Na eleição nos EUA, gênero pode ser o fator decisivo na disputa entre Kamala e Trump

Especialistas dizem que nunca antes viram uma corrida presidencial em que o assunto fosse tão central para as perspectivas eleitorais de cada candidato

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Por Lisa Lerer (The New York Times) e Katie Glueck (The New York Times)

ERIE, PENSILVÂNIA – Com menos de duas semanas até o dia da eleição presidencial nos Estados Unidos, uma grande questão paira sobre a campanha pela Casa Branca, e não tem nada a ver com a economia ou os ataques constantes entre o ex-presidente Donald Trump e a vice-presidente Kamala Harris sobre julgamento, caráter e aptidão mental. É sobre gênero.

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A questão raramente é abordada diretamente por qualquer um dos candidatos. No entanto, o fato de Kamala ser mulher — e sua potencial chance de fazer história como a primeira presidente mulher do país — está definindo a campanha, criando uma disputa que, de maneiras explícitas e sutis, se torna um referendo sobre o papel das mulheres na vida americana.

Adesivos pró-Kamala, colados em banheiros, lembram as eleitoras, “de mulher para mulher”, que o voto é privado. Assessores de Trump usam epítetos sexualizados para ridicularizar homens liberais como fracos e afeminados. Pesquisa após pesquisa revela que a diferença nos padrões de voto com base no gênero perpassa todos os grupos demográficos.

Imagem do dia 17 mostra a vice-presidente Kamala Harris durante comício em La Crosse, em Wisconsin. Pesquisa mostra candidata democrata com preferência de voto de mulheres Foto: Jamie Kelter Davis/NYT

E em conversas discretas, algumas apoiadoras de Kamala não conseguem evitar a sensação incômoda de que os homens em suas vidas estão tendo dificuldades para apoiar uma mulher — especialmente uma mulher negra de origem sul-asiática — mesmo que não queiram admitir isso.

“Se ela fosse um homem, será que essa disputa estaria tão acirrada?”, perguntou a governadora Janet Mills, do Maine, a um grupo de mulheres democratas após uma campanha por Kamala nos subúrbios de Pittsburgh.

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Joyce Reinoso, uma dessas mulheres, respondeu prontamente. “Ah, ela já teria vencido há três semanas”.

Jogo de acertos e erros

Aqueles que estudam os padrões de voto há décadas dizem que nunca antes viram uma disputa presidencial em que o gênero fosse tão central para as perspectivas eleitorais de cada candidato — nem mesmo em 2016, quando Hillary Clinton se tornou a primeira mulher a obter a nomeação de um grande partido. Eles citam uma série de fatores: a difamação bem documentada de Trump em relação às mulheres, o potencial histórico de Kamala, as visões sexistas persistentes sobre mulheres no poder e, talvez o mais central, a revogação da Suprema Corte do direito constitucional ao aborto há dois anos.

“É como um jogo de acerto, ele precisa conquistar algumas mulheres para que os homens o levem à vitória, e nós precisamos conquistar alguns homens para que as mulheres a levem à vitória”, disse Celinda Lake, uma experiente pesquisadora democrata que estuda o voto feminino desde que escreveu sua tese de mestrado sobre a diferença de gênero nas eleições presidenciais de 1980. “É exatamente a mesma fórmula, só que espelhada”.

Uma pesquisa realizada pelo The New York Times e o Siena College neste mês mostra que a diferença de gênero se ampliou à medida que as mulheres mantêm seu apoio de longa data aos democratas, enquanto os homens se aproximam de Trump. Kamala tem uma vantagem de 16 pontos porcentuais entre as prováveis eleitoras, enquanto Trump tem uma vantagem de 11 pontos entre os prováveis eleitores do sexo masculino.

Imagem do dia 19 mostra um post-it com mensagem de apoio a candidata democrata Kamala Harris colocado em um banheiro na Pensilvânia. Embora as questões de gênero sejam pouco mencionadas na campanha, eleição é vista como referendo do papel da mulher nos EUA Foto: Ruth Fremson/NYT

Grande parte da divisão de gênero é impulsionada pela geração mais jovem de eleitores: a pesquisa mostra que 69% das mulheres de 18 a 29 anos favorecem a democrata, em comparação com 45% dos homens jovens — uma diferença que supera em muito a de qualquer outra geração de eleitores.

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Os democratas acreditam que Kamala enfrenta uma forma profunda de sexismo que se apresenta de maneira diferente dos ataques do passado, quando líderes femininas eram questionadas abertamente com base no gênero e descritas em estereótipos clássicos de serem ou muito agressivas ou muito emocionais — e, às vezes, ambas as coisas.

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O país mudou desde 2016, com mais mulheres alcançando posições de poder político, incluindo Kamala, a primeira vice-presidente mulher. Mas, em contraste com 2016, quando os liberais se deleitavam com a perspectiva da primeira presidente mulher, os democratas agora estão menos otimistas quanto ao poder persistente do sexismo na mente de alguns eleitores.

“Estamos todos protegendo nossos corações agora, já passamos por isso antes”, disse Liz Shuler, a primeira mulher eleita para liderar a AFL-CIO (Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais), a maior federação de sindicatos do país. “Avançamos muito, mesmo desde 2020, com mulheres liderando de maneiras que nunca vimos antes. Não ser capaz de cruzar esse limiar final do cargo mais alto de poder no mundo seria um golpe muito duro”.

A federação sindical de Shuler, um dos apoiadores mais poderosos dos democratas, está acompanhando uma diferença de 32 pontos no apoio a Kamala sobre Trump entre suas membros mulheres em pesquisas internas.

