Na guerra velada da Índia contra o Paquistão, uma campanha de assassinatos secretos

O primeiro-ministro Narendra Modi se mostra mais disposto a enfrentar os inimigos estrangeiros da Índia do que qualquer outro líder desde a independência

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Por Gerry Shih

LAHORE, Paquistão — Pouco depois das 12h30 de um dia escaldante, em abril do ano passado, dois homens armados e mascarados entraram numa residência de cidadãos de classe trabalhadora em Lahore, identificaram um homem de 48 anos conhecido como Tamba e dispararam três tiros à queima-roupa que atingiram seu tórax e sua perna, de acordo com um relatório da polícia paquistanesa. Os agressores saíram, então, em disparada numa motocicleta Honda, deixando Tamba sobre uma poça de sangue, no segundo andar.

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Tamba, cujo nome verdadeiro era Amir Sarfaraz, tinha inimigos antigos. O gângster tinha sido acusado de espancar um agente de inteligência indiano até a morte dentro de uma prisão de Lahore, em 2011, enquanto ambos cumpriam pena no corredor da morte, mas acabou solto e inocentado das acusações. Indignadas, autoridades indianas suspeitaram que a agência paquistanesa de inteligência Inter-Services, ou ISI, havia contratado Tamba para a execução dentro da prisão, de acordo com uma ex-autoridade indiana, e agora, 13 anos depois, eles pareciam ter se vingado.

Pouco depois, o Ministro do Interior do Paquistão, Mohsin Naqvi, disse a repórteres que vários assassinatos recentes evidenciavam sinais de “envolvimento direto da Índia”. Referindo-se ao caso Tamba, ele acrescentou: “O padrão é exatamente o mesmo”.

O incidente pareceu o exemplo mais recente do que as autoridades paquistanesas qualificam como um desdobramento impressionante na longa guerra nas sombras entre os dois rivais no Sul da Ásia. Embora Índia e Paquistão tenham usado grupos militantes para semear caos em ambos países inimigos, a agência de inteligência indiana Research and Analysis Wing (RAW) implantou em 2021 um programa sistemático de assassinatos para eliminar pelo menos meia dúzia de indivíduos dentro do Paquistão, de acordo com autoridades paquistanesas e ocidentais.

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O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, se mostra mais duro e mais disposto a enfrentar os inimigos da Índia do que qualquer outro líder desde a independência indiana. Desde o ano passado, as relações da Índia com os governos ocidentais foram abaladas por alegações de que oficiais da RAW também ordenaram o assassinato de separatistas siques no Canadá e nos Estados Unidos - operações que pareciam ser um resultado de uma campanha testada e aperfeiçoada incialmente dentro do Paquistão.

Narendra Modi tem se mostrado mais duro e mais disposto a enfrentar os inimigos da Índia  Foto: Marcos Corrêa/PR

O Washington Post examinou seis casos ocorridos no Paquistão por meio de entrevistas com autoridades paquistanesas e indianas, aliados e parentes de militantes e uma análise de documentos policiais e outras evidências coletadas por investigadores paquistaneses. As fontes revelam os contornos de um ambicioso programa de assassinato promovido pela Índia com semelhanças marcantes com as operações na América do Norte.

No Paquistão, os assassinatos foram praticados por criminosos comuns paquistaneses ou atiradores afegãos contratados, nunca por cidadãos indianos, afirmaram autoridades. Para colaborar com uma negação plausível, os agentes da RAW usaram empresários em Dubai, um centro comercial regional, como intermediários e mobilizaram equipes distintas e isoladas para vigiar alvos, realizar assassinatos e canalizar pagamentos por meio de dezenas de redes bancárias informais não regulamentadas, conhecidas como hawalas, instaladas em vários continentes, de acordo com investigadores paquistaneses. Mas a RAW também, às vezes, usou técnicas comerciais descuidadas e operadores mal treinados, espelhando o que foi observado pelas autoridades policiais dos EUA e do Canadá.

