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No quintal da China, EUA tentam ser humildes para conseguir apoio de países do Indo-Pacífico

Washington deixou de se impor sobre a região Ásia-Pacífico ditando os termos para seus aliados; em vez disso, se oferece para atuar um companheiro de equipe e dividir responsabilidades

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Por Damien Cave (The New York Times)

Longe da Ucrânia e de Gaza, enquanto o grupo das sete democracias ricas se reúne na Itália para discutir uma série de antigos e arraigados desafios, a natureza do poder americano está sendo transformada numa região que Washington considera crucial para o próximo século: Ásia-Pacífico.

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Aqui, os Estados Unidos deixaram de se apresentar como um confiável garantidor da segurança, uma superpotência que afirma “confie em mim que eu resolvo”. A região é vasta demais, e a ascensão chinesa é uma ameaça imensa demais. Portanto, os EUA estão se oferecendo para algo diferente: tornar-se um companheiro de equipe ávido por modernização militar e desenvolvimento tecnológico.

“No passado, nossos especialistas falavam de um modelo centralizado para a segurança no Indo-Pacífico”, afirmou neste mês o secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, numa conferência de segurança global em Cingapura. “Hoje estamos vendo algo bastante diferente.”

Nesta nova era, muitos países estão fazendo mais, por conta própria e com a ajuda americana. Pela primeira vez, os EUA estão construindo submarinos movidos a energia nuclear com a Austrália; envolvendo a Coreia do Sul no planejamento de armas atômicas; produzindo motores de caças de combate com a Índia; compartilhando deveres de vigilância submarina com pequenas ilhas do Pacífico; e trabalhando com o Japão para aumentar sua capacidade militar ofensiva.

Soldados filipinos participam de treimaneto conjunto com os EUA para disparar o obuseiro Howitzer 155 mm em abril de 2023 Foto: Ezra Acayan/The New York Times

Nos bastidores, autoridades americanas também estão testando novos sistemas de comunicações seguros com seus parceiros; sinalizando acordos para produzir artilharia conjuntamente com aliados; e garantindo estoques de sangue para hospitais de toda a região para a hipótese de um conflito. Também estão treinando juntamente com muito mais países de maneiras mais expansivas.

Essas colaborações sublinham a maneira como a região percebe a China. Muitos países temem a crescente força militar e a beligerância de Pequim: suas ameaças contra a ilha democrática de Taiwan, sua reivindicação sobre a maior parte do Mar do Sul da China e sua tomada de território na fronteira com a Índia. Os países da região também desconfiam da China enquanto parceira comercial, com o ritmo lento de sua economia pós-covid e o afastamento de políticas pró-crescimento e favoráveis ao empreendedorismo sob Xi Jinping.

Mas os países estão se unindo a Washington por apostar nos EUA em detrimento da China? Ou reconhecem suas próprias forças crescentes e se comportam com pragmatismo, obtendo o que puderem de uma superpotência inconstante, onde um número cada vez maior de eleitores deseja que o país se abstenha de assuntos internacionais?

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Em entrevistas com mais de 100 autoridades e ex-autoridades dos EUA e de países de todo o Indo-Pacífico no ano recente, muitas afirmaram que o próximo século tende a ser menos dominado por Washington do que o anterior. Não importa quem vença a próxima eleição nem a seguinte, afirmaram as fontes, o país responsável pela atual ordem mundial foi enfraquecido pelas guerras no Iraque e no Afeganistão, pelos efeitos desestabilizadores da ascensão da China sobre sua manufatura doméstica e por suas próprias divisões internas.

O mundo também está mudando, com mais países fortes o suficiente para moldar acontecimentos. E à medida que os EUA compartilham tecnologias sensíveis e priorizam trabalho em equipe, muitos observadores acreditam estar testemunhando tanto uma reformulação global quanto uma evolução do poder americano.

Por agora, argumentam, os EUA estão se adaptando a um mundo mais multipolar. Aprendendo a cooperar de maneiras que muitos políticos em Washington, obcecados com a supremacia americana, não consideram — admitindo uma necessidade maior e sendo mais humildes.

EUA diminuídos

Os EUA não impõem mais sua vontade sobre o mundo como antes. Desde a 2.ª Guerra, a fatia americana na economia global caiu pela metade — principalmente em razão da constante ascensão econômica da Ásia. Só a China produz cerca de 35% dos itens manufaturados no mundo, o que equivale ao triplo da produção americana. Japão, Índia e Coreia do Sul também se juntaram às sete maiores economias em termos de produção, dando à Ásia mais volume industrial do que qualquer outra região do mundo.

