Esta entrevista foi dividida em duas partes para facilitar a leitura. Leia aqui a primeira parte.
BRASÍLIA - Quem ousa levantar a voz contra Vladimir Putin na Rússia pode ser classificado como “agente estrangeiro” ou “organização indesejada”, rótulos oficiais que, nos dois casos, estigmatizam pessoas e entidades e cerceiam liberdades. Ou, mais recentemente, corre o risco de ser multado e preso sob acusação de espalhar “desinformação” ou de “desacreditar” as Forças Armadas russas. É o que relatam os ativistas exilados Grigori Vaipan, de 34 anos, Tamilla Imanova, de 28 anos, e Daria Guskova, de 29 anos.
“Não há espaço para a política, não há espaço para eleições livres e justas, não há espaço para a livre expressão. A Rússia é um país em tempo de guerra governado por um autocrata brutal”, diz o advogado Vaipan.
Procurada pelo jornal, a embaixada russa no Brasil rebateu a versão dos exilados e disse que eles agem “sem dúvidas remunerados por agências ocidentais”.
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Os três, direta ou indiretamente, estão na mira das autoridades russas. Vaipan foi tachado pelo governo como “agente estrangeiro”, um selo depreciativo que lhe confere um status similar a “traidor da pátria”, em uma sociedade ainda marcada pela era soviética. O centro de direitos humanos Memorial e o site independente Mediazona, a que pertencem, receberam a mesma designação, o que por tabela atinge e limita o trabalho da defensora Tamilla, da jornalista Daria e de seus colegas.
Eles falaram com exclusividade ao Estadão sobre a decisão de partir para o exílio, dos riscos e da “perseguição transnacional”, diante de casos de opositores de Putin mortos envenenados ou assassinados em circunstâncias ainda misteriosas, supostamente vinculados ao serviço secreto de Moscou.
“Ninguém está seguro no mundo enquanto Putin estiver no poder”, diz Grigori. “Ninguém sabe quem vai ser o próximo. Você não precisa ser o líder da oposição russa para virar alvo.” “Voltar para a Rússia neste momento é uma questão proibida”, afirma Tamilla. “Temos muitos motivos para algo ruim acontecer conosco ou com nossos parentes”, concorda Daria.
Eis a segunda parte da entrevista na qual explicam em detalhes as quatro frentes de repressão do Kremlin, discutem o futuro da Rússia e quem pode liderar a oposição após a morte de Alexei Navalni.
“Haverá, com certeza, uma Rússia após Putin. É essencial que, nesse momento, haja políticos responsáveis e líderes da sociedade civil que assumam e garantam que a Rússia comece um difícil processo de transição”, afirma Vaipan.
Por que vocês tiveram que deixar de viver na Rússia?
Daria: Eu lidero o departamento de notícias da Mediazona. Reportamos sobre repressão política, censura e, claro, sobre a guerra na Ucrânia. Nossa equipe tem duas partes. A maior parte de nós vive fora da Rússia, mas a segunda parte ainda continua trabalhando dentro da Rússia. É realmente arriscado, muito difícil, mas ainda é importante.
Em 2021, nosso editor-chefe foi preso por um retweet. Um usuário do Twitter (atual X) criou uma foto de um músico que apoiava Alexei Navalni e este músico se parecia com nosso editor-chefe. Ele retweetou por diversão, uma piada, e foi motivo para prendê-lo.
Depois nosso site foi rotulado como “agente estrangeiro”. Tentamos seguir a lei porque queríamos trabalhar na Rússia e ter nosso site desbloqueado pelo maior tempo possível.
Em 2022, após a invasão em grande escala da Ucrânia, nossas autoridades criaram algumas novas leis e uma delas era sobre espalhar informações falsas. O que isso significa? Significa que se você quiser escrever algo sobre a guerra deve usar apenas fontes oficiais da Rússia. Se você quiser reportar os dois lados, como faz um jornalista, isso pode ser considerado informação falsa. O regulador de censura nos enviou uma carta em março de 2022 dizendo que deveríamos deletar todo o site porque estávamos espalhando falsidades ou seríamos bloqueados em 24 horas.
Como funciona esse órgão regulador de censura?
Tamilla: O nome completo é Serviço Federal para Supervisão de Comunicações, Tecnologia da Informação e Mídia de Massa. Roskomnadzor é a abreviação russa.
Daria: É uma agência governamental, um regulador da internet e de conteúdo. Eles verificam todos os sites e tentam encontrar alguma informação ilegal.
