No Japão, o rancor do assassino de Abe contra a Igreja da Unificação é familiar

Morte do ex-premiê trouxe à tona os milhares de casos de exploração da seita do reverendo Moon contra seus seguidores

PUBLICIDADE

Atualização:

TÓQUIO – Um dia antes do assassinato do ex-primeiro-ministro Shinzo Abe, Tetsuya Yamagami enviou uma carta dizendo que a Igreja da Unificação havia arruinado sua vida, “destruindo minha família e levando-a à falência”.

PUBLICIDADE

A mãe de Yamagami era membro da igreja há mais de duas décadas, fazendo grandes doações, apesar das objeções de sua família. No dia seguinte, Abe foi morto, baleado à queima-roupa com uma arma caseira enquanto fazia campanha na cidade de Nara.

A polícia acusou Yamagami de assassinato, dizendo que ele estava zangado com um “certo grupo” e decidiu atacar Abe. As autoridades não revelaram qual era o grupo, mas um porta-voz da Igreja da Unificação disse que Yamagami provavelmente estava se referindo a eles. Ainda não está claro por que Yamagami dirigiu sua animosidade a Abe.

O ataque a tiros de 8 de julho trouxe à tona os problemas legais da igreja, em particular suas batalhas com famílias que disseram ter sido empobrecidas por grandes doações. Esses pagamentos, que somaram bilhões de dólares, ajudaram a financiar grande parte das ambições políticas e comerciais globais da igreja.

Publicidade

Tetsuya Yamagami, acusado de ter matado o ex-premiê Shinzo Abe Foto: KYODO

Em um julgamento de 2016, um tribunal civil de Tóquio ordenou a indenização de mais de US$ 270 mil em danos ao ex-marido de um membro da igreja, depois que ela doou sua herança, salário e fundos de pensão ao grupo para “salvar” ele e seus ancestrais da condenação.

Em outro caso civil de 2020, um juiz ordenou que a igreja e outros réus pagassem indenização a uma mulher depois que os membros a convenceram de que o câncer de seu filho foi causado por pecados da família. Seguindo o conselho deles, ela gastou dezenas de milhares de dólares em bens e serviços da igreja, como pesquisar a história de sua família e comprar bênçãos.

Na semana passada, funcionários da igreja disseram que chegaram a um acordo em 2009 com a família de Yamagami para reembolsar 50 milhões de ienes (US$ 360 mil) em doações que ela fez ao longo dos anos. Em uma entrevista, o tio de Yamagami disse que ela doou pelo menos 100 milhões de ienes (US$ 720 mil).

Muitas famílias resolveram prestar queixas contra a igreja por meio de acordos arbitrados pelo tribunal, de acordo com Hiroshi Watanabe, advogado que negociou alguns deles.

Publicidade

Eri Kayoda, de 28 anos, cresceu em uma casa dedicada à Igreja da Unificação. Ela disse que sua mãe deu à igreja uma herança e os rendimentos da venda de sua casa. A família teve de se espremer em um pequeno apartamento em Tóquio decorado com livros e vasos caros da Igreja da Unificação que, segundo sua mãe, trariam boa sorte.

No ensino médio, disse Kayoda, ela começou a ficar de olho nas finanças de seus pais e os convenceu a economizar para um carro e uma casa. Sua mãe agora doa modestamente. Embora Kayoda tenha condenado o ataque a tiros contra Abe, ela disse esperar que isso chame a atenção para os “muitos casos de famílias que foram destruídas”.

Reverendo Moon dá suas benções em casamento coletivo em Seul em 1999 Foto: PAUL BARKER

Susumu Sato, porta-voz da Igreja da Unificação no Japão, disse que alguns membros encorajaram os seguidores a doar excessivamente, mas a maioria dos doadores foi motivado por sua fé.

“Hoje em dia parece impensável, mas essas pessoas acreditavam em Deus”, disse Sato, que disse temer que os membros da igreja se tornem bodes expiatórios para a morte de Abe.

Publicidade

O reverendo Sun Myung Moon fundou a Igreja da Unificação na Coreia do Sul em 1954. Cinco anos depois, ele abriu sua primeira filial no Japão, que rapidamente se tornou a maior fonte de receita da igreja.

Ligações.

