Répteis podem ter relacionamentos monogâmicos: Cientistas descobrem segredos sociais destes animais

Um acúmulo de pesquisas científicas sugere que há muito mais na vida social dos lagartos, cobras e criaturas relacionadas

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Por Hannah Thomasy

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Ned e Sunny esticam-se juntos na areia quente. Ele descansa a cabeça nas costas dela e, de vez em quando, pode dar-lhe uma cutucada carinhosa com o nariz. Eles são tranquilos e, como muitos casais de longa data, parecem perfeitamente satisfeitos apenas na presença um do outro.

O casal é monogâmico, o que é bastante raro no reino animal. Mas Sunny e Ned são um pouco mais escamosos que seus típicos companheiros de vida - eles são tiliquas rugosas que vivem no Museu de Melbourne, na Austrália.

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Na natureza, os tiliquas rugosas formam regularmente laços de longo prazo, retornando ao mesmo parceiro durante a época de acasalamento ano após ano. Um casal de lagartos em um estudo de longo prazo estava se reunindo há 27 anos e ainda estavam firmes quando o estudo terminou. Dessa forma, os répteis são mais parecidos com alguns dos mais famosos acopladores de longo prazo do reino animal, como albatrozes, arganazes do campo e macacos-coruja, e confundem as expectativas que muitas pessoas têm sobre a personalidade dos lagartos.

“Há mais coisas acontecendo socialmente com os répteis do que pensamos”, disse Sean Doody, biólogo conservacionista da Universidade do Sul da Flórida.

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O comportamento social em répteis tem sido amplamente ignorado por décadas, mas um grupo de cientistas dedicados começou a desvendar as estruturas sociais enigmáticas dos répteis. Com a ajuda de armadilhas fotográficas e testes genéticos, os cientistas descobriram répteis vivendo em grupos familiares, cuidando de seus filhotes e se comunicando de maneira secreta. E eles não estão fazendo isso apenas porque amam lagartos. Atualmente, uma em cada cinco espécies de répteis estão ameaçadas de extinção; pesquisadores dizem que aprender mais sobre a sociabilidade dos répteis pode ser essencial para a conservação.

Olhar humano sobre os répteis

Os humanos têm uma longa história de animosidade em relação aos répteis, e cientistas influentes do século 20 contribuíram com a ideia dos répteis como animais frios e sem inteligência. Em meados dos anos 1900, Paul MacLean, neurocientista de Yale e depois do Instituto Nacional de Saúde Mental, começou a desenvolver a hipótese do cérebro trino. Ele teorizou que o cérebro humano continha três partes: o complexo R, que governava a sobrevivência e os comportamentos instintivos básicos; o complexo paleomamífero, que controlava o comportamento emocional; e o córtex neomamífero, responsável por funções superiores, como resolução de problemas e linguagem.

As ideias de MacLean foram popularizadas em Os Dragões do Éden de Carl Sagan em 1977, e estão profundamente enraizadas - a ideia do “cérebro de lagarto” como um centro para os instintos básicos de sobrevivência ainda é amplamente aceita, embora não seja baseada em fatos reais.

“É totalmente falso”, disse Stephanie Campos, neuroetóloga da Universidade Villanova.

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Gordon Burghardt, etólogo da Universidade do Tennessee, em Knoxville, que estuda o comportamento animal há mais de 50 anos, disse que muitos cientistas, mesmo herpetologistas, ficaram cegos por seus preconceitos, acreditando que comportamentos sociais “não podem ocorrer nesses animais , portanto você não está vendo o que está vendo.”

Mesmo sem nossos preconceitos culturais, os répteis podem ser difíceis de estudar.

“Muitos deles são muito tímidos”, disse Allison Alberts, cientista conservacionista e cofundadora do Iguana Specialist Group da União Internacional para a Conservação da Natureza. Ela acrescentou que “Eles são muito sensíveis quando uma pessoa está presente. Eles simplesmente congelam - eles não fazem algumas de suas interações sociais normais quando uma pessoa está por perto.”

Muitas formas de interação entre répteis também são invisíveis.

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“A comunicação química desempenha um papel enorme”, disse Julia Riley, ecologista comportamental da Universidade de Mount Allison em New Brunswick, Canadá. “E isso é algo que você nem consegue ver e é muito difícil de demonstrar a partir do ambiente também.”

No entanto, apesar desses preconceitos e dificuldades, os pesquisadores estão começando a desvendar os complexos mundos sociais dessas criaturas.

Tiliquas rugosas na Austrália podem formar laços que duram décadas de temporadas de acasalamento. Foto: Museums Victoria via The New York Times

Descoberta acidental

Uma das descobertas mais fascinantes do comportamento social dos répteis - monogamia de longo prazo em tiliquas rugosas como Ned e Sunny - aconteceu inteiramente por acidente.

Michael Bull, o biólogo australiano que fez a descoberta, estava inicialmente menos focado em lagartos e mais interessado em estudar as diferentes espécies de carrapatos que viviam neles. A partir de 1982, ele iria capturar tiliquas rugosas, marcá-los, fazer várias medições e depois soltá-los. Depois de vários anos (e milhares de lagartos), ele notou que a cada primavera, depois de meses separados, os mesmos machos e fêmeas de alguma forma conseguiam se encontrar.