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A manutenção da superioridade militar dos EUA tem sido melhor, mas a China, com um orçamento menor e um foco mais acentuado sobre o Indo-Pacífico, passou a ter a maior Marinha do mundo em número de navios, uma provável liderança em armas hipersônicas e muito mais fábricas para expandir sua produção militar caso veja necessário.

A democracia dos EUA não é a mesma, conforme aferido meramente pelo número em declínio dos projetos de lei que chegam à sanção dos presidentes. O Partido Republicano têm frequentemente segurado orçamentos, evitando viagens do presidente ao exterior e atrasando ajuda para parceiros como Ucrânia e Taiwan. Pesquisas recentes mostram que a maioria dos republicanos quer que os EUA adotem uma posição menos ativa na resolução dos problemas internacionais.

Mas ambos os partidos têm tido dificuldades em definir como lidar com a dinâmica de poder em mutação na Ásia e os limites dos EUA — ou até mesmo falar a respeito do assunto.

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Navio da Guarda Costeira das Filipinas realiza um treinamento naval ao lado de um navio americano no Mar do Sul da China, área marítima reivindicada por China e Filipinas  Foto: Ted Aljibe/AFP

“A coisa remonta a vários governos”, afirmou o general aposentado do Corpo de Fuzileiros Navais James Jones, que atuou como conselheiro de segurança nacional do ex-presidente Barack Obama. “Nós passamos por um período bastante extenso em que os EUA mandaram mensagens conflitantes.”

O governo Obama prometeu um “pivô para a Ásia” que pareceu nunca chegar. A política externa do governo Trump — com sua mescla entre ataques verbais à China e o abandono de um grande acordo comercial trans-Pacífico — foi visto por alguns países como um sinal de maior insegurança dos EUA em relação ao desafio de Pequim.

A China já tinha se tornado colossal economicamente, a parceira comercial mais importante da maioria dos países do Indo-Pacífico e uma grande investidora.

Países de toda a região também passaram as décadas recentes produzindo milhões de novos consumidores de classe média e expandindo sofisticadas manufaturas, alimentando um aumento no comércio regional que tirou importância do mercado americano e ao mesmo tempo permitiu que mais nações asiáticas forjassem relações mais próximas.

Confiança tanto quanto ansiedade emergiram dessas tendências maiores. Orçamentos militares foram às alturas em toda a Ásia nos anos recentes, e a demanda por tecnologia de defesa dos EUA nunca foi tão alta.

Mas muitos países na região hoje consideram a si mesmos jogadores em uma ordem multipolar que emerge. “Nós somos os personagens principais de nossa história coletiva”, afirmou o presidente das Filipinas, Ferdinand Marcos Jr, no discurso de abertura de uma conferência em Cingapura. E, como resultado, apelam para os EUA menos enquanto protetor e mais como fornecedor de mercadorias (armas), serviços (treinamento) e investimento (em novas tecnologias e equipamento de manutenção).

O Japão deu a virada mais acentuada. De aliviar as tensões com a Coreia do Sul até encerrar décadas de pacifismo com planos de aumentar enormemente seu orçamento militar e assinar pactos de movimentações de tropas com a Austrália e outros países, Tóquio deixou claro que busca atualmente um papel de liderança na proteção da estabilidade regional. Mas mesmo que Washington veja com bons olhos o movimento, as ações dos japoneses decorrem em parte de uma visão crítica em relação aos EUA.

Durante um exercício conjunto com a Força Aérea americana, em Guam, no ano passado, comandantes japoneses afirmaram que esperavam se tornar mais ativos porque os vizinhos do Japão querem que o Japão faça mais — dando a entender que o futuro papel dos EUA é incerto.

“Os EUA não são mais o que eram 20 ou 30 anos atrás”, afirmou uma graduada autoridade japonesa de inteligência, que falou sob condição de anonimato para evitar ofender suas contrapartes americanas. “É isso que está em questão.”

“Não importa quem for o próximo presidente”, acrescentou ele, “o papel dos EUA estará relativamente diminuído”.

EUA se ajustando

As autoridades americanas estão cientes das dúvidas do mundo. Quando informadas de que algumas contrapartes na Ásia percebiam humildade na resposta dos EUA, algumas autoridades de Washington estremeceram. Soou demais como fraqueza.