Grigori: No contexto da guerra na Ucrânia, o órgão oficial é o Ministério da Defesa da Rússia. Se o ministério diz que atacou uma instalação militar, você não pode dizer que, na verdade, o míssil atingiu um prédio de apartamentos civis. Se fizer isso, de acordo com o governo russo, você está espalhando desinformação.
Que outras mudanças levaram ao recrudescimento sobre opositores e imprensa a partir da guerra na Ucrânia?
Grigori: Temos dois artigos relevantes, um no código penal e outro no código administrativo, uma espécie de código penal mais leve. Um é a “desinformação”: espalhar desinformação sobre o exército russo. E o segundo artigo é a chamada “descredibilização”. Descredibilização significa que você não pode criticar o exército russo. O exemplo mais simples de desacreditar é dizer “eu sou contra a guerra”. Se disser isso, você é passível de punição.
As autoridades russas falam “operação militar especial” em vez de “guerra” para se referir ao que ocorre na Ucrânia. E vocês?
Daria: Nós não podemos, mas claro que usamos a palavra guerra. Mas isso poderia ser a razão para algum processo administrativo.
Grigori: A Rússia é um país profundamente autoritário e um dos traços é a arbitrariedade. Você nunca sabe quais palavras exatas podem levar você à prisão. Três semanas após a invasão em grande escala, um conselheiro municipal de Moscou falou, durante a reunião do conselho local, que se oporia a qualquer festividade em seu distrito enquanto crianças estivessem morrendo todos os dias nesta guerra de agressão que a Rússia trava. Ele foi processado por usar a palavra guerra especificamente e condenado a sete anos de prisão por espalhar desinformação.
Tamilla: Ele recebeu agora mais três anos de pena, por estar supostamente conversando com seus companheiros de cela na prisão, falando sobre a guerra e coisas pró-Ucrânia. Foi acusado de justificar o terrorismo. Nem sabemos se ele realmente falou com eles. Mas assim funciona a lei russa.
A conversa na cela era monitorada?
Tamilla: Tudo na prisão é monitorado.
Daria: Ou talvez eles simplesmente pediram aos companheiros de cela para mentirem sobre ele.
Tamilla: Assim eles podem prendê-lo por mais tempo. Quando você está na prisão, qualquer coisa pode acontecer. Você pode ser torturado até confessar, podem subornar seus companheiros de cela para que digam algo sobre você.
Os réus têm acesso regular a advogados? No caso de Alexei Navalni, por exemplo, ele estava no Ártico. Como a família e seus advogados poderiam acessá-lo?
Tamilla: Advogados podem visitar seus clientes, mas existem vários obstáculos, como a arbitrariedade do chefe local da prisão, que pode alegar que está fechado para visitação, mesmo tendo sido agendado. E é muito provável que todas as conversas sejam monitoradas, por alguma pessoa perto ou uma câmera. Você nunca pode confiar que a conversa é realmente confidencial. Preferimos escrever no papel em vez de falar.
Grigori: Os advogados na Rússia estão cada vez mais sob ataque. O fato de estarmos aqui testemunha isso. Tivemos que sair do país por causa do risco de perseguição. Mas os advogados que ficaram na Rússia, alguns deles vão para a prisão por seu trabalho como advogados.
Três advogados de Alexei Navalni, a principal figura de oposição na Rússia, agora estão sendo julgados por serem supostamente co-conspiradores de Navalni. Estão sendo processados exclusivamente por se encontrarem com seu cliente. Literalmente. O caso se baseia nos fatos deles irem à prisão e fazerem anotações do encontro. A alegação é que, por serem advogados de Navalni, eles faziam parte de sua empreitada criminosa, porque o partido de Navalni e sua organização foram declarados criminosos na Rússia. Viraram criminosos por fornecer assistência jurídica.
Por que na Rússia vemos réus dentro de uma jaula de ferro ou um domo de vidro durante os julgamentos?
Grigori: Essas jaulas são um símbolo do sistema repressivo da Rússia. É uma vergonha. O propósito é principalmente a estigmatização. Não era assim na União Soviética, começou faz cerca de 30 anos. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos em Estrasburgo, na França, do qual a Rússia fez parte por mais de 25 anos, repetidamente constatou que colocar os réus em uma jaula de metal ou vidro viola a proibição contra tratamento degradante. Houve algumas discussões entre autoridades russas sobre remover essas jaulas, mas não aconteceu.
Se você é acusado de um crime grave ou é uma pessoa famosa, um ativista de oposição ou político, então você provavelmente será colocado em detenção preventiva, aguardando julgamento, e tem que estar em uma jaula sempre que for ao tribunal.
