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Opinião|Na Venezuela, chavismo entra em uma nova fase: o ‘legalismo autocrático’

Termo é utilizado para descrever como o retrocesso da democracia na Venezuela se deu através do uso, abuso e desuso da lei; o Tribunal Supremo de Justiça é a ferramenta predileta para ocultação de abuso

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Por José Ignacio Hernández

A Venezuela é um exemplo notável, ainda que trágico, do modo que os ditadores — conforme o filósofo político Heinrich Rommen escreveu certa vez — são mestres do legalismo. Quando Hugo Chávez foi eleito em dezembro de 1998, a Venezuela tinha uma democracia constitucional viável. Desde então, a democracia venezuelana se erodiu num processo em câmera-lenta, por meio de um vilipêndio das instituições constitucionais que segue os padrões de um autoritarismo constitucional complementado pela retórica populista. Hoje o regime liderado por Nicolás Maduro está apelando para um “legalismo autocrático” em mais uma tentativa desesperada de permanecer no poder. Sua manobra será bem-sucedida?

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Legalismo autocrático é uma expressão cunhada pelo professor Javier Corrales, da Amherst College, para descrever como o retrocesso da democracia na Venezuela foi engendrado pelo uso, abuso e desuso da lei. O Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) tem sido a ferramenta predileta para ocultação de abusos. Em vez de proteger a Constituição por meio da revisão jurídica, o TSJ tem adotado interpretações distorcidas para destruir as fundações de uma democracia constitucional saudável no passado.

Em dezembro de 2015, a Sala Eleitoral do TSJ “suspendeu” arbitrariamente deputados do Estado do Amazonas, pavimentando o caminho para o “golpe judicial” que impediu ilegalmente a Assembleia Nacional eleita naquele ano de exercer sua função legislativa. E em outubro do ano passado, a Sala “suspendeu” a eleição primária vencida pela líder opositora María Corina Machado sob argumentos de judicialização de direitos políticos.

Imagem mostra venezuelana segurando faixa que pede "liberdade" em um protesto organizado em Miami, nos Estados Unidos, no dia 17. Democracia venezuelana foi erodida pela própria interpretação da lei Foto: Matias Ocner/AP

Não surpreende que a Sala Eleitoral tenha sido usada para acobertar as graves violações cometidas pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Entre 29 de julho e 2 de agosto, o presidente do CNE proclamou Maduro presidente-eleito com base em resultados não auditados e não certificados da votação presidencial ocorrida em 28 de julho. A proclamação viola o princípio de transparência eleitoral (Artigo 294 da Constituição; e Artigos 140, 146, e 156 da Lei Orgânica de Processos Eleitorais, LOPRE). Além disso, o CNE não publicou eletronicamente os resultados eleitorais separados por circunscrições de votação, conforme exigido pelo calendário eleitoral. Mais de duas semanas após a eleição, o website do organismo ainda está fora do ar, supostamente em razão de um ciberataque, e tanto os venezuelanos quanto a comunidade internacional seguem no escuro a respeito da autenticidade dos resultados.

Esse não é o único exemplo de malversação eleitoral. Segundo concluiu o Centro Carter, a eleição “não atendeu a padrões internacionais de integridade em nenhum estágio e violou numerosas provisões de suas leis nacionais”. Um painel de especialistas da ONU afirmou que o anúncio do resultado sem tornar públicas as evidências requeridas foi um exemplo de malversação “sem precedente nas eleições democráticas contemporâneas”.

Enquanto uma maioria avassaladora na comunidade internacional pede a publicação das atas eleitorais, a divulgação eletrônica dos resultados e uma auditoria imparcial — em linha com os padrões internacionais e a lei venezuelana — Maduro decidiu repetir um velho truque: pedir ajuda do TSJ, especificamente da Sala Eleitoral, para ocultar o resultado verdadeiro da eleição.

Queixa sem conteúdo

Em 31 de julho, Maduro registrou uma queixa na Sala Eleitoral, de três membros, e no dia seguinte a injunção foi aceita, mas não publicada. Com base em seu resumo, revelado no X, podemos deduzir que o propósito da queixa era conduzir uma “verificação” da eleição de 28 de julho.

