Todas as condições estavam presentes para uma onda, mas, no fim, parece que os republicanos geraram pouco mais do que uma marola vermelha.
Ao término de uma campanha na qual as condições fundamentais para os democratas pareciam desastrosas — a maior inflação em 40 anos, um presidente pouco popular — os republicanos não foram capazes de nada melhor do que terminar a noite ainda lutando aqui e ali pelos assentos de que necessitavam para retomar o controle do congresso, o mínimo que poderiam descrever como vitória.
Todos os indicadores apontavam para, na melhor das hipóteses, um dos desempenhos mais fracos das décadas mais recentes em se tratando de um partido da oposição contra o partido de um presidente no primeiro mandato, muito diferente das grandes vitórias republicanas de 1994 (54 assentos no congresso contra o presidente Bill Clinton) e 2010 (63 assentos contra o presidente Barack Obama).
Assim, os Estados Unidos saem dessas eleições de meio de mandato mais ou menos iguais: um país profundamente dividido que segue ancorado em uma faixa estreita do espectro político, suficientemente insatisfeito com o presidente Biden para escolher um governo dividido, mas sem o desejo de se entregar à dinâmica política abertamente conflituosa promovida pelo ex-presidente Donald Trump.
A própria polarização do país funcionou como contrapeso, com as paixões de cada lado se anulando mutuamente.
No primeiro teste nacional do ambiente político depois do ataque ao Capitólio que acabou com as pretensões de uma transferência pacífica do poder, de uma pandemia que perturbou a sociedade e de uma decisão da Suprema Corte que acabou com o direito constitucional ao aborto já há muito estabelecido, o eleitorado produziu um impasse — resultado que, para os democratas, foi visto como vitória.
Eles reprovaram Biden levemente. Mas também demonstraram pouco interesse pela abordagem incendiária que Trump disseminou no Partido Republicano.
Para os democratas, a eleição não foi apresentada como um referendo do governo Biden, e sim como um veredicto do estado da democracia americana, uma oportunidade de rejeitar a mentira segundo a qual a eleição de 2020 teria sido roubada.
Mas, desde os primeiros dias das primárias até os momentos finais da campanha, Trump e seu partido seguiram sustentando essa premissa falsa, promovendo implacavelmente suas alegações desprovidas de evidências e indicando que rejeitariam resultados eleitorais que representassem para eles uma derrota.
Entenda o resultado das eleições nos EUA
Como evidência do quanto essa mentira se enraizou no partido, mais de 200 negacionistas das eleições tomarão posse nos níveis nacional e estadual em janeiro. E a Flórida, que emergiu como centro do poder republicano durante a pandemia, produziu grandes margens para o partido, convertendo para si condados tradicionalmente democratas como Miami-Dade e Palm Beach.
Mas, pela terceira vez, como em 2018 e 2020, o eleitorado demonstrou o limite da sua tolerância à cepa perniciosa da política da era Trump, que em certos momentos parece aceitar ou até estimular a violência e que questiona um dos alicerces da democracia: os eleitores votam, e os políticos aceitam os resultados.
Algumas das figuras mais beneficiadas pelo apoio de Trump — como Mehmet Oz, candidato republicano ao senado pela Pensilvânia, Doug Mastriano, candidato republicano ao governo da Pensilvânia, e Don Bolduc, candidato republicano ao senado por Nova Hampshire — foram derrotadas (outras, como like J.D. Vance, candidato republicano ao senado por Ohio, venceram a disputa).
Hillary Scholten, candidata democrata ao congresso por um distrito no oeste de Michigan, venceu John Gibbs, um republicano recrutado por aliados de Trump para enfrentar nas primárias o congressista Peter Meijer, atacado pelo ex-presidente por ter votado a favor do seu impeachment.
Em Nova Hampshire, o congressista Chris Pappas, candidato democrata moderado, venceu a adversária republicana de extrema-direita, Karoline Leavitt. E, em uma surpreendente vitória nos subúrbios de Raleigh, Carolina do Norte, o democrata Wiley Nickel venceu o republicano Bo Hines, visto pela ala de Trump como astro em ascensão.
Candidatos como John Fetterman, democrata da Pensilvânia que conquistou seguidores com seu populismo voltado ao trabalhador, conseguiram desafiar o peso da reprovação a Biden pelo mérito de seus próprios perfis políticos.
“Seguramos a investida deles”, disse Fetterman após vencer em uma disputa pelo senado na qual ele teve resultados melhores do que Biden em boa parte do estado. “Nunca imaginei que conseguiríamos converter essas áreas republicanas, mas fizemos o que tinha de ser feito.”
