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Modern Love: A escritora lésbica e seu marido gay extravagante

Peter me ensinou a rir do destino enquanto vivíamos nosso sonho. Pelo menos por um tempo

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Por Staceyann Chin

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Peter e eu nos juntamos ainda jovens. No começo dos 20 anos.

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Ele era incrivelmente bonito, alegre, com olhos castanhos cheios de alma e uma cabeça cheia de cachos soltos e rebeldes. Criado por uma mulher afro-americana e um pastor branco, Peter passou sua infância mergulhado no sacerdócio evangélico. Ele estava tão aterrorizado com os sermões de seu pai quanto aliviado com a inclinação de sua mãe para administrar os aspectos mais humanos da congregação que ambos lideravam.

Na noite em que conheci Peter, ele e eu nos apaixonamos completamente. Destino, pode-se dizer. Ele me fez rir com suas primeiras palavras. Foi a minha primeira vez no Nuyorican Poets Cafe, o principal local de estreia de todos os poetas performáticos que tentam entrar na cena poética de Nova York. Eu li minha primeira peça no microfone aberto após o slam. Peter foi um dos primeiros admiradores a abrir caminho entre a multidão que aplaudia para me dizer que eu encarnara simultaneamente a fúria de seu pai e a vulnerabilidade de sua mãe – e, como tal, eu estava destinada a ser um de seus verdadeiros amores.

“Apenas um dos?” eu perguntei.

“O destino não é fixo”, ele disse, “os deuses têm que deixar espaço para surpresas!”

Quando nos conhecemos, no outono de 1997, os pais de Peter estavam há muito tempo divorciados. Seu pai havia deixado a igreja. E Peter já estava explorando outras verdades em que acreditar. A poesia era sua nova religião. Seus poemas eram longos, líricos e carinhosamente pintados com as pinceladas impossivelmente belas da utopia.

Ele vivia sua vida com a mesma energia. Ele acreditava na bondade das pessoas. Certa vez, no meio do inverno no Washington Square Park, eu o vi desabotoar o casaco e colocá-lo nos ombros de um bêbado que acabara de xingá-lo com palavras homofóbicas.

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Eu era uma ex-cristã e lésbica recém-assumida fugindo da homofobia violenta do final dos anos 1990 na Jamaica, ainda com a fúria de ter sido atacada por uma dúzia de meninos e abusada sexualmente em Kingston. Eu estava envergonhada e com raiva por isso ter definido meu último ano de universidade. Foi por isso que me mudei para Nova York com visto de turista. Eu precisava de um lugar seguro para chamar de lar.

Mas me senti à deriva neste novo país. Eu tinha algumas tias e tios em Nova York, mas antes disso eu não tinha absolutamente nenhuma relação com minha família biológica. Meus pais me abandonaram – minha mãe quando nasci e meu pai nunca apareceu. E agora que eu havia anunciado que era lésbica, aquela família já distante queria mais distância ainda.

Eu estava em Nova York em busca de segurança. Liberdade. E espaço para explorar minha identidade lésbica em ascensão. Eu estava procurando uma tribo à qual pudesse pertencer inequivocamente. E a cena da poesia performática do slam foi uma mistura de todo tipo de desajuste. Peter e eu nos encaixamos perfeitamente.

Em pouco tempo, parecia que nos conhecíamos a vida inteira. Compartilhávamos tudo: histórias, poemas, decepções, esperanças. Passamos a maioria das noites juntos. Eu o encontrava depois do trabalho e ia a qualquer café que estivesse realizando uma competição de slam naquela noite.

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Ele sabia tudo sobre mim: como eu estava sem grana, quem roubou meu vibrador favorito, a ex-policial que me bateu – e como eu continuava voltando para ela. Toda vez. Uma noite, depois de uma briga particularmente ruim com minha parceira abusiva, minha colega de quarto me encurralou e me disse que ia aumentar o aluguel a menos que eu fizesse sexo com ela. Meu visto de turista estava quase vencido. Eu não tinha dinheiro, exceto o que ganhava nos slams – e isso mal dava para pagar o sofá, o macarrão instantâneo e o cartão do metrô. Eu não tinha visto de trabalho, então não conseguia emprego. Não conseguia nenhum serviço. Sem documentos eu não conseguia nem entrar em um abrigo.

Eu disse a Peter que desistiria desse sonho maluco de liberdade em Nova York para voltar para a Jamaica. Ele ficou quieto enquanto eu explicava o que significava não ter documentos; falei sobre greencards e cidadania e vistos e autoridades de imigração. Quando terminei de falar, ele me pediu em casamento. Quando recusei, dizendo que tal casamento era ilegal e que poderia nos colocar em problemas com a lei, ele disse que a lei estava errada.

“Você me ama, certo?”

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Eu concordei.

