‘Nada realmente mudou’: Em Moscou, guerra da Ucrânia parece a um mundo de distância

Cotidiano em Moscou não é afetado pela guerra e favorece política de alheamento praticada por Vladimir Putin

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Por Valerie Hopkins

Em uma tarde recente na Praça Vermelha, em Moscou, uma unidade de elite de paraquedistas vestidos com uniformes camuflados encenava uma dança de batalha com pirotecnia. Um ator egípcio vestido de faraó circulava em uma carruagem empunhando um ankh, o símbolo egípcio ancestral que representa a vida, enquanto uma banda tocava a “Katyusha”, uma canção patriótica de guerra da era soviética.

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Nataliia Nikonova, de 44 anos, era uma das milhares de pessoas vibrando na arquibancada do festival que celebrava os militares da Rússia e as nações amigas, incluindo Belarus, Índia e Venezuela. “Estou tão animada que quase perco minha voz!”, afirmou ela.

O Exército russo trava atualmente uma guerra arrastada, que já deixou dezenas de milhares de mortos e contribui para a inflação global e o aumento nos preços da energia.

Mas Nikonova afirmou que não experimentou muitas perturbações em sua vida nos últimos seis meses.

“Nada mudou realmente”, afirmou ela. “É claro, os preços aumentaram, mas nós conseguimos aguentar isso.” Ela fez silêncio para escutar o bis de “Katyusha” executado pela Banda Sinfônica Militar do Egito.

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Fogos de artifício são disparados em festival militar na Praça Vermelha, em Moscou, no dia 26 de agosto Foto: Nanna Heitmann / NYT

O cotidiano parece ter mudado muito pouco em Moscou, onde as pessoas têm recursos financeiros para arcar com significativos aumentos de preços, ao contrário da população que habita o restante do país. O shopping center de luxo GUM, próximo à Praça Vermelha, está cheio de consumidores – apesar de muitas lojas de marcas ocidentais, como Prada, Gucci e Christian Dior, terem fechado – e restaurantes e teatros prosperam. As ruas de Moscou ainda estão repletas de carros de luxo como Lamborghinis e Porsches.

“Umas poucas lojas fecharam por causa das sanções, o que é frustrante, mas não é assim tão ruim”, afirmou Yuliia, de 18 anos, que acaba de se formar no ensino médio e desfrutava do Parque Gorky, onde os moscovitas tomam banho de sol, dançam e andam de patins. Ela e seus amigos, em um banco do parque, afirmaram que realmente não pensam nos combates na Ucrânia com tanta frequência.

Esse alheamento é exatamente com que o presidente russo, Vladimir Putin, conta enquanto pratica uma política doméstica de proteger seu povo das dificuldades da guerra – nenhuma conscrição, nenhum funeral em massa, nem sensação de perda ou conflito. Grande parte do esforço da Rússia no campo de batalha não sucedeu como Putin havia planejado, mas domesticamente ele foi quase totalmente bem-sucedido em fazer com que a vida na Rússia pareça o mais normal possível.

A maioria dos museus e teatros permanece aberta contanto que suas direções não critiquem o Kremlin, e nas noites de verão, festas em barcos navegam pelo Rio Moscou, e os moscovitas fazem piqueniques sobre a grama. As temporadas de outono das óperas e balés acabam de começar – mas algumas companhias anteciparam suas estreias, e produções em cartaz foram canceladas depois de diretores e artistas terem criticado a guerra ou fugido do país.

“O que os russos fazem normalmente é proteger suas vidas cotidianas”, afirmou o professor de filosofia política Greg Yudin, da Faculdade de Ciências Sociais e Econômicas de Moscou, descrevendo um mecanismo de defesa que data do período soviético, mas se disseminou durante o mandato de Putin.

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“É isso que eles sempre priorizam e nisso que eles se destacam”, afirmou Yudin a respeito dos líderes da Rússia. “E eu diria que eles estão fazendo isso agora com um grau de sucesso considerável.”