O que significa ser um “agente estrangeiro” e quem classifica uma pessoa ou uma organização assim?
Grigori: Tecnicamente, é o Ministério Federal da Justiça quem decide, mas sabemos definitivamente que é o Kremlin que toma essas decisões, muitas vezes com base nas informações coletadas e fornecidas pelos serviços de segurança, pelo FSB, o Serviço Federal de Segurança da Rússia.
A lei do agente estrangeiro, basicamente, tem dois propósitos. Um é estigmatizar uma pessoa, rotulá-la como inimiga do Estado. A expressão “agente estrangeiro” tem uma conotação pejorativa distinta no contexto russo, porque durante a União Soviética, agentes estrangeiros significavam espiões ou inimigos ou traidores.
O outro propósito é restringir cada vez mais os direitos humanos dos agentes estrangeiros e restringi-los de certas atividades dentro do país. É cada vez mais uma espécie de lei de segregação. Cria uma categoria de cidadãos de segunda classe. Você não pode concorrer a cargos, não pode dar aulas, não pode organizar assembleias públicas. Se eu escrever um livro na Rússia, e uma editora russa me pagar, eu não vou receber esse dinheiro. O dinheiro vai para uma conta bancária especial, e eu só receberei o dinheiro quando não for mais um agente estrangeiro. Enquanto eu for um agente estrangeiro, não posso usar esse dinheiro.
O governo russo exige que você rotule todas as suas publicações e aparições públicas com o rótulo de agente estrangeiro. Então, sempre que eu posto algo nas redes sociais essa postagem deve vir com um longo aviso em caixa alta, dizendo que eu, Grigori Vaipan, sou um agente estrangeiro.
E como você poderia ser desrotulado, deixar de ser ‘agente estrangeiro’?
Grigori: De acordo com o governo, você tem que parar de fazer o que estava fazendo quando foi declarado um agente estrangeiro. Você tem que pedir formalmente por isso, mas quase nunca acontece.
A lei de “agente estrangeiro” existe na Rússia há mais de uma década, e era vaga desde o início, mas com o tempo, tornou-se ainda mais vaga. Havia dois elementos nessa definição: receber financiamento estrangeiro e se envolver em atividade política. Mas com o tempo a lei se tornou muito mais ampla em seu escopo. Hoje em dia, você nem precisa receber um centavo do exterior. Você simplesmente precisa estar sob influência estrangeira, e você não precisa mais se envolver em atividade política. Tudo o que você precisa fazer é falar publicamente.
Eu virei um “agente estrangeiro” porque eu postei no Facebook, critiquei o governo russo e também fiz comentários na imprensa. Enquanto eu estou falando com você agora, ou Tamila está falando com você, seria um motivo para eles nos designarem como agentes estrangeiros. É uma definição extremamente vaga, e isso é feito de propósito. A ideia é criar um efeito paralisante, onde as pessoas têm medo de se manifestar, porque elas não sabem qual expressão específica, qual ação específica pode levá-las a ser designadas como agentes estrangeiros.
Daria: Em 2022, o ministério nos mostrou as razões para nos designar como agentes estrangeiros: somos “agentes do Google”. Não estou brincando. Nos autos, estava escrito. Nosso financiamento estrangeiro era apenas dinheiro desses banners de anúncios do Google em nosso site e a jurisdição oficial do Google é na Irlanda.
Tamilla: Iso é o que acontece com pessoas famosas. Uma produtora de leite da zona rural entrou na lista porque estava cuidando de uma menina de 12 anos que decidiu fazer alguma atividade anti-guerra em sua região. Agora ela tem que seguir regras super complicadas, produzir relatórios sobre todas suas despesas individuais a cada três meses. Tipo, hoje eu comprei uma pasta de dente, uma escova de dente. Tudo deve ser enviado ao Ministério da Justiça. Eles podem chegar ao extremo de fazê-la rotular o leite vendido numa feira como leite produzido para uma agência estrangeira. Se você comete um primeiro erro no relatório ou nas suas rotulações emitem uma multa. Um segundo erro pode te levar a outra multa. O terceiro caso torna-se uma acusação criminal, e você pode acabar na prisão. É assustador. As pessoas geralmente fogem, se podem, assim que são rotuladas por esta lei maluca.
Qual a diferença da designação como “organização indesejável”?
Grigori: São duas leis diferentes. A lei das organizações indesejáveis essa designação significa que elas não podem mais operar na Rússia, e os russos não são autorizados a cooperar com essas entidades de forma alguma.
