Depois de ter o pequeno supermercado chinês saqueado e incendiado em Moreno, no subúrbio de Buenos Aires, os donos que são migrantes desabafaram na televisão que cogitam voltar à China. A onda de violência a comércios que se espalhou pela Argentina este fim de semana inflamou as preocupações com segurança em meio à corrida eleitoral, e uma troca de acusações entre membros do governo e das oposições provocou uma nova crise interna no peronismo.
Ao menos 94 pessoas foram presas pelos saques a supermercados e comércios pequenos ocorridos na noite de terça-feira, 22, em Moreno, José C. Paz e Escobar, cidades da grande Buenos Aires. Antes, no fim de semana, episódios semelhantes de violência foram registrados em Córdoba, Mendoza e Neuquén. Em resposta, o governo criou um comitê de crise e reforçou a segurança nas regiões afetadas, com participação dos chefes das Forças Armadas argentinas.
“Temos muito medo. Cheguei aqui há 15 anos e é a primeira vez que isso acontece comigo. Primeiro atiraram pedras, depois atearam fogo e depois quebraram as portas. Levaram tudo”, contou Elena, a proprietária do Supermercado Conquista de Moreno, em entrevista ao canal TN. Muitos comerciantes descreveram os agressores como jovens - alguns aparentando ser menores de idade -, encapuzados e que levaram majoritariamente bebidas alcoólicas.
O episódio ocorre duas semanas após as eleições primárias que consagraram o libertário Javier Milei como a principal força da disputa, seguido pela coalizão de centro-direita Juntos Pela Mudança, encabeçada por Patricia Bullrich, e dos peronistas do União pela Pátria, cujo candidato é o ministro da Economia Sergio Massa. Os três vão para a disputa geral de outubro praticamente empatados.
Embora haja poucas informações de causas e possíveis nomes por trás dos saques, os episódios ocorrem em um momento de ebulição política e social na Argentina. A inflação bateu os 113% anuais no mês de julho e a previsão é de que o mês de agosto seja muito pior após a desvalorização da moeda promovida pelo governo.
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Desacreditados da política tradicional, um quarto dos eleitores votou pelo libertário Milei que promete explodir o Banco Central e na segurança se coloca como um linha-dura. Logo após os resultados das primárias e por consequência da queda do peso, vários produtos desapareceram das prateleiras devido à falta de preços.
“Ainda é difícil saber com exatidão o que está acontecendo, mas não precisa ser muito brilhante para observar um contexto onde há uma alta inflação e instabilidade cambiária”, afirma Carlos De Angelis, professor de sociologia da opinião pública da Faculdade de Buenos Aires. “Essa situação [de descontento social] se conteve durante anos apesar da alta inflação, porque havia estabilidade política”.
Acusações
O governo então se apressou em tirar a responsabilidade de si, principalmente pensando em não perder o eleitorado da província de Buenos Aires, o maior do país e o que tem mais chance de votar pelo peronismo. Na terça-feira, a porta-voz do governo Gabriela Cerruti correu para apontar os apoiadores de Javier Milei como os idealizadores dos ataques que, em suas palavras, intencionavam causar instabilidade.
Milei se defendeu condenando os episódios de violência e reforçou que o governo em vigência pertence aos kirchneristas, a quem acusou de ter “experiência nesse tipo de atividade”. “Um dia destes vão me culpar por ter assassinado Kennedy”, afirmou Milei. Cerruti então voltou a acusá-lo nesta quarta e também implicou Bullrich. “Eles constroem o seu discurso público com base no mesmo desejo que têm de que a democracia se rache e desestabilize”, afirmou.
Tanto Cerruti, quanto o governador de Buenos Aires, Alex Kicillof, e o secretário de Segurança da província de Buenos Aires, Sergio Berni, indicaram que os saques não eram espontâneos, mas coordenados para gerar instabilidade. Também afirmaram que havia grande circulação de vídeos e notícias falsas sobre saques que visavam inflamar ainda mais a população. No TikTok, um vídeo de Cerruti dizia que os incitadores pertenciam ao Liberdade Avança, coalizão de Milei.
