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Ninguém lamenta a morte de Prighozin em vila da Ucrânia destruída pelo Grupo Wagner

Mercenários a serviço da Rússia deixaram vilarejo em ruínas, e moradores temem que suas vidas nunca mais sejam as mesmas

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Por Marc Santora e Tyler Hicks

BOHORODITCHNE (UCRÂNIA) | THE NEW YORK TIMES - Mikola Hontchar vive em uma casa de pedra em ruínas no que resta de um pequeno povoado no leste da Ucrânia. A cidade foi atacada pelas forças russas em junho de 2022, enquanto as forças mercenárias do Grupo Wagner lideravam uma ofensiva renovada.

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Mesmo antes do Kremlin liberar o Wagner para causar estragos na Ucrânia, a campanha russa era notável por sua brutalidade. Mas desde o momento em que as forças do grupo entraram na guerra, em abril de 2022, eles ganharam uma reputação especial por sua sede de sangue, entre civis e entre soldados.

Para Hontchar, a morte do líder do Wagner, Ievguêni Prighozin, responsável por tanta carnificina na guerra, seria adequada — um fim violento para uma vida violenta. “Ele tem sangue nas mãos”, diz Hontchar, 58. “Se existe um Deus, Deus saberá o que fazer com ele.”

Ucraniano Mikola Honchar permaneceu na aldeia de Bohorodichne durante a ocupação russa em junho de 2022. Horrores da guerra permanecem na memória Foto: Tyler Hicks/NYT

Mesmo em uma guerra em que civis foram mortos a tiros nos subúrbios de Kiev e a cidade de Mariupol foi bombardeada até a destruição, o Wagner e Prighozin cultivaram uma imagem de brutalidade.

Um vídeo publicado nas redes sociais mostra um dos próprios soldados de Prighozin sendo executado com um martelo depois ter sido capturado e posteriormente libertado pelos ucranianos em uma troca de prisioneiros. Enquanto estava sob custódia, o homem gravou uma entrevista dizendo que não acreditava na guerra da Rússia. “Um cachorro recebe uma morte de cachorro”, diz Prighozin no vídeo.

Quando a Ucrânia recuperou a vila de Bohoroditchne, Hontchar era uma das duas pessoas que ainda moravam lá. Antes da guerra, eram 800 pessoas. A outra pessoa era sua mãe, Nina Hontchar, de 92 anos. Ele ficou lá apesar do perigo para cuidar dela. Ela morreu neste mês.

Ele não sabe se os combatentes do Wagner estavam entre os ocupantes. “Eu não pedi os documentos deles”, conta. Mas ele se lembra de ter visto lutadores russos, que pareciam estar drogados, vagando pela cidade de cueca, seus corpos cobertos de tatuagens como as feitas em prisões.

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O Wagner ampliou sua força recrutando prisioneiros. Depois que ao grupo deixou o campo de batalha em junho, o Exército russo continuou a usar detentos como parte das recém-formadas unidades “Storm Z” ao longo das posições mais perigosas das frentes de batalha.

Para Hontchar, pouco importa sob qual bandeira os soldados lutaram. O legado do Wagner e das forças russas, segundo ele, é o mesmo: morte, destruição e ruína. “Meu irmão e sua esposa foram despedaçados por explosões”, diz. Antes de poder enterrá-los, ele teve que recolher as partes dos corpos. “Não havia crânio; suas mãos estavam espalhadas”, conta o homem sobre seu irmão.

Trabalhadores em mosteiro danificado por bombardeios russos em Bohorodichne, na Ucrânia, em imagem do dia 22. Morte de Prigozhin não é lamentada na aldeia, destruída meses atrás durante a guerra Foto: Tyler Hicks/NYT

Depois de coletar o que conseguiu encontrar, ele queria enterrá-los no cemitério da vila, mas o local estava sob constante ataque e era muito perigoso. Ele colocou os restos mortais deles em uma trincheira e os cobriu com terra. Quando sua vizinha de 80 anos morreu, ele a enterrou na cratera da bomba que a matou.

Quando os russos chegaram pela primeira vez, Hontchar disse que eles amarraram suas mãos e o levaram para o porão da escola da vila para interrogá-lo. Eles apontaram uma arma. “Eu disse: ‘Primeiro matem minha mãe e depois a mim’”, conta, argumentando que não queria que ela o visse ser assassinado.

Os russos então disseram que Hontchar era corajoso e perguntaram onde estavam localizados os soldados ucranianos. Ele disse que os procurassem na floresta, e esse foi o fim do interrogatório. Depois disso, os russos o deixaram em paz na medida em que ocupavam outras posições na vila.

Soldados mais disciplinados ocuparam a igreja, conta Hontchar, mas em todos os outros lugares uma equipe heterogênea de soldados de diferentes unidades parecia mais interessada em conseguir drogas.

Moradores da vila colocam uma cruz no cemitério onde parentes estão enterrados. Poucos moradores permaneceram na vila após a ocupação russa Foto: Tyler Hicks/NYT

Os destroços da guerra estão espalhados pelo prédio da escola, assim como as lembranças do que a Ucrânia já foi. Na lousa de uma classe, há uma data escrita com giz: 22 de fevereiro de 2022. Foi a última aula antes da invasão russa iniciada dois dias depois.

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Não há uma única casa intacta em Bohoroditchne. A loja de variedades permanece destruída e fechada. O centro do governo da vila está arruinado, suas paredes estão marcadas por buracos de bala, o telhado desabou e uma carcaça enferrujada de um veículo blindado está largada do lado de fora. Por toda a vila, as ervas daninhas crescem descontroladamente e as ruínas das casas são camufladas pela vegetação.

É como uma versão em miniatura de Bakhmut, a cidade no leste da Ucrânia que levou mais de um ano para ser capturada pelos combatentes do Grupo Wagner. Autoridades ucranianas dizem que há centenas de vilas arruinadas como Bohoroditchne espalhadas pela Ucrânia, muitas destruídas pelas forças do Wagner antes do grupo retirar seus combatentes da Ucrânia.

Embora a destruição de Bakhmut seja chocante por sua escala, a devastação de Bohoroditchne é desoladora por sua intimidade. Hontchar contra como, quando ele estava crescendo na vila, havia dezenas de crianças. Eles nadavam no rio e corriam por florestas cheias de porcos selvagens e veados.

Imagem mostra moradores coletando chapas metálicas em Bohoroditchne para reparos de descascamento e preparação para o inverno. Não há uma única casa intacta na vila Foto: Tyler Hicks/NYT

Às vezes, eles fumavam escondidos e acabavam levando um tapa na orelha ou algo pior quando eram pegos. A primeira garota que ele beijou morava do outro lado de uma ponte em uma cidade vizinha.

A mesma ponte foi explodida pelos ucranianos para retardar o avanço russo. Não há mais crianças vivendo na vila.

Ele diz à reportagem que precisa ir à floresta coletar lenha para queimar e se manter aquecido. Mas os soldados ucranianos disseram a ele que isso é muito perigoso. Ainda há minas espalhadas na região.

Hontchar diz não acreditar que Prighozin esteja morto. O que ele sabe que é sua vila se foi. Ainda assim, ele espera que a vida retorne um dia ao que era.

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Mikola Honchar permaneceu com a mãe de 92 anos no vilarejo de Bohorodichne durante a ocupação russa. Honchar não lamenta morte de Iegveni Prigozhon Foto: Tyler Hicks/NYT
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