Os assassinatos dentro do Paquistão geralmente tinham como alvo supostos líderes de dois grupos designados como terroristas pelas Nações Unidas — Lashkar-e-Taiba e Jaish-e-Muhammad — ambos acusados pela Índia de atacar tropas indianas ou, anos atrás, cidadãos indianos. Os separatistas siques que foram alvos no Canadá e nos EUA, Hardeep Singh Nijjar e Gurpatwant Pannun, também foram classificados como terroristas por Nove Délhi, embora autoridades e analistas ocidentais tenham contestado as evidências da Índia contra eles.

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Assassinatos dentro do Paquistão geralmente tinham como alvo supostos líderes de dois grupos designados como terroristas pelas Nações Unidas Foto: Arif Ali/ARIF ALI

Muitos detalhes das operações indianas no Paquistão não tinham sido noticiados anteriormente. Autoridades paquistanesas e indianas falaram sob condição de anonimato para relatar atividades de inteligência sensíveis e investigações em andamento.

Esses assassinatos são um tema delicado no Paquistão, porque colocam em dúvida as capacidades de contrainteligência e dos serviços de segurança do país — e as afirmações do governo paquistanês de que não dá abrigo a terroristas. Mas algumas autoridades paquistanesas argumentam agora que, à medida que a Índia sob Modi se torna uma potência mundial, o governo indiano deve ser denunciado por realizar execuções extrajudiciais impunemente.

Mesmo antes das suspeitas dos EUA e do Canadá virem à tona, o diretor-geral da ISI, Nadeem Anjum, expressou sérias preocupações sobre os assassinatos supostamente praticados pela Índia ao diretor da CIA, William Burns, afirmou uma ex-autoridade paquistanesa.

“Nossas preocupações surgiram independentemente das investigações dos EUA e do Canadá”, disse uma autoridade paquistanesa no exercício do cargo. “A Índia é capaz de se erguer pacificamente? Nossa resposta é não.”

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Procurado pela reportagem, o Ministério das Relações Exteriores da Índia se recusou a comentar o caso. No passado, porém, autoridades indianas não confirmaram nem negaram seu papel em assassinatos específicos, mas afirmaram que assassinatos não são usados como ferramenta nas políticas indianas. Essas mesmas autoridades, ao mesmo tempo, acusam frequentemente o Paquistão e países ocidentais de se recusar a extraditar terroristas, apesar da Índia apresentar evidências de seus crimes, e que vários militantes islâmicos radicados no Paquistão foram mortos pelos EUA, principalmente em ataques de drones.

Depois que a Índia aprovou uma rigorosa lei antiterrorismo, em 2019, o Ministério do Interior indiano começou a publicar uma lista de indivíduos classificados como terroristas, que é atualizada ocasionalmente. Uma análise do The Post descobriu que 11 dos 58 nomes na lista atual foram, segundo relatos, mortos desde 2021 ou foram alvo de ataques desde então. O Post constatou que pelo menos dez outros homens que não estavam na lista dos mais procurados, mas eram acusados pela Índia de militância, morreram em circunstâncias semelhantes: vitimados por tiros à queima-roupa disparados por atiradores anônimos.

O caso Tamba demonstra a dificuldade de investigar as atividades da luta obscura entre as agências de inteligência rivais. Ainda que o boletim policial afirme que Tamba foi morto e algumas autoridades paquistanesas terem afirmado o mesmo, várias outras fontes familiarizadas com o caso relataram que ele sobreviveu — e uma pessoa disse que Tamba foi informado anteriormente por autoridades de segurança sobre o ataque e que o Paquistão simulou sua morte com objetivo de enganar um operador da RAW para descobrir o alvo seguinte da lista.

Desde o fim da década de 90, quando Índia e Paquistão se declararam Estados possuidores de armas nucleares, cada país tem pensado em maneiras de enfraquecer o outro com operações secretas, com negação plausível, sem arriscar uma guerra total.