Mas alguns líderes do Pentágono têm se mostrado abertos a respeito de buscar com os parceiros o que analistas descrevem como uma estratégia “co” — codesenvolvimento, coprodução, cossustentação. E ainda que as autoridades americanas falem há décadas sobre alianças na Ásia, seu tom e suas ações ao longo dos anos recentes apontam para uma mudança sutil, no sentido de uma abordagem mais descentralizada em relação a segurança e mais afabilidade com suas preocupações.

O secretário de Estado americano, Antony Blinken, pronunciou um discurso em setembro instando mais humildade na polícia externa para enfrentar “desafios que nenhum país é capaz de resolver sozinho”.

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O general David Berger, comandante do Corpo de Fuzileiros Navais até o ano passado, quando se aposentou, lançou um plano abrangente em 2019 para os EUA se contraporem às forças da China por meio de uma redistribuição das forças americanas na Ásia, mudando sua composição para unidades menores, atualmente mais móveis, com acesso a bases em diversos países.

Em Cingapura, uma graduada autoridade de defesa afirmou que a fórmula envolve nações mais capazes investindo em si mesmas, parcerias regionais e cooperações com Washington, que hoje aceita que não precisa estar no centro de todas as relações.

Indícios desses EUA mais humildes podem ser percebidos em grandes exercícios militares multinacionais, nos quais os outros países estão desempenhando papéis maiores, e em projetos menores, como o Centro Fusão do Pacífico, inaugurado no ano passado no país insular de Vanuatu. O instituto, que reúne uma base de dados para análises de ameaças no mar, de pesca ilegal a ingerências chinesas, iniciou suas atividades como uma operação quase exclusiva dos EUA, até que parceiros locais exigiram um papel, e as autoridades americanas cederam, incluindo os países.

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, participa de uma reunião com o presidente da China, Xi Jinping, em Pequim, China  Foto: Mark Schiefelbein/AP

A Índia oferece um retrato mais matizado sobre a evolução dos EUA, apontando para um interesse sustentado dos americanos a longo prazo e planos abrangentes para cooperações próximas com um governo indiano cada vez mais confiante — mesmo que isso implique num silêncio sobre a deterioração da democracia indiana.

Em entrevistas, algumas autoridades de Nova Délhi afirmaram que o ponto de inflexão irrompeu quando os EUA se retiraram dos Afeganistão, em agosto de 2021, deixando um rastro de cenas impressionantemente caóticas, sugerindo que mais ajuda dos países da região teria sido útil.

“Os EUA fizeram pouquíssimas consultas anteriormente à retirada, depois começaram a fazer muito mais”, afirmou um graduado diplomata indiano.

Em reuniões na Embaixada dos EUA em Nova Délhi, no contexto das audiências no Congresso sobre o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio, autoridades americanas abrandaram sua terminologia e falaram mais a respeito dos tons de cinza comuns às suas democracias. Diplomatas americanos e indianos afirmaram que preocupações a respeito do governo da Índia promover o nacionalismo hindu ou suprimir a dissidência foram diluídos para: “Temos ocorrências comuns a ambos os países: extremismo, discursos de ódio, desinformação. Como vocês estão lidando com isso?”.

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Pilotos japoneses durante um exercício militar multinacional em Guam, 17 de fevereiro de 2023: parcerias são prenúncio de mudança duradoura no poder americano  Foto: Chang W. Lee/The New York Times

Juntamente com a mudança na maneira com que as autoridades americanas têm se referido ao seu país transcorreu uma ampliação no modo como elas percebem a Índia: não apenas como um mercado enorme, com a maior população do mundo, mas também como uma multiplicadora de inovação.

A Índia forma mais de 1,4 milhão de engenheiros anualmente, ao mesmo ritmo que a China. Num momento em que os EUA passam a se preocupar com os avanços chineses em veículos elétricos, mísseis, computação quântica e outras tecnologias, a Índia poderia oferecer os talentos necessários para ajudar a permanecer no jogo.

Tudo isso foi reunido em um acordo de defesa estratégica e tecnologia revelado durante a visita de Estado do primeiro-ministro Narendra Modi a Washington, em 2023.

O que mais animava Nova Délhi era a coprodução de motores de caças de combate, que o governo indiano vinha buscando havia anos. Mas a Casa Branca enfatizou em seu comunicado sobre o encontro que, com investimentos compartilhados em vários campos, de energia nuclear a microchips, “nenhum canto da empresa humana passou intocado” pela parceria, que abrange “do mar às estrelas”.

Pressionados por outros países, os EUA poderão finalmente aprender que uma abordagem mais humilde pode render resultados poderosos, afirmou o diplomata aposentado Ryan Crocker, ex-embaixador americano no Afeganistão, no Iraque, no Paquistão, na Síria, no Kuwait e no Líbano.