O avô de Abe, Nobusuke Kishi, ex-primeiro-ministro, apareceu em eventos patrocinados por um grupo que Moon criou para combater o comunismo. Décadas depois, em 2021, Abe falou por vídeo em uma conferência em Seul patrocinada por uma organização sem fins lucrativos afiliada à igreja, elogiando seu “foco e ênfase nos valores familiares”.

Durante suas visitas, o reverendo Moon advertiu seus seguidores japoneses que eles estavam mergulhados no pecado e os exortou a sacrificar tudo pela igreja.

“Cada um de vocês precisa restaurar, pagando indenização, os pecados cometidos por seus ancestrais na história”, disse ele a um grupo de crentes em 1973, instruindo-os a “derramar sangue, suor e lágrimas”.

Publicidade

Centenas de milhares atenderam ao seu chamado. Em meados dos anos 80, bilhões de dólares em doações fluíram de famílias japonesas para os cofres da igreja. Moon usou o dinheiro para construir um império comercial em expansão e uma rede de organizações sem fins lucrativos e meios de comunicação, como o Washington Times, que ele usou para ter influência política.

Pressões.

As famílias foram solicitadas a fazer doações constantes e pagar taxas exorbitantes para comprar vários serviços religiosos e volumes encadernados em couro dos ensinamentos de Moon, segundo sentenças judiciais proferidas em ações civis contra o grupo.

As empresas ligadas à igreja às vezes usavam táticas de vendas de alta pressão para reunir ainda mais fundos. Julgamentos de ações civis descrevem como os seguidores usaram advertências de maldições ancestrais para vender produtos como vasos decorativos importados da Coreia do Sul. A igreja enviou ao exterior milhares de seus seguidores – a maioria mulheres – para se casarem com membros da igreja.

No início dos anos 1990, o poder de Moon no Japão atingiu o pico. Em 1995, ataques com gás sarin lançados por membros do culto religioso Aum Shinrikyo criaram uma reação contra o que é conhecido no país como novas religiões. As suspeitas contra a Igreja da Unificação aumentou à medida que antigos seguidores publicaram cartas contando tudo e os processos começaram a aumentar.

Publicidade

A Rede Nacional de Advogados Contra Vendas Espirituais, um grupo que passou décadas lutando contra a igreja, começou a receber reclamações no final dos anos 1980. Acabou recebendo mais de 34 mil, reivindicando danos superiores a US$ 900 milhões.

À medida que as críticas cresciam, a Igreja da Unificação partiu para a ofensiva, argumentando que anos de atenção negativa levaram à perseguição de seus seguidores.

Em 2009, a polícia de Tóquio invadiu uma empresa afiliada à igreja que pressionou os clientes a comprar selos tradicionais, frequentemente usados para documentos, com grandes margens de lucro. As apreensões resultaram em multas contra cinco funcionários e penas de prisão suspensas para dois executivos.

Temendo que o governo japonês revogasse seu status legal, a igreja anunciou novos controles sobre recrutamento e doação.

Publicidade

Vingança.

O reverendo Moon morreu em 2012 e , nos anos seguintes, o poder e a influência da igreja no Japão – assim como as queixas contra ela – diminuíram. Mas Yamagami nunca perdeu de vista a Igreja da Unificação. Ele escreveu em uma conta no Twitter que as ações de sua mãe “mergulharam meu irmão, minha irmã e eu no inferno”. O nome da conta foi incluído na carta que ele enviou antes de atacar Abe.

Em meio a discursos anti-coreanos, reflexões misóginas e comentários sobre a política japonesa, a conta no Twitter – que foi suspensa – descreve uma infância dolorosa e uma enorme fúria pela fidelidade de sua mãe à Igreja da Unificação. Ele culpou o relacionamento pelas próprias falhas na vida.

Yamagami nasceu em uma família rica, mas quando ele tinha 4 anos, seu pai se matou. Uma década depois, seu avô morreu repentinamente, não deixando ninguém para parar “minha mãe que estava canalizando dinheiro para a Igreja da Unificação”, escreveu Yamagami no Twitter. Ela “envolveu toda nossa família e se destruiu”, escreveu ele.

Na carta que enviou, Yamagami disse que passou anos sonhando com vingança, mas se convenceu de que atacar a igreja não levaria a nada. “O sr. Abe “não é meu inimigo, mas ele não passa de um dos mais poderosos simpatizantes da Igreja da Unificação”, escreveu Yamagami. “Não tenho mais o luxo de pensar no significado político ou nas consequências que a morte de Abe trará”, acrescentou. NYT

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.