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Em 2014, o atual conselheiro de segurança nacional indiano, Ajit Doval, afirmou que invadir o Paquistão não era uma possibilidade realista, mas que a Índia deveria usar meios secretos para punir o Paquistão por apoiar grupos militantes que ataquem soldados e civis indianos. “Podemos nos defender agindo no lugar de origem desta agressão”, disse Doval a uma plateia de universitários. “A vulnerabilidade do Paquistão é muito, muito maior que a da Índia.”

Uma história violenta

O conflito entre Índia e Paquistão remonta à sangrenta partição da Índia Britânica, em 1947, quando ambos os países recém-independentes reivindicaram a Caxemira. Nas décadas seguintes, o Paquistão apoiou extremistas islâmicos que buscavam expulsar os indianos da região montanhosa, de maioria muçulmana, enquanto a Índia tentava combater o Paquistão armando separatistas étnicos nas Províncias paquistanesas do Baluchistão e de Sinde.

No fim da década de 90, o ex-primeiro-ministro indiano I.K. Gujral diminuiu a intensidade de muitas operações secretas da Índia dentro do Paquistão, ao mesmo tempo em que relações bilaterais se iniciavam. Mas o Lashkar-e-Taiba, um grupo militante que, acredita-se amplamente, é apoiado pela inteligência paquistanesa, realizou um ataque em 2008 que matou 175 pessoas e feriu mais de 300; e as Forças Especiais dos EUA assassinaram Osama Bin Laden dentro do Paquistão em 2011. Depois disso, altos funcionários da RAW argumentaram favoravelmente por operações de assassinato para matar indivíduos de alto escalão dentro do Paquistão, disse uma ex-autoridade indiana e um alto conselheiro do governo.

Em 2012, V.K. Singh, um general do Exército indiano que liderou um grupo que realizou bombardeios em pequena escala dentro do Paquistão, tentou assassinar Syed Salahuddin, o líder militante da Caxemira no Paquistão, disse uma ex-autoridade indiana. Salahuddin segue vivo. Uma ex-autoridade paquistanesa disse que o governo de seu país acredita que a Índia também teve responsabilidade no tiroteio de 2013, diante de uma padaria em Islamabad, que matou Nasiruddin Haqqani, que era suspeito de bombardear a embaixada indiana em Cabul.

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Mas foi somente em 2021, dois anos após Modi ter vencido a reeleição apregoando políticas duras em relação ao Paquistão, que uma onda de assassinatos seletivos começou.

Em junho, um paquistanês contratado pela inteligência indiana em Dubai detonou um carro-bomba próximo ao perímetro de segurança de um complexo em Lahore que abrigava Hafiz Saeed, o líder do Lashkar-e-Taiba, mas a explosão não o atingiu, de acordo com autoridades paquistanesas e indianas.

Depois disso, as operações ficaram mais frequentes e precisas. Em vez de bombas, a RAW parecia preferir homens armados com pistolas. Em vez de líderes importantes, a Índia perseguiu militantes mais descuidados.

Assassinatos secretos

Oito meses após a explosão que teve como alvo Saeed, assassinos atiraram em Zahoor Mistry, que tinha matado um passageiro indiano durante o sequestro de um voo da Indian Airlines em 1999. Autoridades paquistanesas, citando confissões extraídas de quatro suspeitos presos posteriormente, disseram que a operação para assassinar Mistry foi elaborada: uma mulher que se autodenominava Tanaz Ansari, supostamente um pseudônimo de uma operadora de inteligência indiana, recrutou dois paquistaneses para localizar Mistry, dois afegãos para atirar nele e três colaboradores do Sudeste Asiático, da África e do Oriente Médio para canalizar pelo menos US$ 5,5 mil para pagar os envolvidos no Paquistão.

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Nas horas que antecederam o assassinato, Ansari pediu que seu operador paquistanês em campo, Sheraz Ghulam Sarwar, confirmasse a identidade e a localização precisa de Mistry. Sarwar realizou consecutivas videochamadas do WhatsApp para Mistry, afirmando ser um agente de atendimento ao cliente de um aplicativo de transporte, de acordo com capturas de tela do telefone de Mistry analisadas pelo Post.

