no cargo, e o ministro disse que foi demitido porque estava tentando investigar sua corrupção.

A Argentina é um caso típico de um governo que é incapaz de parar de gastar

No caso da Colômbia, com a eleição do ex-guerrilheiro Gustavo Petro, que acabou de assumir a presidência, até que ponto essa análise é válida também?

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Na Colômbia, com a eleição de Petro, não foi diferente, porque ele reafirmou este modelo, de rejeição do (ex-presidente Iván) Duque. Agora, acredito que o Petro é um pouco diferente dos outros, porque tem muito mais experiência política, as pessoas sabem quem ele é. Mas, ainda assim, elas elegeram o Petro porque não queriam Duque. Eu acredito, e esta é a questão, que Petro e Lula, se vencer as eleições, vão se tornar impopulares também e as pessoas não vão querê-los também, porque, como eu disse há pouco, os problemas estão atingindo qualquer governo, quer sejam de direita ou de esquerda ou direita. Não faz diferença.

O que o leva a acreditar que os líderes da esquerda na América Latina estão fadados a se tornar impopulares, como os governos de direita e centro-direita que estavam no poder antes deles?

Veja, por exemplo, a questão da corrupção. Não importa se você é de esquerda ou de direita. As pessoas esperam que você lide com a corrupção, mas é muito difícil fazer isso. Se você for eleito com uma plataforma anticorrupção e não fizer isso, vai perder popularidade. Na questão do baixo crescimento econômico, que atinge hoje diversos países da região, é igual. Se você não propuser políticas que vão melhorar o ambiente de negócios, se você só estiver pensando em aumentar impostos, dificultar investimentos, como está acontecendo no Chile, a coisa não vai terminar bem. Você terá baixo crescimento e uma população desapontada, porque não conseguirá entregar o que prometeu, como renda mais alta, e não poderá expandir massivamente os serviços sociais, para reduzir a pobreza.

Para entregar pelo menos uma parte do que eles prometeram, terão de ampliar tremendamente os gastos públicos e a dívida pública, o que acaba não sendo popular também no longo prazo, ainda que dê algum retorno de popularidade no curto prazo. Aí, acaba sendo até pior, não?

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Um bom exemplo para isso é a Argentina. No curto prazo, aumentar o gasto governamental é como uma droga. As pessoas dizem “ah, estamos tendo mais emprego, mais transferências do governo”. A Argentina é um caso típico de um governo que é incapaz de parar de gastar. Eles estão além de quebrados, estão no limiar da hiperinflação. Eles têm que imprimir dinheiro, que não vale nada, para pagar pelos seus programas sociais, que acabarão sendo corroídos pela inflação. A Argentina está, de certa forma, no ponto final desse processo. Na Venezuela, a hiperinflação levou ao aprofundamento da ditadura. Na Argentina, isso não vai acontecer. Não haverá a emergência de uma espécie de chavismo. A Cristina Kirchner não vai se tornar ditadora da Argentina. Mas os argentinos estão se tornando mais pró-mercado, porque estão se dando conta de que a única forma de sair da crise é reduzir o gasto governamental, reformar a economia, para estimular maiores investimentos privados, o que significa impostos mais baixos e menos regulação. É por isso que você vê de repente alguém como (deputado) Javier Milei (coalizão La Libertad Avanza), que é um libertário, o mais radical político pró-mercado em todos os tempos no país, ganhando popularidade. Ainda que seja improvável que ele ganhe as eleições, a Juntos por el Cambio, que é uma coalização de centro-direita, provavelmente vai ganhar e terá de falar com ele ou ao menos ter o apoio dele, para governar.

Que mensagem esse cenário passa para os políticos de esquerda na América Latina?

O caso do Chile é um aviso para outros países. Seja cuidadoso com o que você está prometendo. Porque se estiver prometendo demais e não tiver apoio no Congresso para aprovar as suas propostas, você só vai criar uma situação em que a população ficará muito desapontada e provavelmente daqui a quatro anos haverá uma volta à direita. Acredito que é isso o que vai acontecer, como já se poder ver na Argentina. Quando partidos de esquerda chegam ao poder e não conseguem entregar o que prometeram, a direita chega ao poder e não consegue impulsionar o crescimento por causa das heranças malditas que recebem e seguram as mudanças. Isso vai perpetuar o ciclo: esquerda, direita, esquerda, direita.

Como a América Latina pode escapar dessa armadilha e entrar na trilha do desenvolvimento? Será que isso vai acontecer algum dia?