Público assiste festival militar na Praça Vermelha, em Moscou. Rotina mudou pouco na cidade desde o início da guerra Foto: Nanna Heitmann / NYT

Mas ainda que muitos moscovitas estejam em festa e abracem conscientemente a ignorância, muitos membros da intelligentsia da capital, cujo trabalho os vinculou com o Ocidente ou com a Ucrânia, têm dificuldades em conciliar a sensação de normalidade com a dimensão de estarem envolvidos na maior guerra terrestre na Europa desde a 2.ª Guerra.

Isso ficou evidente no sábado, na demonstração de simpatia e apreciação pelo ex-líder soviético Mikhail Gorbachev expressada pelos milhares de russos que compareceram ao seu funeral, em um protesto silencioso contra Putin e suas políticas.

Assim que os tanques russos atravessaram para a Ucrânia, afirmou Ania, ela começou a ler livros sobre a ascensão do totalitarismo na Alemanha nazista e se defrontou com o conceito de culpa coletiva.

Lojas de luxo fechadas em Moscou devido às sanções ocidentais contra a Rússia, em imagem do dia 27 de agosto Foto: Nanna Heitmann / NYT

“Isso foi o fim do mundo para tantas pessoas”, afirmou Ania, de 34 anos. Como muitos outros entrevistados para a elaboração desta reportagem, Ania preferiu não informar seu sobrenome por medo de retaliação. “Alguém está matando civis em seu nome”, afirmou ela. “E o seu país está se transformando em algo parecido com a Coreia do Norte.”

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Ania afirmou que foi a um protesto, assinou uma petição contra a guerra e, dias depois, foi convidada a se demitir do emprego que tinha em uma instituição pública.

Por muitos anos, Putin tem reprimido dissidentes e manifestantes, mas atualmente ficou quase impossível expressar decepção com o sistema, e as pessoas que expressam suas posições o fazem sabendo que uma nova lei pune críticas à guerra. Quase 16,5 mil pessoas foram presas sob acusações de protestar contra a agressão na Ucrânia desde 24 de fevereiro, de acordo com a organização de defesa de direitos humanos russa OVD-Info.

Os russos que se opõem à guerra se sentem repudiados e ameaçados pelo governo, ignorados pelo Ocidente – que, segundo acreditam, os culpa por não protestar contra a invasão – e incapazes de promover qualquer mudança.

Celebração de aniversário no centro de Moscou, em imagem do dia 24 de agosto Foto: Nanna Heitmann / NYT

“Todos temos essa sensação de impotência”, afirmou Ania. “O fato de você existir e ter sua opinião não significa nada. Somos 10 ou 20 milhões, e isso não faz nenhuma diferença.”

Moscovitas como Ania passaram os meses que se seguiram ao início do conflito ansiosos e inseguros. Dezenas de milhares deles fugiram. Mas ao longo do verão, a capital retornou em grande parte a uma normalidade sustentada pelo rublo em alta, sobre a oposição silenciada e por meios de comunicação quase completamente sob controle do Kremlin.

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Ainda assim, a sociedade está se transformando gradualmente: Ainda que Putin tenha conseguido infundir uma sensação de normalidade, ele também trabalha para militarizar mais a sociedade russa.

Ao longo das principais vias de Moscou, cartazes exibem imagens de soldados informando sua patente e seu nome, juntamente com um QR code para obtenção de maiores informações. E não faltam eventos que celebram o poderio militar da Rússia.

Milhares de espectadores reuniram-se no campo de treinamento militar de Alabino, a sudoeste de Moscou, ao longo de duas semanas para assistir aos Jogos Internacionais do Exército, festival que inclui categorias como biatlo de tanques, no qual equipes internacionais competem conduzindo tanques através de obstáculos naturais e tentando atingir alvos com seus canhões. (Desde 2013, quando a competição se iniciou, a Rússia sempre ficou em primeiro lugar).