“Bem eu amo você. Você me ama. Eu quero ter filhos. Você quer ter filhos, certo?”

“Certo…”

“Bem, isso é o que as pessoas fazem quando se amam e querem ter filhos juntos. Elas se casam. E isso as torna uma família. Elas não podem ter as duas coisas. E amor é amor, certo?”

Seu argumento era sólido. Se as regras fossem justas, eu poderia me casar com uma mulher, obter cidadania e constituir família com ela. Naquele momento nos EUA, isso não era permitido. Mas Peter e eu estávamos dentro do nosso direito de reivindicar as vantagens de ser um casal. Já éramos parceiros. Ele já era minha família.

Nós nos casamos na prefeitura. O namorado de Peter, que seria nossa testemunha, nem apareceu para o casamento. Tivemos que pedir a um homem bonito com botas de cowboy e um colete de lantejoulas para substituí-lo.

Depois do nosso sorridente “sim”, Peter me convidou para o jantar de Ação de Graças com sua família. Antes do fim do mês, fui morar com ele e sua incrível mãe, Carole Linda, na bela casa antiga, aquela que já foi a igreja de seus pais, a duas quadras da praia em Far Rockaway.

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Passamos três anos mágicos morando juntos. Ninguém entendia o casal peculiar e excêntrico que chegava junto, saía junto, mas flertava com todos. Nós nos divertimos muito juntos. Nós éramos o casal perfeito. Sabíamos que seríamos os pais perfeitos. Mas éramos um casal moderno. Queríamos ser mais intencionais, mais deliberados sobre nossas escolhas do que nossos pais haviam sido. Tínhamos mais coisas para viver antes de assumirmos as responsabilidades de crianças. Não tínhamos dinheiro, mas tínhamos muito tempo.

Estávamos comprometidos em viver primeiro.

Mas aos 29 anos, Peter foi diagnosticado com câncer. Etapa 4.

Ele foi diagnosticado em maio. Ele morreu em 16 de dezembro. Às 11h30. Meia hora antes de completar 30 anos.

Fiquei tão furiosa com a morte dele que não consegui chorar.

Parecia que todos os meus sonhos de família morreram com ele; um parceiro, filhos, meu companheiro disposto à redefinição radical da família moderna, do amor moderno.

Sua mãe era melhor em fazer as pazes com os céus sobre a perda de seu primogênito. Fiquei surpresa com sua capacidade de permanecer conectada a mim. Ela ficou por perto, ligando, enviando cartões de Natal, mostrando-se presente, mesmo enquanto eu permanecia distante, zangada, insegura quanto a merecer a magia da família que Peter tão tragicamente, de repente, deixou para trás.

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De má vontade, permaneci ligada ao seu irmão mais novo, CJ, que me lembrava muito Peter. Exceto que ele não era gay, ou poeta. Ele cresceu e se tornou um bom cineasta e o único homem heterossexual no grupo LGBTQ da faculdade. Costumávamos nos telefonar para lembrar de Peter, para falar da magia dele, para aproveitar a memória compartilhada de sua magia.

Mais tarde, quando fiquei frenética com o desejo de começar uma família – perseguindo gays em festas caseiras, implorando esperma de estranhos em aviões – eu desabei e chorei pelo que parecia ser a morte prematura do meu marido. Eu não queria ser a estranha jovem viúva dando festas lésbicas em Crown Heights. Eu queria ser a escritora lésbica durona, com o marido gay extravagante, criando quatro filhos em uma velha casa incoerente que costumava ser uma igreja, a duas quadras da praia em Far Rockaway.

Em uma conversa com CJ, ele me interrompeu para perguntar se havia uma maneira de substituir Peter, me dando seu esperma. Um ano depois, minha filha, Zuri, o milagre mais surpreendente, nascida uma década após a morte de Peter, refere-se a Peter como seu “quase pai”. Carole Linda ainda é minha sogra e a avó biológica real de minha filha.

O “Baba” de Zuri, CJ, se casou em agosto passado. Zuri quase desmaiou de alegria ao ser convidada para levar o anel no casamento. Todos nós viajamos de várias cidades para vê-los falar os votos. Seus irmãos, suas esposas, a avó de Peter, seu pai, eu, minha parceira não monogâmica e um belo grupo de pessoas comuns, desajustadas, artistas, pastores, escritores, ativistas, gays, heterossexuais, não-binários. Olhei ao redor da sala, pensando que se tivéssemos escolha, meu casamento com Peter seria assim. Peter teria se divertido com isso.

Alguns dias ainda ouço a voz de Peter dentro da minha cabeça, farfalhando no vento do outono, crescendo no trânsito da West Side Highway. Ele está sempre sussurrando, gritando, dizendo a mesma coisa: “O destino não é fixo, Staceyann. Sempre há espaço para os deuses nos surpreenderem.” / TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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