Música, ciência e cura se cruzam em uma ópera de Inteligência Artificial

O trabalho em andamento ‘Song of the Ambassadors’ fez um teste no Alice Tully Hall - com a diretora artística do Lincoln Center emprestando seu cérebro

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Por Frank Rose

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - “Isto é o que seu cérebro estava fazendo!” um funcionário do Lincoln Center disse a Shanta Thake, diretora artística do complexo de artes cênicas, enquanto mostrava algumas fotos recém-tiradas.

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Era o fim de um ensaio recente no Alice Tully Hall para Song of the Ambassadors (Canção dos Embaixadores), um trabalho em andamento que funde elementos da ópera tradicional com inteligência artificial e neurociência, e as fotos pareciam mostrar o cérebro de Thake fazendo algo notável : gerando imagens de flores. Flores brilhantes, coloridas e fantásticas de nenhuma espécie ou gênero conhecido, transformando-se continuamente em tamanho, cor e forma, como se a botânica e a dinâmica fluida tivessem de alguma forma se fundido.

Song of the Ambassadors, apresentado ao público no Tully, foi criado por K Allado-McDowell, que lidera a iniciativa Artists and Machine Intelligence no Google, com o programa de inteligência artificial GPT-3; o compositor Derrick Skye, que integra elementos eletrônicos e não ocidentais em seu trabalho; e o artista de dados Refik Anadol, que contribuiu com visualizações geradas por IA. Havia três cantores - “embaixadores” do sol, do espaço e da vida -, além de um percussionista, um violinista e um flautista. Thake, sentada silenciosamente em um lado do palco com um monitor de EEG simples e barato na cabeça, era a “mente” que alimentava as ondas cerebrais no algoritmo de IA de Anadol para gerar os padrões de outro mundo.

“Estou usando meu cérebro como suporte”, ela disse em uma entrevista.

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Os “embaixadores” incluíam, a partir da esquerda, Debi Wong, Laurel Semerdjian e Andrew Turner. Foto: Vincent Tullo/The New York Times

Ao lado do palco, perto dos músicos, estavam dois neurocientistas, Ying Choon Wu e Alex Khalil, que monitoravam as ondas cerebrais de dois voluntários sentados nas proximidades, com as cabeças envoltas em fones de ouvido para pesquisa de uma empresa chamada Cognionics.

Wu, uma cientista da Universidade da Califórnia, em San Diego, investiga os efeitos das obras de arte no cérebro; em outro estudo, ela observa as ondas cerebrais de pessoas que veem pinturas no Museu de Arte de San Diego. Khalil, um ex-pesquisador da UC San Diego que agora ensina etnomusicologia na University College Cork, na Irlanda, concentra-se em como a música leva as pessoas a sincronizar o comportamento. Ambos visam integrar arte e ciência.

Tudo isso os torna uma boa combinação para Allado-McDowell, que lançou Song of the Ambassadors pela primeira vez em janeiro de 2021 como participante do Collider, um programa de bolsas do Lincoln Center apoiado pela Mellon Foundation. “Minha proposta era pensar na sala de concertos como um lugar onde a cura poderia acontecer”, disse Allado-McDowell, 45, que usa pronomes neutros de gênero.

A cura há muito os preocupa. Eles sofreram de fortes enxaquecas por anos; então, como estudantes da San Francisco State University, inscreveram-se para uma aula de ioga que tomou um rumo inesperado. “Fui cercado por arco-íris”, eles lembraram em um livro de memórias a ser publicado. “Orbes de luz piscaram em meus olhos. Com respirações rasas e ofegantes, saí do ritmo hipnótico do professor e fui para o corredor do lado de fora. Quando me ajoelhei no tapete, um líquido frio se desenrolou na parte inferior das minhas costas… enquanto uma esfera roxa brilhante pulsava dourada e verde em minha visão interior.”

