PUBLICIDADE

Opinião|Na eleição na Venezuela, Lula terá de escolher entre a defesa da democracia e os interesses do PT

A decisão de Lula sobre o que fazer em relação ao pleito venezuelano representa o maior desafio para a política externa de seu governo

PUBLICIDADE

Foto do author Rubens Barbosa

Apesar do princípio constitucional de não interferência em assuntos internos de outros países, os sucessivos governos do PT fizeram exatamente o contrário, como se observa agora na Venezuela. Apoiou Hugo Chávez e Nicolás Maduro nas eleições e respaldou politicamente e minimizou as restrições à democracia dos dois governos, apesar das evidências de medidas autoritárias e de o Mercosul ter suspendido a Venezuela por desrespeito à cláusula democrática. Autoridades brasileiras ressaltaram o papel de Lula para a realização das eleições, para a transparência do processo eleitoral e para a negociação do acordo de Bermudas.

PUBLICIDADE

Desde o acordo de Barbados, em outubro de 2023, em que a Venezuela se comprometeu a realizar eleições presidenciais livres e transparentes, em troca da suspensão das sanções sobre a venda de petróleo e gás, com o Brasil como um dos avalistas, o governo Lula aumentou seu apoio a Maduro.

Exemplo claro foi o tratamento dado a Maduro e as declarações de Lula antes do encontro de presidentes sul-americanos em Brasília. Logo em seguida, Maduro antecipou as eleições previstas para dezembro e tomou uma série de medidas para dificultar a candidatura oposicionista (inabilitação de políticos, perseguições e medidas repressivas, limitação de eleitores no exterior, cancelamento de convites para observadores independentes).

O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, cumprimenta o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, em São Vicente e Granadinas  Foto: Ricardo Stuckert /Presidência da República

Os EUA revogaram a suspensão das sanções com a crescente falta de transparência na campanha eleitoral. O Brasil continuou a apoiar o governo da Venezuela com um silêncio ensurdecedor, com contatos diretos, apresentando-se como possível mediador na disputa interna e com declarações vagas estimulando a transparência nas eleições.

Apesar de todas as restrições políticas internas, a oposição se mantinha otimista quanto aos resultados no dia 28 de julho. Poucas horas depois de encerrada a votação, o presidente do Conselho Nacional Eleitoral, anunciou o resultado da votação, com apenas 80% dos votos apurados, com a vitória de Maduro para um terceiro mandato de seis anos.

Apesar dos protestos da oposição, que informou ter dados que contrariavam o anúncio, menos de 24 horas depois da eleição, o CNE diplomou Maduro como presidente da República Bolivariana da Venezuela. O ministro da Defesa fez pronunciamento público respaldando a eleição de Maduro. Como era previsível, manifestações de rua contra a diplomação se multiplicaram, com crescente repressão policial-militar que causaram dezenas de mortos e centenas de prisões.

A líder da oposição, María Corina Machado, participa de coletiva de imprensa após as eleições presidenciais em Caracas, Venezuela  Foto: Ariana Cubillos/AP

Desde domingo, a comunidade internacional manifestou dúvidas quanto à lisura do pleito, como foi feito por nove países latino-americanos (inclusive os governos de esquerda do Chile e da Colômbia), liderados pelo Uruguai. Os representantes diplomáticos de sete desses países foram expulsos com prazo de 72 horas para deixar o país, e a embaixada da Argentina foi ameaçada de invasão para retirar venezuelanos exilados em seu interior. Buenos Aires pediu ao governo brasileiro para representar os interesses argentinos.

Publicidade

Nesse contexto, as ações e declarações do governo brasileiros se complicaram rapidamente. O envio do assessor internacional de Lula a Caracas foi um erro por colocar o Brasil no centro dos acontecimentos e dar a impressão que poderia exercer o papel de mediador entre o autoritarismo de Maduro e uma oposição fortalecida (o que, na realidade, não existe).

A posição do governo brasileira foi de cautela, sem declarações públicas sobre o resultado da votação antes da divulgação das atas com o resultado das urnas. Lula e Amorim declararam que o governo brasileiro só deve reconhecer o resultado após garantia de eleições justas, que não iria endossar a narrativa de fraude sem ver as atas, que é normal haver briga e que não há nada de grave.

A declaração de Lula de que o reconhecimento do resultado depende da publicação das atas e que, se houver contestação, a oposição deve recorrer à Justiça eleitoral, que deverá decidir sobre a pendência, e então, o governo brasileiro vai se pronunciar.

Na prática, Lula antecipou o pedido de Maduro – que publicamente solicitou a mesma coisa ao CNE – e reconheceu implicitamente a reeleição de Maduro, visto que já se sabe qual a decisão do CNE (sempre a favor do governo). Essa atitude de Lula criou uma armadilha contra o próprio governo. E se as atas não forem apresentadas.

PUBLICIDADE

O quadro se complicou ainda mais pelos pronunciamentos do Carter Center (que disse que o processo eleitoral no país não pode ser considerado democrático), da União Europeia, do G7, dos países latino-americanos, da OEA apesar de não ter conseguido aprovar resolução condenando a Venezuela, em função da abstenção do Brasil. Brasil, Colômbia e México pediram divulgação das atas e exame institucional.

Os EUA reconheceram a vitória da oposição. Sem falar da repressão às manifestações pela polícia e pelo Exército, das investigações sobre o ataque de hackers da Macedônia do Norte ao Conselho Eleitoral, que queimaram e destruíram documentos, dos ataques à oposição como responsável pelos “atos de terrorismo” e de tentativa de golpe de Estado, da ameaça de processo e prisão de Maria Corina Machado, todas, contrárias às declarações de Lula de que tinha confiança na normalidade no processo eleitoral e não há nada de grave na eleição venezuelana.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de uma reunião do Mercosul em Assunção, Paraguai  Foto: Daniel Duarte/AFP

Algumas das consequências da atitude do governo brasileiro, ao demorar em se pronunciar sobre o resultado da votação, são a perda explícita da liderança política na América do Sul, o desgaste da imagem internacional do presidente Lula e a perda da credibilidade da política externa.

Publicidade

Caso reconheça a vitória de Maduro (o que me parece improvável por razões de política interna, mas possível pelas declarações até aqui) ou adie indefinidamente o reconhecimento, o governo Lula enfrentará forte crítica, dificultando ainda mais a governança interna.

As eleições do último domingo, 28 de julho, passaram a representar o maior teste para a política externa do governo Lula, no sentido de que vai demonstrar qual é a prioridade: a defesa dos interesses do país, da democracia e dos direitos humanos ou a prevalência da ideologia e dos interesses partidários.

Opinião por Rubens Barbosa

Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004)

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.