Mesmo nos últimos dias de campanha, os republicanos diziam ser capazes de expandir seu mapa, conquistando território consolidado pelos democratas desde Rhode Island até a costa noroeste do país. Conseguiram ao menos uma vitória importante em território democrata na noite de terça feira, derrotando o congressista Sean Patrick Maloney, de Nova York, diretor do braço da campanha democrata na câmara.
“Nunca imaginei que conseguiríamos converter essas áreas republicanas, mas fizemos o que tinha de ser feito.”
John Fetterman, democrata eleito para o Senado na Pensilvânia
“Nos estados democratas, temos a impressão de que o governo errou”, disse Dan Conston, presidente do Congressional Leadership Fund, um supercomitê republicano de ação política, pouco antes do dia da votação. “A Covid foi mal administrada, o policiamento segue parâmetros estranhos, as escolas passaram tempo demais em lockdown e há problemas econômicos.”
Mas os democratas evitaram derrotas expressivas, ao menos em parte transformando a disputa em uma escolha entre normas democratas e uma alternativa de extrema-direita, em vez de um referendo sobre um presidente impopular.
Nada se viu das ambiciosas mensagens propondo amplas mudanças estruturais em uma série de questões envolvendo economia e desigualdade racial como visto nas primárias presidenciais do partido democrata em 2020 Democratic presidential primary. Poucos candidatos ousaram nas plataformas.
Em vez disso, os democratas mostraram os ganhos mais incrementais conquistados por suas pequenas maiorias: melhorias nas estradas, agilidade para começar a manufatura de semicondutores, auxílio para veteranos expostos a substâncias tóxicas e limites para o custo de alguns medicamentos controlados e para a insulina via Medicare.
Eles tentaram promover uma sensação de progresso ao enfrentar os problemas mais sentidos pelo eleitorado no seu cotidiano — preocupações com a criminalidade, a alta dos preços e o endividamento estudantil, entre outras.
Eleições de meio de mandato
Os democratas e seus aliados gastaram mais de US$ 450 milhões em anúncios defendendo o direito ao aborto. Prometeram tentar transformar em lei o direito constitucional representado pela decisão Roe vs. Wade, agora refutada — feito que exigiria manter o controle do congresso e também obter o apoio necessário para superar o obstáculo de uma regra do senado que requer 60 votos para a aprovação da maioria das leis. Mas, além disso, ofereceram apenas planos limitados diante de uma mudança abrupta que afeta mais de 22 milhões de mulheres nos estados onde o acesso ao aborto é proibido ou fortemente limitado.
No fim, a estratégia democrata foi criar um contraste com uma maioria republicana representada por eles como distante da população em se tratando de assuntos como o direito ao aborto, a proteção do Medicare e da previdência social, e a tributação das empresas e dos americanos mais ricos.
O aborto se revelou um tema motivador, como esperavam os democratas, ajudando a reforçar uma série de candidatos do partido que exploraram o tema, incluindo a congressista Abigail Spanberger, da Virgínia, a governadora Gretchen Whitmer, de Michigan, Josh Shapiro, que venceu a eleição para governador na Pensilvânia, e a senadora Patty Murray, de Washington.
Os eleitores de Michigan, Kentucky, Califórnia e Vermont indicaram seu desejo de preservar ou expandir o direito ao aborto votando nas proposições relacionadas.
E em Wisconsin e na Carolina do Norte, os republicanos não alcançaram supermaiorias legislativas que teriam permitido ao partido aprovar prioridades próprias como a proibição ao aborto, superando o veto do governador.
Pesquisas de boca de urna indicaram que, no geral, a economia e a inflação foram os principais assuntos para o eleitor, com os republicanos como favoritos para consertar a incerteza econômica. Mas a questão do aborto trouxe muita gente às urnas, com 27% do eleitorado dizendo ser essa a principal questão envolvida no seu voto.
Os 60% do eleitorado que se disseram insatisfeitos ou furiosos com a reversão da decisão Roe apoiaram majoritariamente os democratas. Os eleitores que se disseram apenas contrariados se dividiram entre republicanos e democratas.
Biden ainda deve enfrentar as dificuldades de um congresso de maioria republicana ansioso para investigá-lo ou mesmo abrir um processo de impeachment. Mas será mais fácil evitar as críticas internas do seu partido, que há meses questiona silenciosamente sua força política e capacidade para um segundo mandato.
Para Trump, o resultado pode reembaralhar a dinâmica para 2024. Ele deixou claro que planeja anunciar que concorrerá pela terceira vez na semana que vem. Mas os resultados ambíguos obtidos por ele nas eleições intercalares contrastam com aqueles do seu principal oponente republicano, o governador da Flórida Ron DeSantis, que foi reeleito com vantagem de dois dígitos, superando muito o desempenho nacional do partido, e conquistou redutos democratas no sul do estado.
“A liberdade veio para ficar”, disse DeSantis a um público extático no seu comício de vitória na noite de terça feira. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.