Há muito adepto de fomentar a agitação no Ocidente, o presidente Vladimir Putin, da Rússia, enviou tropas ao Casaquistão, nação da Ásia Central, na quinta-feira para tentar extinguir o mais recente de uma série de incêndios perigosos que ameaçam engolir as terras da ex-União Soviética, que Moscou vê como sua esfera de influência.
Mas se a turbulência no Casaquistão mais uma vez expôs a vulnerabilidade dos líderes fortes em quem o Kremlin confiou para manter a ordem, também deu à Rússia mais uma oportunidade de reafirmar sua influência em seu antigo domínio soviético, um dos mais queridos objetivos de longo prazo de Putin.
A chegada ao Casaquistão de 2.500 soldados de uma aliança militar liderada pela Rússia em meio a contínuos espasmos de protestos violentos foi a quarta vez em apenas dois anos que Moscou flexionou seus músculos em Estados vizinhos - Belarus, Armênia e Ucrânia sendo os outros três - que o Ocidente há muito tempo tenta cortejar.
O espetáculo de um país como o Casaquistão “que parece grande e forte” caindo em desordem tão rapidamente veio como um choque, disse Maxim Suchkov, diretor interino do Instituto de Estudos de Relações Internacionais de Moscou. Mas também mostrou como, com exceção da Ucrânia, nas ex-repúblicas soviéticas que tentaram equilibrar o Oriente e o Ocidente, “boom, você tem uma crise e eles se voltam para a Rússia”. E uma vez que as tropas russas chegam, elas raramente, ou nunca, voltam para casa.
Suchkov disse que a agitação no Casaquistão pode ser vista como uma “crise séria que a Rússia está interessada em transformar em uma oportunidade”. No entanto, muitos questionam quantos incêndios podem surgir em torno das fronteiras da Rússia antes que um semelhante aconteça em casa.
“Se algo assim pode acontecer no Casaquistão”, disse Scott Horton, professor de direito na Universidade de Columbia que aconselhou autoridades no Casaquistão e em outros países da Ásia Central ao longo de duas décadas, “certamente pode acontecer na Rússia”.
Outros analistas dizem que por mais que Putin se delicie com a agitação na Europa e nos Estados Unidos como evidência de que a democracia está sucumbindo, ele sente pouco prazer com a turbulência à porta da própria Rússia, não importa quais sejam as oportunidades de curto prazo.
Não seria a primeira vez.
Depois de oferecer o que chamou de "assistência abrangente" para o presidente Aleksandr Lukashenko, de Belarus, em agosto de 2020, para interromper uma onda de enormes protestos, Putin então enviou "forças de paz" para interromper uma guerra violenta por território disputado entre a Armênia e Azerbaijão. A Rússia posicionou mais de 100.000 soldados em sua fronteira com a Ucrânia para exigir que Kiev abandone seu flerte de anos com a Otan.
Entre os soldados enviados ao Casaquistão estavam membros da 45ª Brigada, uma unidade de elite Spetsnaz, as forças especiais russas. A Spetsnaz é famosa por suas operações na primeira e segunda guerras na Chechênia, a outrora agitada, mas agora pacificada à força, região do Cáucaso na Rússia. A brigada também está ativa na Ossétia do Sul, uma região da Geórgia que está no centro da guerra daquele país em 2008 com a Rússia; na Crimeia, que a Rússia anexou em 2014; e na Síria.
O quanto esse papel assertivo realmente contribui para o objetivo de longa data de Putin de restaurar o domínio russo sobre grande parte da antiga esfera soviética é uma questão de debate acalorado.
Na Ucrânia, Putin conseguiu o oposto, transformando uma população que costumava ser amiga da Rússia em um inimigo declarado em grandes partes do país. Também deixou os nervos à flor da pele fora do antigo espaço soviético e fez o jogo dos falcões anti-russos, revivendo um debate anteriormente adormecido na Suécia e na Finlândia sobre se deveriam aderir ou, pelo menos, se associar mais estreitamente à Otan.
Quando o Casaquistão se libertou da União Soviética há três décadas, possuía o quarto maior estoque de armas nucleares do mundo, vastas reservas de petróleo e tantas promessas e perigos que o enbtão Secretário de Estado James Baker III correu para o novo país para tentar cimentar laços bebendo vodka na sauna com seu líder, Nursultan Nazarbayev, e aceitando golpes de um galho de árvore.