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Para resolver essa crise, é preciso que os partidos políticos sejam os principais veículos de expressão política, deixando para trás os líderes populistas que caracterizam a América. Latina. Eu não sei exatamente como seria isso. É muito difícil imaginar o que aconteceria. Se não houver partidos políticos fortes, você continuará a ter presidentes indo e vindo, indo e vindo. As pessoas defendendo, por exemplo, o Lula, no Brasil, independentemente de qualquer coisa, e outras defendendo o Bolsonaro da mesma forma. Com as pessoas decididas a não mudar suas convicções, vira um jogo de soma zero e se torna muito difícil governar. No Brasil, como você sabe, não há partidos políticos de verdade. Há dezenas de partidos no Congresso que só estão tentando obter vantagens para eles e para seus parlamentares, trocando votos por alguma coisa. Não dá para ter uma política estável assim.

Há algum exemplo na América Latina onde isso não acontece?

Há poucos países na região em que isso não está acontecendo, como o Uruguai, com o (presidente) Lacalle Pou, de centro-direita, que é muito popular. Mas ele não está propondo uma reforma abrangente que pretende fazer do Uruguai um país progressista, como esses outros casos dos quais falamos. Ele só quer implementar reformas pró-mercado, que a maioria das pessoas apoia. Acredito que o Uruguai é um dos poucos países na região em que tem sido possível escapar disso. É um dos poucos países em que esse ato de desenvolvimento está se mostrando realizável. Independentemente de quem está no poder, o quadro das políticas públicas não muda tanto. Agora, por exemplo, o Uruguai está negociando um grande tratado comercial com a China. Mas as negociações com a China começaram no governo anterior, com a Frente Ampla, que é uma coalização de esquerda. Só que agora o Lacalle Pou é quem está se movimentando e levando as negociações adiante, porque está dizendo que o Mercosul não funciona, que o país precisa abrir sua economia, enquanto a Frente Ampla segurava um pouco as coisas, porque dizia que o Mercosul tinha de evoluir de qualquer forma. Se não tiver esse acordo nas grandes estratégias, esse consenso, não se chega a lugar algum.

Pouquíssimas pessoas se dizem identificadas com o centro. Ninguém vai para as ruas e diz ‘eu sou o eleitor médio’

Em vários países, os líderes de esquerda latino-americanos foram eleitos com apoio do chamado centro democrático e até em, alguns casos, ironicamente, com apoio de parte da centro-direita, e tiveram de amenizar seu discurso eleitoral para conquistar esses votos. Mas, quando chegam ao poder e tentam retomar suas propostas originais, perdem esse apoio. Como o sr. analisa esta questão?

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Mais uma vez, o caso da Argentina é um bom exemplo. A Cristina Kirchner sabia que perderia as eleições em 2019 se fosse candidata contra o Macri. Então, ela decidiu escolher como candidato presidencial dos peronistas o Fernández, que era visto como um moderado, para atrair os eleitores de centro. Eles estavam achando que o Macri era ruim, que ele estragou a economia, mas não queriam a Cristina, porque ela teve os seus próprios problemas quando esteve no governo, e acreditavam que o Fernández conseguiria segurar a Cristina e poderia reverter algumas políticas que não deram certo. Só que, quando o Fernández chegou ao poder e especialmente agora, ele foi tão longe do centro que a maioria dos argentinos hoje se opõe a ele. Sua taxa de aprovação está na faixa de 20%.

É estranho, porque o centro fica oscilando de lá para cá, ora indo para um lado ora para outro, mas não tem força para chegar ao governo. Como se explica isso?

Não sei qual é a leitura sociológica para esse fenômeno. Mas, hoje, por causa das redes sociais e da natureza hiperpartidária da mídia na Argentina, onde há canais de TV que são puramente kirschneristas e outros puramente anti-kirschneristas, você só fala com sua base. Não conversa com ninguém no meio. As pessoas que estão à direita também só falam com sua base e não conversam com ninguém no meio. Então, as pessoas que estão no meio acabam tendo de escolher entre essas duas correntes. Não sei se é a resposta certa, mas você tem a tecnologia, que está tornando o horizonte da mídia muito mais fragmentado, está criando as câmeras de eco, nas quais você só fala com sua própria turma. Este é problema do centro, que está acontecendo em qualquer país. O centro na verdade não existe. Não é uma coisa real. Ninguém diz “eu sou centrista”. Se você for um ativista político, vai se identificar com a esquerda ou com a direita. Pouquíssimas pessoas se dizem identificadas com o centro. Ninguém vai para as ruas e diz “eu sou o eleitor médio”. Você tem uma forte alienação política do centro, mas ao mesmo tempo tem esse problema coletivo em que o centro é o fiel da balança. Por isso, hoje, é tão difícil administrar qualquer país, quando você precisa do centro para governar, mas depende de uma base radicalizada.

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