Desde o ataque terrorista do Hamas em Israel em 7 de outubro, milhares de israelenses que moravam próximos à Faixa de Gaza e da fronteira com o Líbano precisaram abandonar suas casas por causa do terror que se instalou no país. Elas seguem sem data para voltar, vivendo em hotéis e de favor, enquanto Israel trava uma guerra há mais de 100 dias que falha no resgate de todos os reféns e deixa mais de 20 mil palestinos mortos. No centro da crise no país, está o governo de Binyamin Netanyahu, colocado em xeque dentro e fora de Israel pela política relacionada a Gaza antes e depois de 7 de outubro.
Segundo analistas, o massacre dos civis israelenses pelo grupo terrorista Hamas fez Israel repensar toda política de segurança implementada por anos com relação à Faixa de Gaza e a Cisjordânia. Essa política consistiu em abandonar esforços para a convivência pacífica com palestinos, construir muros e aumentar a tecnologia de defesa para repelir os ataques de outro lado. No dia 7, ela se mostrou falha de um modo traumático para Israel, no pior episódio contra judeus desde o Holocausto.
À frente de Israel por mais tempo do que qualquer outro primeiro-ministro, Netanyahu é visto internamente como o responsável pela política que vigorava e, portanto, o principal culpado por suas falhas. Menos de um mês após o ataque do Hamas, no auge da união de israelenses para agir contra o grupo terrorista, uma pesquisa conduzida pela Universidade israelense de Bar-Ilan indicou que apenas 4% dos civis tinham confiança no premiê para gerir o país na guerra.
Mais de 100 dias depois, a desconfiança e rejeição total contra o premiê continuam. Famílias atingidas pelo 7 de outubro e sobreviventes cobram Bibi pela libertação de reféns e reconstrução e segurança de suas casas e não encontram soluções. Ao contrário, o governo tem prestado pouca assistência social a estes, apresentou um projeto orçamentário este ano que a diminui ainda mais e falha na garantia de segurança ao não conseguir dissuadir uma guerra mais ampla, que inclui conflitos com o Hezbollah na fronteira com o Líbano. Episódios como a morte de três reféns pelo Exército israelense agravam a crise interna.
Nenhum plano para o pós-guerra, ou seja, para o futuro de Israel e a sua relação com os povos árabes vizinhos, incluindo os palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, também foi apresentado.
“A carreira política de Netanyahu está terminada”, disse Henri Barkey, professor da Universidade de Lehigh, na Pensilvânia, e pesquisador do Conselho de Relações Exteriores (CFR, na sigla em inglês).
Sobrevivência política
Para a pesquisadora Monique Sochaczewski, do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e professora do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), a única razão pela qual Binyamin Netanyahu permanece no poder é o estado de guerra pós-7 de outubro, que uniu Israel para a luta contra o Hamas e torna o risco de uma troca de comando muito alto. “Para ele, a manutenção da guerra o permite no poder. Não se discute o fim do governo. E tem algumas questões: há 130 reféns e há foguetes e mísseis lançados contra território israelense. Na narrativa dele, a guerra precisa se manter”, declarou.
Enquanto o elo entre o poder e a guerra se manter, disse Monique, o risco é que as decisões do governo sejam influenciadas pelo apego de Bibi, como é chamado, ao cargo. O premiê promete exterminar o Hamas, mas não está claro em que momento isso será considerado. “Existe o risco da guerra ser estendida para ele permanecer onde está. Já está claro que Bibi tem apego ao poder”, afirmou a analista.
Netanyahu conseguiu reunir em um primeiro momento políticos centristas para atuar no governo de união nacional montado para a guerra, a exemplo do general e ex-ministro da defesa Benny Gantz, mas passou a ser pressionado a renunciar ao cargo mesmo em meio aos combates. Políticos como o ex-primeiro-ministro Yair Lapid pediram publicamente a renúncia e se articularam com o partido de Bibi, o Likud, para ele ser substituído. Jornais nacionais relevantes, como o Hareetz, escrevem editoriais pedindo a sua saída. Milhares de civis israelenses foram às ruas nos últimos meses pelo mesmo motivo.
Segundo Monique, isso explica por que Israel não apresentou nenhum plano para o pós-guerra. “Netanyahu não está mais governando para os israelenses. Ele parece governar para os extremistas que formam o governo, ortodoxos e colonos, que ele se aliou para estar no poder”, afirmou.
Pressão internacional
A atuação de Israel na Faixa de Gaza contribuiu para o crescimento da pressão internacional contra Netanyahu. Desde o início da guerra, Israel foi acusado de punir e matar civis com ataques a estruturas como hospitais e escolas, bloqueio de ajuda humanitária e declarações de governo que culparam todos os palestinos pelo terrorismo.