Mistry rejeitou várias videochamadas e respondeu: “Não reservei nenhuma viagem”. Minutos depois, Ansari enviou uma mensagem para Mistry.

Cinco dias depois, Ansari atacou novamente, matando Syed Khalid Raza, um líder militante ativo na Caxemira na década de 90, de acordo com autoridades paquistanesas. Dessa vez, afirmaram autoridades paquistanesas, Ansari ligou para Muhammad Ali Afridi, um homem paquistanês que ela havia recrutado pela primeira vez em 2018, pelo Facebook, para acompanhar a rotina de Raza por vários dias, comprar uma pistola para dois assassinos e, finalmente, enterrar a arma à margem de um rio depois que Raza foi morto.

Em tensas trocas de mensagens no WhatsApp, obtidas pelas autoridades paquistanesas depois da prisão de Afridi e analisadas pelo Post, Ansari ponderou sobre o risco de Afridi abordar um segurança no prédio de Raza para perguntar sobre seu paradeiro. Mas ela exigiu que Afridi enviasse fotos confirmando a identidade de Raza, dizendo que não tinha “permissão” de superiores para dar sinal verde para a operação e pagá-lo. Num determinado ponto, ambos discutiram a respeito de outro alvo que Ansari estava com dificuldade para localizar dentro de um bairro na Autoridade de Habitação de Defesa, em Karachi, no Paquistão.

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Autoridades paquistanesas dizem que nunca confirmaram a identidade real de Ansari. A reportagem não conseguiu contato nem com Afridi, que aguarda julgamento, nem com Sarwar. Mas o assassinato de Raza, em fevereiro de 2023, pareceu prenunciar pelo menos duas operações que autoridades ocidentais dizem ter sido lançadas pela inteligência indiana na primavera (Hemisfério Norte) daquele ano.

Operações no Ocidente

Na mesma época, de acordo com detalhes expostos em um indiciamento federal nos EUA, um oficial da RAW em Nova Déhli chamado Vikash Yadav coordenou uma tentativa de assassinato contra Pannun, um separatista sique que vivia em Nova York. O oficial instruiu seu agente, um empresário chamado Nikhil Gupta, a contratar um assassino local. Como Ansari, Yadav coordenou à distância e parecia pressionado pelo tempo, fazendo comentários que sugeriam a existência de uma ampla operação para eliminar uma longa lista de alvos.

Mas, ao contrário do Paquistão, promotores de Justiça dos EUA afirmaram que a operação em Nova York foi rapidamente frustrada depois que Gupta, sem querer, pediu a um informante da DEA que o apresentasse a um assassino de aluguel.

Autoridades canadenses, ao mesmo tempo, disseram que também tinham descoberto uma campanha indiana em expansão para vigiar, intimidar e até matar siques. Enquanto elementos criminosos foram empregados, da mesma forma que no Paquistão, diplomatas indianos estacionados no Canadá também receberam ordens para monitorar membros da diáspora sique, de acordo com autoridades canadenses, que citaram conversas eletrônicas privadas e mensagens de texto dos diplomatas. Não está claro como essas comunicações foram obtidas.

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O professor Christopher Clary, que leciona ciência política na Universidade Estadual de Nova York, em Albany, e estudou as supostas operações secretas da Índia, afirmou que o histórico da RAW em assassinatos seletivos parecia espelhar os métodos da agência de inteligência exterior de Israel, o Mossad, que realizou assassinatos em países menos desenvolvidos com sucesso, mas cujos agentes foram flagrados por câmeras de vigilância de hotéis enquanto realizavam uma operação em 2010 para matar um líder do Hamas na moderna cidade de Dubai.

“Uma leitura é que (a RAW) vinha obtendo sucesso no Paquistão por um ano inteiro antes de começar a desenvolver esse esforço no Ocidente”, disse Clary. “Mas as táticas, as técnicas e os procedimentos que funcionaram muito bem no Paquistão não funcionaram necessariamente no Ocidente.”