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O namoro entre tiliquas rugosas talvez não seja o mais romântico para os padrões humanos.

“O macho seguirá a fêmea por várias semanas, geralmente alguns meses, e defenderá essa fêmea de qualquer outro macho que tente invadir seu espaço”, disse Jane Melville, curadora sênior de vertebrados terrestres nos Museus Victoria, na Austrália. Os machos também foram vistos permitindo que suas companheiras comessem primeiro, ela disse.

Na verdade, este último comportamento é uma boa jogada para machos de várias espécies. Outra espécie de lagarto, o whiptail da América Central, foi observado oferecendo a uma parceira em potencial um lindo sapo morto para que ela comesse antes do acasalamento.

Bichos de família

Apesar do vínculo entre os pares que acasalam, os tiliquas rugosas não são os pais mais atentos. Eles dão à luz dois ou três bebês enormes (que podem pesar quase meio quilo cada, enquanto os adultos chegam a cerca de 1 quilo), e logo depois, mãe e filhos seguem caminhos separados.

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Outras espécies são pais mais cuidadosos. Em muitas espécies de crocodilianos, por exemplo, as fêmeas guardam seus ninhos, mantendo seus ovos protegidos de predadores. Alguns filhotes de crocodilianos começam a vocalizar antes mesmo da eclosão, e os cientistas acham que isso pode fazer com que a mãe desenterre o ninho e leve os filhotes para a água.

Inicialmente, de acordo com Vladimir Dinets, um zoólogo da Universidade do Tennessee, em Knoxville, os observadores humanos interpretaram mal esse comportamento. “Pensava-se originalmente que crocodilos e jacarés eram incrivelmente burros”, ele disse. Quando as fêmeas desenterraram os bebês e os carregaram “em suas mandíbulas, presumiram que estavam apenas canibalizando-os”.

Os crocodilianos continuam a vocalizar após a eclosão, emitindo “chamadas de contato”, o que pode ajudar a facilitar a coesão do grupo. Filhotes também produzem gritos de socorro, que atraem as mães, presumivelmente para proteção.

Sunny, na frente e Ned. É quase como uma história de amor de lagarto. Foto: Jesse Smith Taylor/Museums Victoria via The New York Times

Outra criatura muito difamada, a cascavel, também pode apresentar hábitos sociais e laços familiares surpreendentes: a análise genética revelou que as fêmeas grávidas preferem se associar com parentes, sugerindo a importância potencial dos agrupamentos familiares. O cuidado parental, pelo menos inicialmente, parece ser importante também.

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“As cascavéis dão à luz crias vivas”, disse Melissa Amarello, diretora executiva da Advocates for Snake Preservation. “As fêmeas e os bebês ficam juntos pelo menos até que os bebês comecem a trocar de pele pela primeira vez, o que parece acontecer uma a duas semanas após o nascimento.”

A vida em família também ocorre com alguns lagartos da família Scincidae, ou skinks (que inclui tiliquas rugosas como Ned e Sunny). Um estudo de imagem de 3 anos só recentemente revelou a devoção das mães skink Cunningham. Em um caso, uma fêmea estava com sua família quando uma cobra apareceu perto do local.

A fêmea, de acordo com Riley, “corre para a frente, agarra a cobra marrom oriental, a sacode e depois se certifica de que ela se afaste do local”.

Ela acrescentou: “Isso é claramente um ato de cuidado parental”, um grande risco pessoal para a mãe, já que as cobras marrons orientais têm um dos venenos mais tóxicos entre as cobras do planeta.

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Estudar para preservar

Aprender mais sobre as estruturas sociais dos répteis pode ser essencial para salvar espécies à beira da extinção.

Por exemplo, programas iniciais estão tentando fortalecer as populações selvagens de iguanas do Caribe seriamente ameaçadas, criando filhotes de iguanas em cativeiro e liberando-os quando eles crescem o suficiente para não serem comidos por predadores invasores, como gatos e mangustos.

Embora alguns fatores envolvidos no sucesso de tais programas tenham sido bem estudados, disse Alberts, os fatores sociais foram relativamente ignorados. Isso leva a perguntas como: “Quantos devemos liberar ao mesmo tempo? Todos devem ser soltos no mesmo local?” ela disse. “É aqui que sinto que algumas dessas considerações sociais e a capacidade de entendê-los melhor poderiam melhorar o sucesso do programa.”

Compreender a capacidade de sociabilidade dos répteis também pode ser útil de outras maneiras. “Os répteis em geral enfrentam grande perseguição - de cobras em particular, mas também de crocodilianos e de muitos lagartos também”, disse Riley.

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As pessoas podem desenvolver mais empatia por esses animais se entenderem que também são criaturas sociais.

“Se pudermos abrir esse mundo social secreto dos répteis para as pessoas, talvez elas pensem duas vezes antes de matar uma cobra ou um lagarto e talvez encontrem algum valor nesses animais que as pessoas muitas vezes consideram assustadores ou coisa pior”, disse Riley.

Em termos simples, ela acrescentou, “não conservamos o que não nos importa”. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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