Kamala descarta as preocupações de que o sexismo possa prejudicar suas chances, dizendo que o país está “absolutamente” pronto para eleger uma presidente mulher. “Nunca presumirei que alguém em nosso país deva eleger um líder com base em seu gênero ou raça”, disse ela em uma entrevista à NBC News na noite de terça-feira.

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Nenhuma das campanhas está cedendo todo um gênero para a outra.

Aborto é tema central

O senador J.D. Vance, de Ohio, indicado à vice-Presidência por Trump, cujo comentário de 2021 sobre “mulheres sem filhos com gatos” se tornou uma espécie de grito de guerra democrata, insistiu em uma entrevista recente à Fox News que a campanha republicana não desistiu de conquistar eleitoras. Mas a campanha de Kamala espera construir sobre a coalizão de eleitores femininos energizados e irritados que tem impulsionado seu partido a vitórias em eleições desde que Trump assumiu o cargo em 2017.

Cientes de seus déficits com os homens — em particular os homens mais jovens —, os democratas apostam que podem conquistar mais mulheres brancas, cruzando linhas de educação, classe e até mesmo filiação partidária, com planos de persuadir eleitores conservadores, especialmente mulheres, até o dia da eleição.

Uma parte central do apelo da campanha é a promessa de restaurar os direitos federais ao aborto. Ainda nesta semana, Kamala planeja destacar os efeitos das restrições ao procedimento promulgadas por legisladores estaduais republicanos após a revogação do direito constitucional ao aborto, com paradas de campanha no Texas e na Geórgia, ambos estados que baniram o procedimento com exceções limitadas.

Frases com referência a música da cantora Lizzo colocadas próximo a um comício de Kamala Harris em Detroit, em imagem do dia dia 19 Foto: Ruth Fremson/NYT

Em um evento na segunda-feira, nos subúrbios da Filadélfia, a ex-membro da Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil) Liz Cheney, de Wyoming, uma das apoiadoras republicanas mais proeminentes de Kamala, deixou a mensagem explícita para as mulheres suburbanas moderadas que a campanha está tentando alcançar. “Vamos rejeitar a misoginia que temos visto de Donald Trump e J.D. Vance”, disse ela.

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Algumas estrategistas e autoridades republicanas, incluindo a ex-governadora Nikki Haley, da Carolina do Sul, têm se preocupado com o fato de o partido estar alienando as eleitoras. Em 2022, os republicanos foram surpreendidos politicamente após a decisão no caso que derrubou o direito constitucional ao aborto. Desde então, muitos se uniram em torno de uma mensagem — liderada por Trump — de que a questão deve ser deixada para os estados.

“Ela não é a que está tentando transformar isso em uma questão de gênero”, disse Christine Matthews, uma pesquisadora que trabalha para candidatos republicanos e se considera parte da ala anti-Trump do partido. “São Trump e Vance que estão sendo tão extremos, e a decisão [da Suprema Corte], que criou uma enorme cisão de gênero”.

‘Ken Harris’

Mas a campanha de Trump acredita que seu caminho para a vitória passa pela mobilização de homens que são menos propensos a votar. Ele abraçou uma marca de hipermasculinidade, com ex-lutadores profissionais tirando suas camisas em sua convenção partidária, suas aparições em uma série de podcasts populares entre homens jovens e seus elogios ao tamanho do pênis de um famoso jogador de golfe em um comício no fim de semana passado.

Seus apoiadores zombaram da masculinidade do governador Tim Walz, de Minnesota, candidato à vice-Presidência democrata, chamando-o de “Tampon Tim” por apoiar uma lei que distribui produtos menstruais, como tampões, gratuitos nos banheiros escolares.

Mesmo os apelos de Trump às mulheres têm sido tingidos por tons de papéis tradicionais de gênero. “Vocês não serão mais abandonadas, solitárias ou com medo”, disse Trump em um comício na Pensilvânia no mês passado. “Vocês serão protegidas, e eu serei o seu protetor”.

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A estratégia de Trump pode ser mais arriscada eleitoralmente, dizem alguns especialistas que estudam eleitores mais jovens. As eleitoras viram como a política pode afetar diretamente suas vidas desde que a onda de restrições ao aborto se tornou lei.

Imagem do dia 18 de julho mostra o lutador de wrestling Hulk Hogan participando da Convenção Nacional Republicana. Candidatura de Trump promove símbolos associados a masculinidade Foto: Hiroko Masuike/NYT

Ainda não está claro se os homens jovens, que se sentem desiludidos com as instituições políticas e invisíveis em uma cultura que abraçou o empoderamento feminino, sentem a mesma motivação para transformar seu apoio a Trump em votos reais.

Alguns democratas acreditam que os eleitores estão usando eufemismos para discutir as políticas e a visão de Kamala, ocultando seu desconforto em apoiar uma mulher — um argumento que o ex-presidente Barack Obama fez recentemente em um comício.

“Imagine que Kamala Harris fosse Ken Harris — se ela fosse um homem, um homem de meia-idade, você pensaria diferente? — diz a governadora Mills, do Maine, que pergunta aos eleitores. — Não é misoginia, mas apenas que pessoas de certos segmentos da população estão acostumadas a ver um homem branco nesse cargo executivo, e sempre foi mais difícil para as mulheres provarem capacidade executiva, o que Kamala tem.

Dan Faingnaert, 71, e sua esposa, Marilyn Shields, 72, de Monaca, Pensilvânia, que publicam juntos um jornal focado em motocicletas, concordam em seu apoio a Kamala, vendo Trump como “destrutivo” no cenário internacional (palavras de Faingnaert), ou simplesmente “insano”, como Shields colocou. Mas enquanto Faingnaert disse que achava que Kamala estava em uma posição mais forte do que Joe Biden em 2020, Shields estava em dúvida.

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