Aumentam as tensões na Caxemira

Desde que autoridades dos EUA e do Canadá descobriram as supostas operações secretas em seus países, autoridades e analistas ocidentais se perguntam por que a Índia correria o risco de assassinar cidadãos do Ocidente associados a um movimento separatista sique que não representa nenhuma ameaça imediata de violência.

O cálculo sobre o Paquistão, dizem analistas de segurança e autoridades indianas, era diferente. Em vários casos, a Índia mirou o Lashkar-e-Taiba e o Jaish-e-Muhammad e suas sucursais rebatizadas, que permanecem ativos na insurgência da Caxemira.

Desde 2019, oficiais do Exército indiano afirmam que pelo menos 50 soldados de suas forças foram mortos por combatentes do Paquistão que se infiltraram em áreas montanhosas próximas à Caxemira, incluindo o Vale do Rio Poonch. Essas incursões ficaram mais frequentes após Modi enfurecer Islamabad e muitos habitantes da Caxemira ao cumprir uma promessa de seu movimento nacionalista hindu buscada havia muito: revogar o status de semiautonomia da Caxemira e colocar a região sob o controle direto de Nova Délhi.

Um dos principais financiadores dos ataques, disse um oficial da contrainsurgência indiana, foi um caxemirense chamado Mohammed Riyaz Ahmed, que fugiu para o Paquistão em 1999 e levantou recursos por meio de instituições de caridade islâmicas associadas ao Lashkar-e-Taiba. Em setembro de 2023, um jovem matou Riyaz com um tiro na cabeça enquanto ele se ajoelhava para fazer orações do amanhecer, dentro de uma mesquita, na parte da Caxemira controlada pelo Paquistão; e, cinco dias depois, a Frente de Resistência, o grupo supostamente financiado por Riyaz, revidou.

No Telegram, o grupo divulgou um vídeo denunciando o assassinato de Riyaz e comemorou sua vingança em Anantnag, na parte da Caxemira controlada pela Índia, que matou um policial indiano e três oficiais do Exército, incluindo um coronel.

O Paquistão vai a público

E nem assim a RAW não se intimidou. Quatro semanas depois, um grupo de homens liderados por um trabalhador chamado Muhammad Umair atirou em Shahid Latif, acusado pelas autoridades indianas de realizar um ataque contra uma base da Força Aérea Indiana, em 2016, que tirou dos trilhos uma aproximação diplomática entre Modi e seu então homólogo paquistanês, Nawaz Sharif.

Dessa vez, a RAW enfrentou um tipo diferente de reação. Após ser preso, Umair confessou que tinha sido acionado em Dubai para matar Latif depois que seus colegas ficaram frustrados com várias tentativas fracassadas, disseram duas fontes com conhecimento sobre o assunto. Segundo seu relato, Umair revelou a localização de um esconderijo em Dubai e, em pouco tempo, agentes paquistaneses em Dubai invadiram o apartamento, onde obtiveram muita informação de inteligência, mas não encontraram seus dois inquilinos indianos: Ashok Kumar Anand Salian e Yogesh Kumar. (A reportagem não conseguiu contato com Umair.)

Até aquele momento, o Paquistão raramente reconhecia operações contra a Índia. Mas numa entrevista coletiva, em fevereiro, o secretário paquistanês de Relações Exteriores, Muhammad Syrus Sajjad Qazi, mostrou escaneamentos de passaportes pertencentes a Salian e Kumar e os acusou de coordenar os assassinatos de Latif e Riyaz, um mês antes. Nova Délhi rejeitou as alegações de Qazi, qualificando-as como “propaganda falsa e maliciosa contra a Índia”.