A situação piorou com o tempo? Quantas organizações indesejadas e quantos agentes estrangeiros existem?
Grigori: Cerca de 900 agentes estrangeiros na Rússia desde 2012 e 194 organizações indesejadas desde 2015.
Tamilla: Há uma lista pública, com propósito de estigmatizar, que inclui até seus dados pessoais. Com organizações, eles colocam todos os seus executivos, o conselho administrativo nessa lista.
Para simplificar, e sabemos que há arbitrariedade e tudo, as “indesejáveis” são as organizações estrangeiras, fundações. O Greenpeace, por exemplo. Se elas costumavam estar na Rússia, agora são rotuladas como indesejáveis porque são de países estrangeiros e sua presença não é mais desejável na Rússia.
Grigori: Perceba o ritmo com que ambas as listas começaram a aumentar após a invasão da Ucrânia. A lista de agentes estrangeiros existe desde 2012, mas 2/3 de todos os agentes estrangeiros foram adicionados após fevereiro de 2022. Na lista de organizações indesejáveis, são 3/4, ou seja, 75% de todos os indesejáveis foram classificados em apenas 2 anos e meio após a invasão.
Você aponta uma linha de corte clara para o recrudescimento após a invasão da Ucrânia.
Grigori: Putin rompeu com o Ocidente em 2022. Antes, a Rússia estava manobrando, negociando em muitos aspectos. A Rússia se tornou o país mais sancionado do mundo, pela Europa e Estados Unidos. Como resultado, Putin sentiu que não precisava mais olhar para o Ocidente e tentar negociar. Foi expulso do Conselho da Europa. Vimos uma repressão massiva aos direitos humanos dentro do país. Vimos a Rússia se tornar uma ditadura completa. Na última eleição, a chamada eleição, em março de 2024, Putin oficialmente recebeu 87% dos votos. Quero dizer, é realmente um resultado totalitário.
Eles usam esse rótulo de “indesejado” para os veículos de mídia?
Grigori: Sim. Cada vez mais. Como a Radio Liberty dos Estados Unidos. E “agentes estrangeiros” são as organizações que na verdade têm suas raízes na Rússia, são realmente organizações russas. Mas o governo não gosta delas por este ou aquele motivo, então elas rotulam como agentes estrangeiros porque estão trabalhando para os estrangeiros, seriam os traidores. O discurso é “vocês fingem ser ONGs russas de direitos humanos, por exemplo, mas estão sendo pagos pelo Ocidente Global e estão realmente fazendo o que o Ocidente Global quer. Vocês não são amigos da Rússia. Vocês são inimigos dela”. Essa é a ideia por trás do rótulo de agente estrangeiro. Indesejável é quando você simplesmente veio de fora para o país e você é indesejável.
Quais são as políticas recentes do Kremlin que pioraram a situação dos direitos humanos na Rússia e a liberdade de expressão?
Grigori: A invasão em grande escala da Ucrânia desencadeou uma repressão brutal à sociedade civil russa. A lei dos agentes estrangeiros e a lei dos indesejáveis têm sido cada vez mais usadas para destruir a sociedade civil russa. A ideia é estigmatizar aquelas organizações que ainda operam na Rússia. Isso torna mais difícil para essas organizações obterem financiamento, porque as pessoas têm medo de cooperar com elas, têm medo de doar. E assim muitas organizações têm que fechar.
O segundo desenvolvimento foi o governo adotar leis que, ao contrário dos anos anteriores, punem a substância do que você diz. Não mais a forma. Quinze anos atrás, o autoritarismo de Putin punia as pessoas por não notificarem as autoridades sobre uma manifestação, um comício, por exemplo. Não pela substância da mensagem, mas por algumas tecnicidades. Desde 2022, as duas leis que discutimos, a lei da desinformação e a lei de desacreditar o exército tornam crime espalhar certas ideias. É crime apoiar a Ucrânia. É crime criticar Putin. É crime criticar o exército russo. É um grande passo em direção a uma ditadura que a Rússia deu.
Estamos falando quatro leis: o rótulo de agente estrangeiro, o de organizações indesejáveis, o ato de desacreditar as forças armadas e o ato de espalhar desinformação.
Tamilla: As duas últimas leis são leis de censura e foram inventadas logo após a invasão da Ucrânia porque são sobre o exército e a guerra. Não havia necessidade delas antes da invasão. As duas primeiras, agente estrangeiro e organização indesejável, têm cerca de 10 anos cada.
