O Prêmio Nobel da Paz concedido a Dimitri Muratov, da Rússia, e Maria Ressa, das Filipinas, vem iluminar a conexão essencial que liga a imprensa à convivência pacífica. Na nossa era, não há e não haverá paz sem jornalismo, simples assim.
Bem sabemos que os tiranos de todos os matizes – inclusive aqueles que se sucederam no poder, aqui no Brasil, durante a ditadura militar – gostam de se gabar da ausência de conflitos armados em seus domínios. Quando contam esse tipo de vantagem indevida, mentem. O aparente sossego que se observa na superfície das sociedades submetidas a regimes de força não tem nada a ver com paz: aquilo é a opressão naturalizada, internalizada, engolida e traduzida em obediência. A alegada “paz” de que se jactam os governantes autoritários é a violência virada do avesso.
Paz, paz mesmo, tem outra conformação e outra natureza. Na paz existe respeito, existe diálogo, existe liberdade plena, num ambiente em que homens e mulheres escolhem, voluntariamente, conviver em harmonia – cada um com suas diferenças, seus segredos íntimos, suas privacidades, suas convicções e esquisitices, mas juntos na proteção e no amparo mútuo. Por isso, só existe paz de verdade quando homens e mulheres têm liberdade para se informar, para se expressar e para buscar sem medo a informação verídica de que precisam e a que têm direito. A paz não é a ausência de conflitos aparentes, mas a superação partilhada das pulsões selvagens que alimentam os conflitos.
Neste ponto, cabe um alerta aos cínicos. Não, isto aqui não é música de John Lennon. Isto aqui não é uma utopia. O que se enuncia nestas linhas, ainda que maldigitadas, é o único projeto viável para que a humanidade não se destrua e não destrua o planeta de uma vez por todas. Note bem o improvável leitor: não estamos falando de um entre outros caminhos possíveis, mas do único.
Há um documento das Nações Unidas, de enorme significado, que lamentavelmente caiu num esquecimento conveniente para os novos autocratas (como Putin, na Rússia de Muratov, Duterte, nas Filipinas de Maria Ressa, e, claro, Bolsonaro, neste Brasil de tantas dores). Esse documento, intitulado “Declaração de Princípios sobre a Tolerância”, foi aprovado em 1995, na Conferência Geral da Unesco. Com limpidez e serenidade, logo em seu artigo primeiro, o texto histórico afirma que a tolerância é “fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença”.
Leiamos essa passagem com mais cuidado. O “conhecimento” se traduz no contato das sociedades com a verdade factual. A “abertura de espírito” se realiza na disposição ao diálogo com os diferentes, na capacidade que cada um deve ter de se libertar das próprias obsessões e se libertar de rancores e ressentimentos. Quanto à “comunicação” de que nos fala a Unesco, podemos entendê-la como a reunião de todas as instituições mediáticas em torno do propósito de facilitar o entendimento entre os seres humanos. Esse entendimento não deve ser confundido com alguma forma de concordância, mas como uma combinação de empatia sincera, reconhecimento da legitimidade do outro e a habilidade (coletiva e individual) de discordarmos uns dos outros sem nos agredirmos. Também no artigo primeiro, por decorrência lógica e natural, podemos ler que “a tolerância é a virtude que torna a paz possível”.
Em resumo, a Unesco proclamou que para haver paz é preciso que haja comunicação baseada na tolerância, o que supõe a capacidade compartilhada de reconhecer o estatuto dos fatos e a legitimidade das diferentes leituras dos fatos. Nesse sentido, a verdade factual, tão bem definida por Hannah Arendt, vem se afirmar como âncora, ainda que não a única, da comunicação em uma sociedade livre, democrática e pacífica.
Assim é. Por mais que isso vá soar repetitivo, sejamos claros: não há liberdade sem democracia, assim como não há paz sem uma democracia em que os fluxos da comunicação e da informação estejam sempre desimpedidos.
Logo, não há paz sem jornalismo. Eis o que o Prêmio Nobel vem reconhecer. Melhor: eis o que o Prêmio Nobel, conferido a esses dois jornalistas profissionais tecidos de bravura e despretensão, vem nos ensinar. Maria Ressa e Dimitry Muratov, ao receberem essa láurea, representam muitos mais jornalistas do planeta Terra, vivos ou mortos. Ela, no site Rappler, que criou em 2012, e ele, no Novaya Gazeta, que fundou em 1995, fiscalizam o poder e abastecem a cidadania do saber que a mantém viva, de pé. A coragem de ambos nos comove. mas devemos pensar nela e nele não como combatentes destemidos (que são), mas como construtores da paz que a humanidade almeja e merece. Os bons jornalistas são isso, mensageiros da paz, e fazem jus ao Prêmio Nobel, todos os dias.
* Professor Titular da ECA-USP e articulista da Página 2 de O Estado de S. Paulo
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