O candidato do governo, porém, não estava sabendo dessa narrativa, segundo os jornais argentinos. Viajando em Washington para novas rodadas de negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI), Sergio Massa teria ficado furioso com a porta-voz e chamou as acusações de “loucura”, de acordo com o La Nacion.
O próprio ministro da Segurança da Argentina, Aníbal Fernández, buscou se distanciar das acusações da porta-voz. “Se eu soubesse quem está por trás disso, teria começado por aí. Ainda não temos dados confiáveis que nos façam dizer: ‘Fulano é responsável’”, reconheceu.
“A verdade é que a inflação torna impossível os preços para grandes setores da população, se dificulta muito a vida e isso agita a tensão social”, afirma Facundo Galván, professor de Ciência Política na Universidade de Buenos Aires. “Mas é verdade também que há muita circulação de notícias falsas por whatsapp promovendo esse tipo de ação. Mas sim, as cenas de Moreno e José C. Paz são reais”.
O discurso linha-dura nessas eleições
A inflação é de longe a principal preocupação do eleitor argentino nessas eleições que analistas estão chamando de “voto do bolso”. Mas a segurança já apareceu em alguns momentos como um tema em crescimento e tende a se acentuar durante casos de violência.
A pesquisa sobre Crenças Sociais dos argentinos produzida pelo Instituto Pulsar da Universidade de Buenos Aires, mostrou que o tema da segurança se tornou uma nova preocupação, com mais de 75% defendendo penas mais duras contra o crime e o narcotráfico. O tema tende a favorecer tanto a oposição do Juntos pela Mudança quanto o libertário Milei, prejudicando Massa.
Episódios anteriores de violência, inclusive o assassinato de uma criança a caminho da escola, já motivou um enorme voto a favor de Bullrich, que foi ministra da Segurança durante o governo de Maurício Macri e também se coloca do lado dos linha-dura. A ex-ministra venceu o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, que se colocava como mais moderado.
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Quatro dias antes das PASO, a jovem de 11 anos ia para a escola antes das 8h da manhã quando foi assaltada por dois motociclistas, que a arrastaram pela mochila e lhe deram um golpe na cabeça. A menina chegou a ser socorrida, mas morreu no hospital. O episódio paralisou as campanhas eleitorais na época e provocou protestos na cidade de Lanús, na província de Buenos Aires.
“Se vê as imagens nas redes sociais ou em jornais internacionais você pode pensar que está acontecendo uma guerra total no país, e isso não é verdade, foram episódios muito pontuais”, observa De Angelis. “Mas essas imagens geram medo e o medo contagia mais do que qualquer outro sentimento. É mais difícil transmitir a alegria que o medo, e hoje muita gente tem medo.”
Respondendo aos atos de hoje, Bullrich sugeriu um estado de sítio para controlar a situação. “Se o controle for completamente perdido e o Governo tiver que pedir o estado de sítio, tem que fazê-lo. Hoje ainda não sabemos. É preciso ter todas as hipóteses do que pode acontecer”.
A candidata também comentou diretamente as acusações do governo contra seu rival libertário. “Cerruti ontem na coletiva de imprensa parecia uma menina de dois anos: ‘Bem, aqui estamos todos vendo o que está acontecendo na Argentina’”.
As críticas às falas da porta-voz se somaram aos questionamentos sobre o silêncio de Alberto Fernández e Cristina Kirchner após os eventos. No fim da tarde de quarta, Fernández se manifestou. “Todo mundo está muito preocupado com a minha agenda, ‘o que estamos fazendo, onde ele está, por que ele não fala’. Basicamente eu não falo porque não sou candidato, sou presidente, e tenho que continuar trabalhando e resolver os problemas que os argentinos têm”, disse.
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