Elas começaram como leis super leves. O primeiro esboço da lei de agente estrangeiro era simplesmente sobre as ONGs, não as pessoas, não a mídia... E as ONGs de fato tinham financiamento estrangeiro. Eles só queriam que elas produzissem relatórios anuais para o Ministério da Justiça para mostrar a fonte do seu financiamento. Alegavam que “os Estados Unidos têm a mesma lei chamada FARA, Foreign Agents Registration Act. Estamos fazendo a mesma coisa democrática”. Naquela época, já entramos em pânico como sociedade civil e imediatamente recorremos ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos para contestar essa lei.
Ao longo dos anos, eles começaram a alterar um pouco, rotulando mídias como agentes estrangeiros. Em 2020, começaram a rotular as primeiras pessoas como agentes estrangeiros. Naquela época, eles realmente tinham que provar que você realmente tinha financiamento estrangeiro. Depois, começaram a colocar as pessoas sob provocação. Você está sob influência estrangeira porque você está no TikTok, posta no Facebook.
Eles começaram a endurecer a aplicação da lei penal por violar a lei de agentes estrangeiros. Recentemente, começaram a abrir processos criminais contra pessoas por suposta não conformidade com a lei de agentes estrangeiros. Em 2021, eles fecharam a primeira ONG. E, como você pode imaginar, foi a Memorial. Antes apenas multavam. E algumas organizações menores fechavam por conta própria porque não conseguiam suportar o fardo financeiro. Nós conseguimos, fomos multados mais de 30 vezes, mas pagamos todas e permanecemos ativos. Até que eles foram ao tribunal e disseram que estávamos consistentemente violando a lei e que era motivo para nos fechar.
Percebo pelas suas palavras que vocês gostariam de voltar a viver e trabalhar na Rússia. Vocês veem chances de isso ocorrer? Vocês se sentem de alguma forma em perigo vivendo no exílio?
Tamilla: Voltar para a Rússia neste momento é uma questão proibida. Eu tenho tantas entrevistas com meu nome exato onde digo coisas “ilegais”, de acordo com a Federação Russa. Se eu voltar, há uma grande chance de que haja um processo contra mim preparado pelos serviços de segurança em cada fronteira. Assim que verem meu passaporte, provavelmente haverá uma espécie de alerta vermelho e terão esse processo pronto disponível. Há uma chance de roleta russa de que eu seja detida na fronteira. Eu não quero dar a eles nenhum presente de Natal. Não voltei à Rússia desde quando escapei, em abril de 2022.
Quanto a viver no exterior, eu me sinto mais segura do que nos últimos anos de nosso trabalho na Rússia. Estou me sentindo melhor em termos de saúde mental. Nos últimos anos, adquiri hábitos como acordar às 5h55 da manhã porque a batida geralmente começa às 6h da manhã. Você constantemente tenta esconder seu rosto por causa das câmeras de monitoramento para fins governamentais em todos os lugares.
Fora da Rússia, é claro, há uma chance de você estar sendo seguido por alguns agentes russos. Eles provavelmente sabem sobre todas as suas atividades, mas ainda assim, em primeiro lugar, nos países europeus onde escolhemos viver há bons serviços de segurança estatais e podemos entrar em contato com eles e compartilhar nossas preocupações. E, não quero parecer muito calma, mas envenenamento ainda é a última medida.
Temos que estar atentos. Eu mesmo tenho leis de cibersegurança muito, muito rigorosas considerando todos os meus dispositivos, porque isso é como a coisa favorita deles: invadir seus dispositivos, suas mensagens, seus e-mails. Então, é claro que ainda estamos atentos. Ainda seguimos algum protocolo de segurança, muito importante. Ainda pensamos no que dizemos porque há pessoas dentro da Rússia conectadas a nós indiretamente.
Daria: Eu deixei a Rússia em março de 2022. Concordo que fora da Rússia agora nos sentimos mais seguros do que dentro. Mas ainda assim, tenho família na Rússia. Minha mãe mora no mesmo lugar, que é meu endereço oficial, no meu passaporte russo. E se algo acontecer, a polícia virá ao meu endereço oficial. E é exatamente neste apartamento onde minha mãe vive, e meus gatos... E precisamos pensar nisso o tempo todo. E também precisamos pensar em nosso colega, cuja equipe trabalha in loco.
