THE NEW YORK TIMES, COLOMBO, Sri Lanka — Selwi Thangawelu enfrentou uma fila de mais de 14 horas para conseguir um passaporte, desesperada para escapar da crise econômica que toma o Sri Lanka. Nascida no país, mãe de dois, ela conseguiu trabalho como governanta no Kuwait — e com o dinheiro do salário será capaz de pagar pelas mensalidades da escola dos filhos e pelos livros. O emprego de seu marido, comocoletor de lixo, não é mais suficiente para cobrir os gastos com alimentos e combustível, cujos preços foram às alturas à medida que a situação no Sri Lanka fica cada vez pior.
Por três semanas, Thangawelu e seu marido sobreviveram comendo arroz puro, reservando às crianças os legumes que pudessem comprar. “Tenho um pouco de medo”, afirmou ela, “mas não há como ficar”.
Sri Lanka, um país insular com aproximadamente 22 milhões de habitantes, já foi uma esperança econômica, com uma população altamente escolarizada, uma classe média consolidada e uma renda média per capita entre as mais altas no Sul da Ásia. Agora, muitas pessoas estão vivendo à beira da pobreza, incapazes de comprar itens básicos.
As prateleiras dos supermercados estão vazias, e os preços dos alimentos ainda disponíveis são cada vez mais inacessíveis. A oferta de combustível é tão baixa que as pessoas passam dias na fila para conseguir uns poucos litros. Algumas pessoas definham em casa, enquanto outras viajam longas distâncias a pé — que virou o principal tipo de tráfego nas vias do país, até um mês atrás repletas de carros e riquixás motorizados.
“É a primeira vez que minha vida fica tão difícil”, afirmou o agricultor Deyarathna Liyanage, de 80 anos. A família dele está entre as mais afortunadas. Num momento em que muitos passam fome no país, Liyanage e seus parentes conseguem subsistir com sua horta, suas bananeiras e o arroz que produzem em um pequeno campo.
“Não há o que comer. Não há gasolina. Não temos para onde ir”, acrescentou ele. “Não temos mais nada.”
A crise econômica culminou no fim de semana passado com as milhares de pessoas que invadiram a residência oficial do presidente Gotabaya Rajapaksa exigindo sua renúncia. Uma turba também incendiou a residência particular do primeiro-ministro Ranil Wickremesinghe.
Após uma epopeia que começou com uma fuga do palácio presidencial por uma porta lateral e de ser barrado no aeroporto, Rajapaksa conseguiu deixar o país em um avião militar com destino às Maldivas. Nesta quinta-feira, 14, o presidente chegou a Cingapura, de onde renunciou ao cargo em um e-mail encaminhado ao presidente do Parlamento.
Quem quer que acabe governando o Sri Lanka herdará uma crise sem solução simples. O país está essencialmente quebrado, e as agruras financeiras são intensificadas pela crescente inflação global. Credores vitais, como a Índia, indicaram que sua generosidade tem limites, deixando o Sri Lanka sem muita capacidade para importar o combustível, os alimentos e os medicamentos de que tanto precisa.
Os cidadãos comuns do Sri Lanka estão pagando o preço pela má gestão e pelos erros do governo.
Liyanage costumava contribuir com o orçamento familiar vendendo arroz, que ele cultivava usando fertilizantes químicos fornecidos pelo governo. As autoridades baniram os fertilizantes da noite para o dia, prejudicando as colheitas. Depois da política mal orientada ser suspensa, os preços dos fertilizantes foram às alturas, e o governo parou de distribuir os produtos.
Liyanage usa agora terra compostada, que segundo ele resultou em colheitas equivalentes a um quinto de sua produção anterior.
“Antes, os lucros eram bons com o arroz”, afirmou ele. “Agora, temos prejuízo quando vendemos, mas ainda é mais barato cultivar do que comprar.”
Mohammed Rafiq, que vende mangas e mangostões nas ruas, tem tão poucos clientes que baixou os preços pela metade, apesar de estar pagando mais para seu fornecedor no sul do Sri Lanka.
Há “menos comida, menos eletricidade”, afirmou Rafiq, pai de quatro. “Menos tudo.”
As ruas de Colombo estão praticamente sem carros agora, exceto pelos veículos estacionados em longas filas que se estendem por vários quarteirões, à espera de sua vez nos postos de combustíveis. A cada poucos dias, o ministro da Energia do Sri Lanka posta no Twitter atualizações a respeito da chegada de carregamentos de diesel e gasolina — e as pessoas se apressam para abastecer os veículos.
