Entre os defensores de Kanye West, o pensamento é o seguinte: ele é um gênio, um livre pensador, uma consciência elevada. Eles podem não gostar ou concordar com tudo o que ele faz, mas aplaudem o homem.
Há um culto a Kanye, e há muito tempo cheguei à conclusão de que nossa sociedade confere um fascínio especial aos cultos, principalmente quando estão ligados não à religião, mas à cultura pop ou à política. Nessas arenas, as pessoas se divertem, sentem-se inocentes, como se estivessem torcendo juntas por um time favorito.
Portanto, não estou aqui para discutir se West é um gênio, embora quando alguém se refere a si mesmo como tal, isso tende a prejudicar a denominação.
Este próprio jornal (o The New York Times) tem repetidamente chamado West de gênio, então caberia a ele, suponho, agir como tal.
Mas sempre me pareceu que West anseia por ser considerado um Mozart moderno: o gênio torturado. Claro, Mozart era um gênio indiscutível, mas a ideia de que ele era atormentado pode ser um mito. Assim escreveu Jan Swafford em seu livro Mozart: The Reign of Love”:
Enquanto Mozart teve sua cota de tristeza, perda e frustração como o resto de nós, ele era essencialmente um homem feliz. Escreveu para o consumo público, o que quer dizer que era um profissional como poucos compositores o são. Ainda assim, de modo geral, ele fez o que queria fazer da maneira que queria e, quando terminou, não se preocupou muito com o que o público pensava disso.
West não é Mozart. West é um viciado em atenção taciturno e narcisista e um viciado em elogios. Ele participa de sua tortura. Ele a organiza e a emprega. Ela pode vir naturalmente, mas pode ser fabricada, para ampliar a lenda.
Deixarei que outros debatam se seus talentos como artista, que são notáveis, ascendem ao de gênio. Quero me concentrar em West como um agente do caos cultural, como um provedor de políticas perigosas. Nesta arena, ele não é nenhum gênio; ele é apenas um cara bem vestido que chama a atenção.
West é frequentemente descrito como um “livre pensador”, mas no espaço político ele não é. Ele é simplesmente um artista negro disposto a regurgitar ideias conservadoras - às vezes beirando a supremacia branca - como se fossem suas próprias ideias.
Vindo da boca de um superstar internacional, um estilista de moda, a opressão começa a soar como liberdade para aqueles que se esquivam ou rejeitam abertamente uma análise séria da política e da atualidade.
Na semana passada, West causou confusão ao usar uma camiseta “White Lives Matter” (Vidas Brancas Importam) em seu desfile de moda em Paris. A Liga Antidifamação rotula “White Lives Matter” como uma “frase supremacista branca” e escreveu que, desde 2015, “supremacistas brancos em vários estados, especialmente membros do grupo supremacista branco Aryan Renaissance Society, do Texas, promoveram o slogan” como parte de “uma campanha para popularizar a frase”.
Bem, na semana passada, West deu um impulso aos supremacistas brancos.
West é o mesmo homem que em 2013 estava vendendo mercadorias com bandeiras confederadas em turnê. Ele se explicou dessa forma, a uma estação de rádio naquele ano, sobre as reações horrorizadas das pessoas: “Qualquer energia é boa energia. A bandeira confederada representou a escravidão de certa forma. Essa é a minha visão abstrata do que eu sei sobre isso, certo? Por isso escrevi a música New Slaves. Por isso peguei a bandeira confederada e fiz dela minha bandeira. É a minha bandeira agora.”
Kanye apresenta isso como uma escolha, mas são, de fato, bobagens sobre choque de valores que promovem e normalizam símbolos de ódio contra os negros.
Não há nada de genial nisso. É a exploração de uma barganha. Como o próprio West disse, “qualquer energia é boa energia”, que é apenas uma maneira quase espiritual, ainda que cheia de jargão, de reinterpretar o que Oscar Wilde escreveu em O Retrato de Dorian Gray no final de 1800: “Há apenas uma coisa no mundo pior do que falarem da gente, é não falarem.” O espírito dessa ideia levou a “toda publicidade é boa publicidade”.
Após os últimos protestos sobre a camiseta “White Lives Matter” que ele usou na Fashion Week, West continuou sua busca por publicidade, indo à Fox News. A entrevista foi um emaranhado de temas nos quais ele tentou juntar piedade, inspiração artística, perseguição pessoal, desprezo pelas instituições, tópicos antiaborto, uma inversão nas ideias em torno do racismo e seu apoio a Donald Trump. Você sabe, ideias centrais da direita moderna.
West diz sobre a camiseta: “A resposta para a razão pela qual escrevi ‘Vidas Brancas Importam’ em uma camiseta é porque elas importam”. Ele banca o inconsciente com relação ao óbvio.
West é o mesmo homem que disse em 2015 que “racismo é um conceito datado” e que “é como um conceito bobo que as pessoas” usam “para separar, alienar, identificar qualquer coisa. É estúpido.”
Ele é o mesmo homem que disse em uma entrevista ao TMZ em 2018: “Você ouve falar de escravidão por 400 anos. Por 400 anos? Isso soa como uma escolha. Tipo, você esteve lá por 400 anos, e isso é tudo?”
Mais tarde, West se desculpou pelos comentários sobre escravidão, mas mesmo no pedido de desculpas ele não conseguiu controlar seu narcisismo, dizendo: “Em um relacionamento, talvez alguém faça algo apenas para ver se você ainda o ama. Uma coisa que eu entendi sobre os comentários do TMZ é que eles me mostraram o quanto os negros me amam e o quanto os negros contam comigo e dependem de mim. E eu valorizo isso.”
Nada disso, na esfera política, é genial. É superficial e chato. Kanye é apenas um homem negro que descobriu o conservadorismo negro e acha que isso é a iluminação. Não há nada de complexo ou misterioso nisso. Ele é um homem negro repetindo a supremacia branca, enquanto muitos ignoram isso, continuam dançando sua música e vestindo suas roupas.
West é um homem negro experimentando o racismo anti-negro vintage, remixando e lançando-o sob um novo rótulo: o do gênio negro torturado. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
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