Esta lista de agentes estrangeiros, esta lista de organizações indesejáveis, eles constantemente atualizam toda semana. Você nunca sabe quem será o próximo. Cinco dos meus colegas nesta lista de agentes estrangeiros como pessoa, e de um deles, Tatiana Fligengauer, é nossa apresentadora no YouTube. Ela está sob processo criminal desta lei de agente estrangeiro. Significa que se ela vier à Rússia, ela será presa imediatamente. E nosso ex-editor, Petro Gorzilov, ele tem dois processos criminais. E apenas alguns meses atrás na Rússia, tivemos cerca de dez buscas por causa deste processo. E eram buscas de diferentes pessoas, em diferentes regiões russas. Temos muitos motivos para algo ruim acontecer conosco ou com nossos parentes.
Grigori: Eu saí no final de 2022. Estar fora da Rússia é atualmente mais seguro para ativistas russos e membros da sociedade civil do que estar dentro da Rússia. Mas há um aumento na repressão transnacional contra russos que são oponentes de Putin. Com mais políticos de oposição russos, jornalistas independentes, defensores dos direitos humanos saindo da Rússia, claramente o foco dos serviços de segurança da Rússia se volta para a repressão transnacional, mirando em pessoas fora do país. Já houve alguns incidentes preocupantes, como tentativas de envenenamento contra líderes da sociedade civil russa. Por exemplo, houve a tentativa de envenenamento da chefe de uma fundação russa independente e de um famoso jornalista russo. E novamente, aqui eu acho que o fator principal é a incerteza. Ninguém sabe quem vai ser o próximo. Você não precisa ser o líder da oposição russa para virar alvo.
Apenas algumas semanas atrás, eu fui vítima de uma tentativa de ataque de phishing por hackers apoiados pelos russos. Tentaram acesso ao meu telefone, ao meu computador. A intenção era ter acesso a contas de email. E eu estou entre dezenas de russos que foram recentemente visados por esse grupo. Eles seguem o mesmo padrão. Houve uma investigação por defensores dos direitos humanos russos junto com organizações europeias de TI que identificaram esse padrão e o vincularam a um grupo específico de hackers.
Os riscos da repressão transnacional são um risco não apenas para russos, mas para qualquer pessoa em todos os países onde os russos estão presentes. Pessoas no Brasil não estão seguras, porque há alguns russos, incluindo alguns russos anti-guerra, que vivem no Brasil. E se eles são visados, então os locais ao redor deles estão em risco.
Em 2018, agentes russos tentaram matar um desertor russo, Sergey Skripalin, em Salisbury, Reino Unido. Eles tentaram envenená-lo com novichok. Skripalin sobreviveu, e sua filha também. Mas uma mulher britânica aleatória foi morta, porque ela inadvertidamente teve acesso ao veneno. Ninguém está seguro neste mundo, enquanto Putin estiver no poder na Rússia. Pode parecer que está realmente longe, mas você pode ser vítima da repressão transnacional liderada por Putin hoje em dia.
Alguém entrou em contato com você e sugeriu que abandonasse a Rússia. Como foi?
Grigori: Prefiro não entrar em detalhes sobre este episódio particular. Ficou claro para mim que eu teria que deixar o país ou enfrentar a perseguição. A abordagem dos serviços de segurança russos após a invasão da Ucrânia foi prender as pessoas ou pressioná-las para que saíssem, sabendo que poderiam enfrentar a perseguição. E, como resultado, se livrar delas. Os propósitos de Putin são igualmente atendidos ao prender alguém ou empurrá-lo para fora do país.
Quem pode liderar a oposição contra Putin e seu Partido Rússia Unida após a morte de Alexei Navalni?
Tamilla: Eu acompanho este homem chamado Ilia Yashin, uma figura bastante proeminente. E eles tentaram expulsá-lo do país de várias maneiras, com suborno, chantagem, ameaças diretas. Depois o prenderam porque ele contou a realidade sobre o massacre de Bucha, na Ucrânia, e o governo russo disse que era desinformação. Ele é um blogueiro do YouTube e das redes sociais e também conselheiro em um dos distritos de Moscou. Tentaram persuadi-lo a sair do país antes, assim como eles se aproximaram do Grigori e o persuadiram a sair antes que algo ruim acontecesse. Grigori fez isso, mas com esse político, ele era teimoso demais porque ele se considera um patriota. Ele diz que é o seu país, como Navalni fez. Ele permaneceu e foi preso. E ele continuaria publicando da prisão. Ele publicou uma conversa comovente com uma autoridade prisional falando sobre questões da Rússia, da guerra, e como, por exemplo, seu baixo salário é exatamente culpa de Putin.
E como ele conseguiu estando preso, se vocês dizem que o governo controla o que é dito?