“Fale com o presidente dos Estados Unidos pelo telefone”, brincou o embaixador americano em Moscou na época, Robert Strauss, que também estava lá, para a equipe de segurança. “Seu secretário de Estado está totalmente nu e ele está sendo espancado pelo presidente do Casaquistão.”
Desde então, o país desistiu de suas armas nucleares, deu as boas-vindas a gigantes da energia americanos como Chevron e Exxon Mobil para desenvolver seus campos de petróleo. Se tornou um parceiro de tamanha confiança que, em uma mensagem a seu atual líder em setembro passado, o presidente Biden disse ao presidente Kassym-Jomart Tokayev que “os Estados Unidos têm orgulho de chamar seu país de amigo”.
Durante todo o tempo, no entanto, as pessoas foram espancadas, não apenas de brincadeira na sauna, mas violentamente em centros de detenção e na rua. Embora seu histórico de repressão possa ser menos severo do que em outras ex-repúblicas soviéticas na Ásia Central, como o Turcomenistão e o Uzbequistão, segundo com a Anistia Internacional, ele inclui "tortura e outros maus-tratos em instituições penitenciárias" generalizadas.
Mas no renascimento pós-soviético do Grande Jogo, a luta do século 19 entre as potências coloniais na Ásia Central, os direitos humanos nunca foram um fator particularmente importante nos cálculos dos Estados Unidos - e menos ainda nos de seus principais concorrentes na região, Rússia e, na última década, China.
Para Mukhtar Ablyazov, um magnata do Casaquistão que fugiu para o exílio depois de se desentender com seu ex-patrono, Nazarbayev, a atual onda de protestos e o apelo do governo cazaque a Moscou por ajuda militar para esmagá-los é prova de que o Ocidente calculou mal e entregou a Rússia uma grande vitória.
O Casaquistão, disse ele na quinta-feira enquanto as tropas russas eram enviadas, conseguiu “colocar a comunidade internacional para dormir” com promessas de grandes contratos. “O resultado: o Casaquistão está agora sob as botas de Putin, que aproveita para ampliar seu poder.”
Steve LeVine, autor de "The Oil and The Glory", uma crônica da luta entre Moscou e Washington na região após o colapso do comunismo, disse que o entendimento dos Estados Unidos sobre o Casaquistão em seus primeiros anos como Estado independente era "quase inteiramente" através dos campos de petróleo de Tengiz.
Mas, acrescentou ele, o Casaquistão ainda se desenvolveu em um país muito mais estável, próspero e tolerante do que seus vizinhos. “O Casaquistão não é uma democracia, mas é uma democracia da Ásia Central”, disse ele. “A região é governada por homens fortes e truculentos.”
Esses líderes, para consternação de Putin, se mostraram surpreendentemente frágeis, um fato que tem confrontado repetidamente o Kremlin ao longo de suas fronteiras com revoltas e todo o tipo de descontentamento que ele tenta manter reprimido em casa. Mas a fraqueza deles também fez de Putin o protetor indispensável a quem recorrem em tempos de crise.
Alexander Cooley, professor de ciência política do Barnard College e autoridade na Ásia Central, disse que é improvável que a Rússia exija concessões imediatas do presidente Tokayev, mas ganhou forte influência, perturbando os esforços anteriores do Casaquistão para evitar inclinar-se muito para Moscou ou Washington .
“O Cazaquistão sempre tentou manter um equilíbrio entre as duas partes”, disse ele. “Isso é tudo sobre a sobrevivência do regime. As necessidades de segurança do Estado foram reconfiguradas para atender às necessidades daqueles que estão no poder. ”
As autoridades cazaques dizem que dezenas de manifestantes morreram nos protestos até agora, com muitos outros feridos, e que 18 oficiais de segurança foram mortos. Se os confrontos se arrastarem, o Kremlin pode acabar alienando uma ampla faixa da população do Casaquistão, que em grandes cidades como Almaty frequentemente fala russo e era relativamente pró-Rússia. Isso repetiria o cenário na Ucrânia, onde o sentimento anti-russo se tornou tão forte que é improvável que diminua por anos ou décadas.
Mas Tokayev, que assumiu como presidente em 2019 no lugar de Nazarbayev, agora está em dívida com a Rússia pelo apoio na repressão aos manifestantes e na remoção de Nazarbayev de seu último cargo como chefe do Conselho de Segurança Nacional na quarta-feira. Essa assistência raramente é oferecida gratuitamente, principalmente por um estrategista astuto como Putin.
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