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A Sala Eleitoral só tem jurisdição sobre queixas com base na revisão de ações eleitorais específicas, omissões e decisões (Artigo 213, LOPRE). Portanto, a queixa deve identificar seu objeto e as partes envolvidas no caso (Artigo 180, Lei Orgânica do Tribunal Supremo de Justiça, LOTSJ). Até aqui, não emergiu nenhuma informação sobre o conteúdo da queixa de Maduro, e as partes envolvidas no caso são desconhecidas. Portanto, a Sala não conduzirá revisão jurídica de nenhuma decisão do CNE. Pelo contrário, o organismo agirá como uma entidade de verificação, excedendo sua jurisdição, conferida pelo Artigo 297 da Constituição. Para piorar as coisas, para quem busca transparência na existencial série de eventos, o website do Supremo Tribunal também foi tirado do ar, e os julgamentos relativos a este caso não foram publicados.

Para seguir com a tarefa que recebeu, a Sala Eleitoral convocou os dez candidatos que disputaram a presidência para prestar depoimento. Conforme explicou um dos postulantes, Enrique Márquez, eles não receberam nenhuma informação a respeito das condições em que os depoimentos seriam conduzidos. Outro candidato, Antonio Ecarri, declarou que não há nenhuma informação sobre o objeto da queixa. Em outras palavras, ninguém sabe se os postulantes são réus, demandantes ou testemunhas. Além disso, a Sala violou o dever de convocar todas as partes interessadas a participar do processo (Artigos 188 e 189, LOTSJ).

Em outra violação, a Sala Eleitoral concluiu que Edmundo González Urrutia, o candidato que obteve a maioria dos votos, “desobedeceu” as convocações quando decidiu não aparecer diante da autoridade. A afirmação distorceu regras procedimentais: não existe nenhuma obrigação de cumprir uma convocação, porque seu objetivo é prover uma chance de apresentar argumentos (344, Código de Procedimento Civil). De qualquer modo, González Urrutia não teria sido capaz de apresentar argumentos, porque não existe nenhum debate procedimental.

Sem argumentos nem jurisdição

Em uma decisão não assinada e não publicada divulgada pelo perfil do TSJ no Instagram, em 11 de agosto, a Sala Eleitoral resumiu todas as audiências conduzidas. Mas nenhuma foi realizada em acordo com as regras procedimentais.

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A audiência é prevista para os partidos apresentarem seus argumentos e evidências relacionados à disputa. Contudo, não havia argumentos, evidências nem disputas jurídicas neste caso. Consequentemente, a audiência consistiu de procedimentos formais nos quais os candidatos, convocados indiscriminadamente, apresentassem suas opiniões sobre um caso cujos detalhes eram desconhecidos.

No mesmo dia, a Sala Eleitoral também anunciou que tinha competência para verificar os documentos eleitorais. Mas a Constituição e a Lei Eleitoral não autorizam a Sala a verificar resultados de votação. Adicionalmente, sua competência só se aplica sobre fatos em disputa (Artigo 453, Lei de Procedimento Civil), e neste caso não há fatos em disputa nem argumentos.

O Artigo 297 da Constituição da Venezuela expressa claramente que a Sala Eleitoral possui jurisdição sobre queixas eleitorais mas não a atribuição de verificar resultados de eleições — o que cabe à autoridade do Conselho Nacional Eleitoral (Artigo 156, LOPRE). De qualquer modo, a Sala não é um tribunal imparcial para esse tipo de verificação.

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No entanto, o julgamento de “verificação” conduzido pela Sala Eleitoral é tão grotesco que não há espaço para truques e enganos. A verificação dos resultados da eleição presidencial realizada por uma Sala Eleitoral parcial, agindo muito além do escopo de sua autoridade constitucional e após um julgamento sem argumentos, evidências, partidos ou escrutínio público consumará a derrubada da ordem constitucional e a violação dos padrões internacionais de direitos humanos, evitando o exercício efetivo da democracia representativa. A única consequência prática desse julgamento abusivo será o aumento da convicção de que a vontade legítima do povo venezuelano não apoia a autoproclamação de Maduro. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por José Ignacio Hernández

é professor de direito constitucional e administrativo da Universidade Central da Venezuela e da venezuelana Universidade Católica Andrés Bello. É professor convidado da Pontifícia Universidade Católica Madre y Maestra (República Dominicana) e das Universidades de Castilla-La Mancha e La Coruña (Espanha). É associado-sênior do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS) e lidera a pesquisa sobre dívidas públicas na Aurora Macro Strategies. Ele foi procurador especial da Venezuela.

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