Tamilla: Posso imaginar como, mas não gostaria de especular para não colocar ninguém em perigo. Por exemplo, meses antes de sua morte, enquanto estava preso no Ártico, Navalni teve uma grande entrevista publicada no Washington Post. Alguns poderão dizer que foram seus advogados. As pessoas são criativas, conseguem fazer a informação sair.
Ilia Yashin acabou sendo deportado contra a vontade dele quando governos ocidentais trabalhando juntos com atores da oposição russa decidiram negociar uma troca de prisioneiros políticos da Rússia. Eles liberariam vários prisioneiros políticos dos países europeus e dos Estados Unidos, assassinos reais, espiões, os melhores amigos de Putin. Eles libertaram um assassino real na Alemanha, o Sr. Krasikov, que realmente atirou em alguém no meio de Berlim. Um assassinato real em troca de um prisioneiro político.
Eles nunca obtiveram o consentimento dos próprios prisioneiros. Eles nunca lhes contaram o que estava acontecendo. Todos eles testemunharam isso. O governo decidiu, o governo compilou as listas. Claro que alguns ficaram felizes.
Quem ainda pode fazer oposição a Putin dentro da Rússia?
Grigori: Fazer política publicamente dentro da Rússia não é possível agora. No entanto, há figuras da oposição que estão fora da Rússia e se esforçam para mobilizar as diásporas russas e outros países em apoio à Ucrânia e à sociedade civil russa. Devemos mencionar, além de Ilia Yashin, a Yulia Navalnaya, que é a viúva de Alexei Navalni, e também Vladimir Kara-Murza, que é um historiador russo, jornalista e político que foi preso em 2022 pelo regime de Putin e também fez parte de uma troca de prisioneiros neste verão.
E quem poderia disputar eleições?
Grigori: Estamos muito além disso. Estamos falando sobre uma Rússia em tempo de guerra. Este é um país que está sendo governado por um homem. É uma ditadura atualmente. Não há espaço para a política. Não há espaço para eleições livres e justas. Não há espaço para a livre expressão. É um país em tempo de guerra governado por um autocrata brutal. Qualquer mudança, qualquer mudança significativa na Rússia, só pode acontecer após Putin. E qualquer paz significativa no Leste Europeu e na Ucrânia só pode acontecer após Putin. Putin significa guerra. Ele reconstruiu o país, reconstruiu a economia russa, para que ele possa travar esta guerra pelo tempo que for possível.
No entanto, é importante para a sociedade civil russa se preparar para o futuro agora. Porque quando o regime de Putin terminar, e ele eventualmente terminará em um momento ou outro, haverá, com certeza, uma Rússia após Putin. É essencial que, nesse momento, haja políticos responsáveis e líderes da sociedade civil que assumam e garantam que a Rússia comece um difícil processo de transição para um país democrático e de direito, e que termine sua agressão militar contra a Ucrânia e compense a Ucrânia por todo o sofrimento enorme que infligiu ao povo ucraniano.
Vocês exigiram investigação transparente sobre a morte de Navalni. A versão oficial é que ele morreu por causas naturais. A sociedade russa está convencida?
Grigori: Nem sequer houve uma investigação oficial. As autoridades russas concluíram uma investigação preliminar, fecharam um arquivo sobre sua morte e disseram que ele morreu de causas naturais. Mas não faz sentido porque eles fornecem uma lista de doenças que ele tinha. Há a versão oficial e há uma versão vazada que mostra que ele teve sintomas de um envenenamento agudo pouco antes de sua morte, como dor abdominal e vômito.
Navalni já havia sido envenenado uma vez, em 2020. Foi provado que o governo russo o envenenou com um agente nervoso, usado em muitos outros casos ao redor do mundo, o novichok. Isso foi conclusivamente confirmado pela Organização para Proibição de Armas Químicas, com sede nos Países Baixos, bem como pela investigação alemã. Então, quando alguém morre na custódia russa com basicamente os mesmos sintomas que ele tinha quatro anos atrás, isso parece quase uma evidência conclusiva de que ele foi assassinado por envenenamento novamente.