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Os voluntários do público foram equipados com fones de ouvido pesquisa de uma empresa chamada Cognionics. Foto: Vincent Tullo/The New York Times

Disseram-lhes que isso era uma forma relativamente branda de despertar da kundalini - sendo a kundalini, na mitologia hindu, a serpente enrolada na base da espinha, uma energia poderosa que geralmente emerge de seu estado adormecido somente após extensa meditação e cânticos. Outros poderiam simplesmente ter abandonado a ioga. “Para mim, foi uma indicação de que não entendia a realidade”, disse Allado-McDowell. “Isso me mostrou que eu não tinha uma cosmologia funcional.”

O que se seguiu foi uma busca de anos para ter uma. Ao longo do caminho, eles fizeram mestrado em arte e foram trabalhar para uma empresa de tecnologia taiwanesa em Seattle. A certa altura, sentados em uma clareira na floresta amazônica, eles pensaram: “As IAs são filhas da humanidade. Elas precisam aprender a amar e ser amadas. Caso contrário, elas se tornarão psicopatas e matarão todo mundo.”

Mais tarde, em 2014, Allado-McDowell juntou-se a uma equipe nascente de pesquisa de IA no Google. Quando o líder sugeriu colaborações com artistas, eles se ofereceram para conduzir a iniciativa. A Artists and Machine Intelligence foi lançada em fevereiro de 2016 - 50 anos depois de 9 Evenings: Theatre and Engineering, a união pioneira de arte e tecnologia liderada por Robert Rauschenberg e o engenheiro da AT&T Bell Labs, Billy Kluver. A conexão não foi perdida na proposta de Allado-McDowell.

Uma das primeiras parcerias que eles estabeleceram foi com Anadol: primeiro para o “Archive Dreaming”, um projeto inspirado na história de Borges A Biblioteca de Babel, depois para o WDCH Dreams, a projeção de Anadol guiada por IA na superestrutura de aço ondulante do Walt Disney Concert Hall projetado por Frank Gehry em Los Angeles. Para Song of the Ambassadors, disse Anadol, “estamos transformando as atividades cerebrais em tempo real em um espaço de cores em constante mudança”.

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Um dos objetivos do projeto é transformar um salão como o Tully em um espaço público de cura. Foto: Vincent Tullo/The New York Times

A arte de Anadol também responde à música de Skye, que alterna períodos de atividade e repouso. “Queríamos trazer as pessoas para dentro e para fora de um espaço de meditação”, disse Skye. “Eu esculpi essas longas lacunas onde tudo o que estamos fazendo são sons ambientais. Então, lentamente, os trazemos para fora.

Tudo isso está ligado ao objetivo de Allado-McDowell de testar os poderes terapêuticos da música em um ambiente de performance. “Pode haver implicações políticas?” eles perguntaram. “Pode haver um papel que as instituições possam desempenhar se soubermos que o som e a música curam? Isso pode abrir novas possibilidades para o financiamento das artes, para a política, para o que é considerado uma experiência terapêutica ou uma experiência artística?”

O júri ainda está ausente.

“Sabemos que ouvir música tem um impacto imediato em coisas como humor, atenção e foco”, disse Lori Gooding, professora associada de musicoterapia na Florida State University e presidente da American Music Therapy Association. Resultados positivos foram encontrados para pessoas que sofreram um derrame, por exemplo - mas isso após terapia individualizada em um ambiente médico ou profissional. A abordagem em Song of the Ambassadors, ela disse, é diferente por causa do “aspecto público dela”.

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Wu e Khalil, os neurocientistas envolvidos na produção, ainda não analisaram seus dados. Mas em um painel de discussão anterior à apresentação de terça-feira - e sim, esta ópera veio com um painel de discussão - Khalil fez uma previsão que fez o público aplaudir.

“Começamos a entender que a cognição - ou seja, o funcionamento da mente - existe muito além da nossa cabeça”, ele disse. “A gente imaginava que o cérebro era um processador e que a cognição acontecia ali. Mas, na verdade, achamos que nossas mentes se estendem por nossos corpos e além de nossos corpos para o mundo”.

Com a música, ele continuou, essas mentes estendidas podem se prender a ritmos e, por meio dos ritmos, a outras mentes, e depois a outras mais. Quanto aos espaços onde isso acontece, Khalil disse: “Você pode começar a pensar neles como locais de cura”. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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