Hamdan Fawmy, que transporta turistas para praias famosas e templos budistas do Sri Lanka, mal trabalhou nos meses mais recentes. O turismo, que já foi vital para a economia do país, evaporou, primeiramente atingido pela pandemia de covid e depois pela crise.
Fawmy ficou quatro dias na fila dentro de seu SUV compacto recentemente para reabastecer o veículo. Com cotas restritas em vigor, ele conseguiu combustível suficiente para circular apenas dois dias.
Fawmy teme que o sucesso dos manifestantes — em forçar Rajapaksa a renunciar — apenas tornará pior a situação. “Se não houver governo terei de esperar oito dias na fila, então? Ou não haverá absolutamente nenhum combustível?”.
As desigualdades no país se aprofundaram junto com o desespero. Para uma pequena fatia da população, o colapso econômico não passa de um inconveniente, distante de uma penúria verdadeira. Os cidadãos mais ricos, com acesso a fundos depositados fora do país, conseguem contornar facilmente as pressões inflacionárias, dada veloz queda no valor da rúpia do Sri Lanka.
Nas prateleiras do Keells, um sofisticado supermercado, havia abundância e variedade de produtos frescos e grãos, apesar dos preços terem triplicado desde abril. As prateleiras de artigos importados como sorvete, chocolate e bebida alcoólica estavam vazias.
No domingo, mulheres vestidas com saris requintados e homens trajando ternos sob medida encheram o salão de baile do Kingsbury, um dos hotéis de luxo de Colombo, para uma elaborada cerimônia de noivado. Um dia antes, manifestantes com os olhos queimando em razão do gás lacrimogêneo encontraram as portas do hotel trancadas.
“Os pobres e a classe média do Sri Lanka mostraram que são muito politizados, que perderam a paciência, que estão prontos para agir e adotar a ação direta em qualquer momento”, afirmou o cientista político Jayadeva Uyangoda, que leciona na Universidade de Colombo.
A crise tirou dos trilhos anos de progresso. As escolas foram fechadas nas semanas recentes em uma tentativa de economizar combustível. Faltam nas farmácias medicamentos que não necessitam prescrição. Empresas forçaram funcionários a aceitar cortes salariais.
Diretora de recursos humanos de uma empresa do Sri Lanka, Gimhanikari Yawasam, de 41 anos, teve de realizar atendimentos difíceis, a funcionários indignados com os recentes cortes de salário. “No nível organizacional, estamos fazendo o nosso melhor para dar apoio ao bem-estar deles, mas o que podemos oferecer é limitado”, afirmou ela.
Yawasam e outros funcionários passaram a trabalhar remotamente semanas atrás, já que as opções de transporte público desapareceram em razão da oferta praticamente nula de combustível no país.
Em casa, ela e seus filhos têm seu trabalho e estudo interrompidos com frequência por cortes de energia. Quando sua mãe sofreu uma infecção estomacal recentemente, Yawasam não conseguia encontrar antibióticos.
“Estamos com muitas dificuldades em muitos aspectos, mas agora a situação ficou crítica”, afirmou ela.
Cada vez mais cidadãos do Sri Lanka ficam dispostos a se juntar à diáspora de 3 milhões de emigrados, muitos deles refugiados da guerra civil no país, que terminou em 2009.
Em meio à crise, as pessoas têm esperado dias na fila do departamento de emissão de passaportes em Colombo. Dezenas de cidadãos tentando fugir de barco foram resgatados no Oceano Índico pela guarda costeira australiana.
Paramasivam Satheesh, de 36 anos, dirigiu um riquixá motorizado — o meio de transporte público mais popular em Colombo — por 15 anos. A espera por combustível ficou tão longa que ele parou de pegar passageiros.
Satheesh usa agora o pouco combustível de que ainda dispõe para ir com sua mulher, Ganesan Kajanthiny, de 35 anos, e seu filho de 5 anos, Magadheesh, até Galle Face, um parque de frente para o mar.
Por lá, eles recebem comida grátis fornecida no acampamento improvisado do protesto, instalado há meses com a missão de forçar a renúncia de Rajapaksa.
Satheesh teme que a manifestação acabe cedo demais. “Se pararem de nos dar isso, teremos que mendigar nas ruas”, afirmou ele.
Seu plano, caso a escassez de combustível alivie, é voltar a pegar passageiros e ganhar dinheiro suficiente para solicitar um passaporte. Com o documento, ele poderia procurar trabalho como soldador na Europa ou no Oriente Médio e vender seu riquixá motorizado. Olhando para sua mulher no banco de trás do veículo, ele disse, “Ela ficará bem sozinha”./ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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