Tamilla: Em 2020, quando ele foi envenenado, sua esposa, Yulia Navalnaya, imediatamente exigiu que ele fosse liberado deste hospital russo de Omsk para ser levado à Alemanha, para a Clínica Charite em Berlim, em uma ambulância paga pelos apoiadores. Eles concordaram com isso naquela época. E esse foi meio que um erro para eles porque a clínica pôde encontrar evidências reais de novichok nos líquidos, que não desaparecem tão rápido do corpo, sabe? Então, eles o liberaram meio que rápido demais. E foi assim que eles não conseguiram esconder seu crime do mundo. Desta vez, eles seguraram seu corpo por dias antes de realmente liberar o cadáver para sua mãe, Lyudmila Navalnaya. Ela exigiu o corpo, para enterrá-lo adequadamente de acordo com os valores cristãos. Mas eles mantiveram o corpo por cerca de uma semana após sua morte. Toda a sociedade internacional exigiu que o corpo fosse liberado para a mãe enlutada. Mas aparentemente, eles tiveram que manter o corpo por alguns motivos até que realmente conseguissem liberá-lo.
A morte de Navalni e a situação da viúva dele - rotulada como extremista e com mandado de prisão contra si - seguem como uma questão aberta no debate público russo?
Grigori: Navalni era o líder número um da oposição russa, em grande parte porque dominou o uso de mídias sociais na Rússia de Putin para entregar informações importantes para os russos em todo o país. Foi extremamente eficaz. Sua investigação sobre o palácio de Putin, no valor de US$1 bilhão, residência não oficial que Putin não reconhece ser dele, e sobre a grande corrupção de Putin e seu regime teve 133 milhões de visualizações no YouTube, a maioria delas dentro da Rússia. A população da Rússia é de 140 milhões. Então isso pode te dar uma ideia de quão bem-sucedido ele foi no alcance. Sua morte veio como uma tragédia pessoal para muitos russos para quem ele era um símbolo de uma boa Rússia do futuro e um símbolo de esperança de que essa Rússia poderia finalmente surgir. Eu acho que nenhum político, na Rússia pós-soviética, foi tão amado por tantos russos.
Daria: No dia de seu funeral e alguns dias depois tivemos longas filas de pessoas com flores e poderia ser perigoso, poderiam ser presas.
Tamilla: Até hoje pessoas que amavam Navalni depositam flores frescas no seu túmulo em Moscou, seja no aniversário da morte, no dia 16 de cada mês, ou de forma aleatória, em agradecimento.
Como circulam na Rússia informações fora do controle do Kremlin? Como a censura e a repressão à sociedade civil que vocês descrevem atinge grandes plataformas tecnológicas ocidentais como Twitter ou Facebook?
Daria: Facebook, Instagram e Twitter são completamente banidos na Rússia. Bloqueados totalmente. Podemos usar serviços de VPN, mas serviços de VPN estão constantemente sendo deletados da loja de aplicativos russa, por exemplo. Porque as autoridades russas pedem à Apple para deletar, e eles fazem. Google também.
Temos o Telegram. É o mensageiro mais popular na Rússia. É como o WhatsApp aqui no Brasil. Talvez seja a principal fonte de consumo de notícias para os russos agora. Você pode ler as notícias no Telegram, não precisa visitar websites. E também temos o YouTube que não está bloqueado. Está mais lento. Significa que você precisa de mais tempo para baixar o vídeo, mas você ainda pode usá-lo gratuitamente.
Na Mediazona temos um sistema para contornar o órgão de censura, que bloqueia nosso site todos os dias, literalmente, todos os dias. Nosso mecanismo cria um espelho do nosso site, como uma cópia, e cria novos links para esse novo espelho. E isso acontece todos os dias, em regime automático. Todos os dias criamos uma nova cópia do nosso site. E todos os dias as pessoas podem usá-lo, com esses links.
Grigori: Há uma guerra contra VPN. Primeiro você bloqueia o site em si, depois tem que bloquear o VPN que permite que as pessoas contornem. Em certas regiões da Rússia, de repente, você fica sem internet. Claramente o governo está preparado para desligar a internet se vê uma ameaça existencial.
Daria: Temos essa tecnologia para filtrar todo o tráfego, todo o tráfego da internet. E nossas autoridades podem usar essa funcionalidade para simplesmente, sabe, desligar a internet inteira. Por exemplo, durante protesto em Daguestão, uma região do Cáucaso na Rússia, você não terá acesso à internet por 24 horas, por exemplo. Eles podem fazer isso agora.
Grigori: Mas a censura é só parte do problema, apenas um aspecto. Há outro, que é a propaganda, e isso se aplica não somente aos russos na Rússia, mas a todo mundo, porque Putin gasta uma quantidade enorme de dinheiro em propaganda governamental russa e a transmite ao redor do mundo. As mídias governamentais russas recebem 1,5 bilhão de dólares americanos anualmente pelo seu trabalho, para padrões russos uma quantidade enorme de dinheiro.
Esta entrevista foi dividida em duas partes para facilitar a leitura. Leia aqui a primeira parte.