Essas ações em Gaza foram usadas como argumento na polêmica acusação da África do Sul na Corte Internacional de Justiça (CIJ) de que Israel comete o crime de genocídio na Faixa de Gaza. Segundo analistas, elas minaram a reputação internacional de Israel, incluindo com o seu aliado mais próximo, os Estados Unidos, que pressionaram o país a mudar a abordagem em Gaza para uma estratégia menos letal, e retrocederam a relação de Israel com os vizinhos árabes.
Essas ações em Gaza foram fundamentais para a acusação da África do Sul na Corte Internacional de Justiça (CIJ) de que Israel comete o crime de genocídio na Faixa de Gaza. Segundo analistas, elas minaram a reputação internacional de Israel, incluindo com o seu aliado mais próximo, os Estados Unidos, que pressionaram o país a mudar a abordagem em Gaza para uma estratégia menos letal, e retrocederam a relação de Israel com os vizinhos árabes.
Escolhas políticas de Bibi anteriores ao 7 de outubro também contribuem para a pressão internacional contra ele, e muitas seguem em andamento. É o caso da ocupação ilegal por colonos, que apoiam e compõe o seu governo, de áreas da Cisjordânia que pertencem aos palestinos.
Algumas atitudes posteriores ao ataque terrorista são consideradas parte destas mesmas escolhas políticas, que abandonam os esforços de convivência com os palestinos: trabalhadores da Cisjordânia estão impedidos de entrar em Israel; impostos que devem ser repassados à Autoridade Palestina estão em parte retidos; e comparações da organização, que comanda a Cisjordânia, com o Hamas são feitas de forma errônea por membros do governo.
Para observadores de Israel, as ações elevam os riscos de uma outra frente de guerra e de uma onda de terror. “Um surto de segurança na Cisjordânia e a abertura de outra frente na guerra é um perigo que deve ser evitado. Infelizmente, o governo só está colocando lenha na fogueira”, escreveu o editorial do Haaretz na quarta-feira, 17.
Eles citam como consequência da política a ação terrorista na cidade de Ra’anana, que resultou na morte de uma idosa e no ferimento de outras 18 pessoas em atropelamentos e ataque a facas. Os suspeitos eram dois palestinos que estavam ilegalmente no país.
Outras frentes de guerra
Como deixa claro o editorial do Haaretz, o temor em Israel é que a estratégia de Netanyahu agrave a crise de segurança no Oriente Médio e abra novas frentes de guerra. No norte, Israel tem entrado em conflito com combatentes do Hezbollah. Algumas ações na região, como assassinatos do número 2 do Hamas, Saleh al-Arouri, em Beirute, capital do Líbano, e de uma liderança do Hezbollah, Wissam al-Tawil, aumentam os riscos de uma guerra mais ampla.
Analistas afirmam que não é do interesse de Bibi ter uma frente de guerra ampla com o Hezbollah, já que isso significaria a divisão da força de combate e dificultaria as operações. Entretanto, o premiê não apresenta nenhuma alternativa para dissuadir os combates. “Tem um número muito grande civis retirados no norte. Isso é um problema que aumenta a pressão sobre o Bibi”, disse Monique Sochaczewski.
Quando as hostilidades no norte começaram, após o 7 de outubro, algumas autoridades do governo de Netanyahu, incluindo o ministro de Defesa, Yoav Gallant, eram a favor de um ataque preventivo ao Hezbollah. Eles acreditavam que Israel não podia permitir ameaças em suas fronteiras após a ação do Hamas e que deveriam ter a iniciativa para surpreendê-los. A chegada de Benny Gantz ao governo, com a formação da coalizão, contribuiu para o governo adotar mais cautela. Os EUA também auxiliaram para dissuadir os riscos na região, com o envio de porta-aviões para a costa do Líbano, e convenceram os israelenses a esperar.
Os EUA continuam agindo para dissuadir a frente de guerra no Líbano, tanto em diálogo com Israel quanto com os países árabes, apesar da atenção nas últimas semanas se voltar para as ações do grupo Houthi no Mar Vermelho. Diversas bases militares do grupo apoiado pelo Irã foram atacadas pelos americanos e britânicos nos últimos dias para neutralizar as ações do grupo, que, assim como o Hezbollah, é aliado do Hamas e alega agir em protesto à ofensiva israelense na Faixa de Gaza.
Para analistas, os americanos podem ser o ator decisivo para pressionar o fim da guerra e a apresentação de um plano de reconstrução da segurança para a região (os EUA têm defendido publicamente a solução de dois Estados), a despeito das ações de Netanyahu. “Bibi quer ganhar [a guerra] porque ele sabe que está indo para o lixo da história de Israel. Por isso, acredito que Joe Biden terá um papel de liderança no momento de encerrá-la”, disse Henri Barkey, do CFR.
“Haverá um ponto em que Biden deve chegar para ele e falar: Bibi, você fez o suficiente. Você vai ter que aceitar o fim da guerra”, continuou o analista. As condições para isso, acredita, passam no mínimo pela libertação de todos os reféns.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.