“Certo grau de humildade não significa fraqueza”, afirmou ele. “Nós não podemos fazer tudo — e não devemos fazer tudo. Com essas relações e alianças, nós temos de resolver quem faz o quê.”

Navio da Guarda Costeira da China entra em atrito com uma embarcação das Filipinas em uma área disputada pelos países no Mar do Sul da China  Foto: Forças Armadas das Filipinas / AP

Riscos das ações americanas

Em conversas sobre os EUA com comandantes da defesa das Filipinas, do Japão, da Índia, da Austrália e de outros países, um ar de clientes felizes dentro de um bazar frequentemente transpareceu.

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Os EUA sob o presidente Joe Biden têm vendido e distribuído bastante coisa. Mísseis Tomahawk para o Japão; embarcações para a Guarda Costeira do Vietnã; pistas de aeroportos reformadas para a estrategicamente localizada nação insular de Palau. Treinamento para virtualmente qualquer um que peça na Ásia.

Haverá algum perigo em toda essa generosidade?

Alguns analistas temem que o esforço americano para repartir seu espólio com um mundo mais fragmentado atiça questões sensíveis da arriscada diplomacia com a China, elevando o risco de algum desentendimento capaz de se tornar conflito.

“A busca de Washington por uma malha cada vez mais complexa de relações de segurança é um jogo perigoso”, escreveram os especialistas em defesa Mike Mochizuki e Michael Swaine, radicados em Washington, em um ensaio recente publicado no New York Times.

Claramente, o crescimento das parcerias dos EUA não agrada Pequim.

Na conferência em Cingapura, no início de junho, o ministro da Defesa chinês, Dong Jun, vociferou contra o que descreveu como “alianças militares exclusivas”, que, segundo ele, “são incapazes de tornar nossa região mais segura”.

Mas se um dos riscos da abordagem coletiva dos EUA envolve fazer demais, possivelmente desencadeando um confronto, outro poderia envolver Washinton não conseguir comprometimento suficiente de seus parceiros.

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O presidente Joe Biden e a primeira-dama Jill Biden chegam com o Primeiro-Ministro da Índia, Narendra Modi, para um jantar de Estado na Casa Branca, em 22 de junho de 2023: aproximação de rivais da China  Foto: Doug Mills/The New York Times

Há muita ambiguidade nas coalizões que definem cada vez mais o poder americano na Ásia. Como a região responderia se as Filipinas descambassem para um conflito no Mar do Sul da China? Ou a uma guerra por Taiwan — um centro mundial da produção de chips que Pequim considera território chinês? Os países que codesenvolvem equipamentos militares com os EUA ou recebem as pistas de aeroporto mais longas realmente partirão para a ação?

Também é incerto como Washington responderia a uma agressão chinesa. E essa incerteza, de acordo com muitos observadores, é o que os países estão desesperados para compreender à medida que se aproximam dos EUA.

“Nos mais de 40 anos que conheço os EUA, vi vocês passarem por depressões de autocríticas excessivas e ondas de sobranceria”, afirmou Bilahari Kausikan, um dos mais experientes diplomatas de Cingapura. “Ninguém deve cometer o erro de acreditar que alguma dessas posições seja uma condição permanente.”

O desafio para a Ásia e para o mundo, acrescentou ele, é que os EUA estão crescentemente disfuncionais e “ainda são indispensáveis”: nenhum outro país faz tanto para proteger a ordem que as nações e economias precisam.

A mudança foi que um número crescente de autoridades americanas passou a reconhecer que mais países além dos aliados familiares precisam ajudar. Em um momento de desafios desnorteantes — Gaza, Ucrânia, China, Coreia do Norte, pandemia, mudança climática, inteligência artificial, armas nucleares — suas atribuições passam a implicar convencer os demais que humildade pode ser uma característica tão americana quanto confiança; e está inserida em uma estratégia feita para durar, não importa quem for o presidente.

Quando o almirante John Aquilino, em seus dias finais liderando o Comando do Indo-Pacífico dos EUA, foi questionado sobre como era seu dia típico, durante um evento na Austrália, em abril, ele não mencionou porta-aviões, falou apenas sobre aliados. “Passo muito tempo no telefone, mandando e-mails ou dentro de aviões indo visitar meus parceiros”, afirmou ele. Muitas de suas contrapartes na região, afirmou Aquilino, têm os telefones dos colegas na lista de discagem rápida. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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