As tentativas do Post de localizar Salian não tiveram sucesso. Em abril, ele fez sua única aparição pública numa entrevista a um canal de televisão indiano pró-governo. Usando óculos escuros, dentro de um modesto apartamento, em Nova Déli, Salian disse que era um empresário comum em Dubai e empregava um trabalhador paquistanês em seu cibercafé que poderia ter feito coisas sem seu conhecimento. Ele negou qualquer conexão com a RAW.

“Depois que o prenderam, as autoridades paquistanesas devem ter descoberto quem era seu patrocinador em Dubai”, disse Salian. “Sinto-me ofendido que minha intimidade esteja em destaque e minha reputação seja prejudicada.”

A reportagem também não conseguiu localizar Kumar, o suposto cúmplice de Salian. Anmol Gora, dono de uma empresa de laticínios no vilarejo do Estado de Rajastão apontado como local de nascimento de Kumar, disse que ele não é visto por lá há cinco anos. Moradores afirmaram que Kumar estava morando em Dubai, segundo Gora.

“As pessoas do vilarejo dizem que ele estava envolvido em algum negócio obscuro. E por isso ele simplesmente desapareceu”, disse Gora.

Dividendos domésticos

O Paquistão começou a chamar a atenção da Índia publicamente este ano após o que autoridades paquistanesas disseram ser uma série de assassinatos que pareceram render dividendos domésticos para o governo Modi.

No fim do ano passado, muitos canais de televisão indianos pró-governo exibiram programas reluzentes, maravilhando-se com o alcance internacional e a eficiência da RAW. Autoridades paquistanesas ficaram particularmente irritadas com as notícias que surgiram na Índia quase imediatamente após alguns assassinatos. “Em muitos casos, eles comemoraram antes mesmo que a nossa polícia soubesse das mortes”, disse uma autoridade.

Um dia após o Guardian publicar uma reportagem sobre os assassinatos no Paquistão neste ano, Modi — sem confirmar explicitamente nenhuma execução — gabou-se durante um comício de campanha de ter entrado “nas casas (dos inimigos da Índia) e os matado”. O ministro do Interior indiano, Amit Shah, que autoridades canadenses dizem ter sido identificado pelo nome por diplomatas indianos em suas conversas privadas como o alto funcionário do governo que dirigiu os esforços secretos, estava similarmente alegre. “Não importa quem cometeu os assassinatos. Qual é o problema?”, disse Shah em entrevista a uma emissora de televisão. “A agência fará seus trabalhos. Por que deveríamos interferir?”

O importante historiador militar indiano e ex-oficial do Exército Srinath Raghavan, que serviu na Caxemira, afirmou que o governo Modi divulgou ataques de forças especiais dentro do Paquistão e encorajou a produção de filmes de Bollywood que glamorizam os operadores clandestinos da Índia.

“O slogan é ‘Eis a Nova Índia’”, disse Raghavan. “O governo Modi entrou com uma visão de que é necessário revidar, e precisa sinalizar publicamente que está fazendo isso. O objetivo é dizer ao Paquistão que nós estamos dispostos a entrar e atacar com força, mas também há um componente doméstico.”

Os militantes da Caxemira no centro do conflito dizem que as autoridades indianas têm um incentivo para exagerar sua própria letalidade e que as informações fornecidas pelas autoridades paquistanesas também não são confiáveis. Independentemente disso, dizem analistas, as autoridades indianas já demonstraram seu alcance extenso e letal para o Paquistão e o público indiano.

Asad Durrani, ex-diretor geral da ISI, disse que pode ser do interesse de algumas autoridades tanto na Índia quanto no Paquistão continuar sua guerra nas sombras — tanto para desestabilizar o outro país quanto para obter dividendos políticos. “Qualquer Estado ou ator não estatal que puder escapar impune de algum ato fará isso”, disse Durrani. “Nenhum lado está disposto a pagar o preço da paz.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

* Colaboraram nesta reportagem: Mohammad Zubair Khan, em Lahore; Shaiq Hussain, em Islamabad, no Paquistão; Shams Irfan, em Srinagar, na Índia; e Anant Gupta, em Nova Délhi.

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