“Tenho visto tanques pela TV todo esse tempo e queria vê-los ao vivo”, afirmou Ilia, de 34 anos, que veio de Moscou com os filhos, de 11 e 4 anos, assistir ao evento. “Acho toda guerra ruim, não estou dizendo que apoio a ‘Operação Militar Especial’ ou que não a apoio”, afirmou ele, usando o termo de Putin para definir as hostilidades na Ucrânia. “Mas confio nos líderes do meu país, e se eles dizem que isso é necessário, é porque isso é necessário.”

Outros afirmaram que assistir a exibição de armamentos no festival militar — incluindo mísseis Kinzhal atualmente usados na Ucrânia — os fez sentir que são fruto de um país forte.

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Andrei Ievgenievich, de 55 anos, que conduziu tanques na Alemanha sob controle soviético nos últimos dias da Guerra Fria, afirmou que a exibição de armamentos o trouxe de volta a sensação dos dias em que a União Soviética era uma potência global forte e temida.

“Quando você vê isso, você tem confiança de que tudo vai bem no seu país, que tudo sucede como deveria”, afirmou ele. “Fomos criados na tradição soviética — e amamos nossa mãe-pátria. Isso traz orgulho ao nosso país.” Sobre as sanções, ele disse: “Não sinto nenhuma diferença. Acho que os Estados Unidos e o Ocidente estão sofrendo muito mais”.

Essa narrativa é comum na TV russa. Os meios de comunicação estatais produzem diariamente segmentos sobre a incerteza que atinge países como a Alemanha, diante dos preços do gás natural e a alta da inflação na Europa e nos EUA.

No campo de treinamento militar, crianças escalavam tanques, incluindo um pintado com a mensagem “Esmaguem os fascistas”, e pessoas de todas as idades disparavam fuzis automáticos. Mas as barracas que convidavam os visitantes a se alistar no Exército permaneciam vazias, exceto pela presença dos recrutadores, indicando que, mesmo que o nacionalismo esteja em ascensão, as pessoas não estão prontas para combater a guerra de Putin.

“Não há muita gente se alistando neste momento”, afirmou um recrutador militar, recusando-se a informar seu nome, entre o ruído dos disparos de um estande de tiro próximo.

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Para as pessoas que não se interessam por jogos militares e estão acostumadas a passar o verão viajando pela Europa, há várias distrações produzidas localmente. Um festival recente no museu de arte ao ar livre Nikola-Lenivets, um paraíso para hipsters a poucas horas da capital, atraiu cerca de 16 mil festeiros para o parque ao longo de quatro dias.

Certa noite, pessoas pintadas com glitter facial, vestindo casacos de pele sintética ou até uma fantasia de água-viva dançavam ao som de um cantor de reggae otimista, que prometia no microfone que não deixaria a Rússia, como tantos outros artistas. A plateia foi ao delírio.

“No começo, pensei comigo mesmo: ‘Uau, tem uma guerra a 400 quilômetros daqui, e estamos em um festival de música’”, afirmou Ivan, de 25 anos, que acabava de voltar para a Rússia, onde nasceu, depois de anos no exterior. Mas finalmente ele relaxou. “A vida segue, principalmente quando não há nada que possamos fazer para controlar a situação”, afirmou ele.

No festival na Praça Vermelha, uma mulher chamada Ekaterina, de 26 anos, técnica de sobrancelhas em um salão de beleza, afirmou que ela e seu namorado, que serve ao Exército, sentiram seus “espíritos se elevarem” pela música. Mas ela afirmou estar “preocupada com os homens de ambos os lados da linha de frente”. “Aqui, as pessoas agem como se nada estivesse acontecendo. Aqui é um mundo, e lá”, afirmou ela, referindo-se ao campo de batalha, “é um mundo completamente diferente”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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