Em 1587, horas antes de sua decapitação, Mary Stuart, rainha da Escócia, enviou uma carta para seu cunhado Henrique III, rei da França. Mas ela não apenas assinou a correspondência e a enviou. Ela dobrou o papel várias vezes, cortou um pedaço da página e o deixou à parte. Ela usou esse pedaço de papel para costurar a carta, como se a lacrasse.
Em uma época anterior aos envelopes lacrados, essa técnica, agora chamada de letterlocking (uma junção das palavras letter (carta) e locking (trancar), era tão importante para deter bisbilhoteiros quanto a criptografia é para sua caixa de entrada de e-mail hoje. Embora essa forma de arte tenha desaparecido na década de 1830 com o advento dos envelopes produzidos em massa, recentemente ela atraiu novamente a atenção dos pesquisadores. Mas eles enfrentaram um problema: como você vê o conteúdo dessas cartas sem danificar permanentemente pedaços inestimáveis da história?
Em fevereiro, uma equipe de 11 cientistas e pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) e de outras instituições divulgou o desenvolvimento de uma técnica de realidade virtual que permite realizar essa tarefa delicada sem danificar o conteúdo dos arquivos históricos.
Na revista Nature Communications, a equipe conta ter aberto virtualmente quatro cartas não entregues e escritas entre 1680 e 1706. As correspondências estavam guardadas em um baú de madeira em Haia. Conhecida como Coleção Brienne, ela conta com 3.148 itens, incluindo 577 cartas que nunca foram abertas.
A nova técnica pode proporcionar um aprendizado a respeito da longa história da segurança das comunicações. E, ter acesso às vidas privadas descritas nessas correspondências pode ajudar os pesquisadores a estudar histórias escondidas em páginas frágeis encontradas em arquivos de todo o mundo.
“Vamos começar a desdobrar virtualmente” as cartas trancadas, disse Daniel S. Smith, integrante da equipe do King’s College de Londres, “e ver quais segredos elas revelam”.
Em uma entrevista, Jana Dambrogio, principal autora do estudo e curadora das bibliotecas do MIT, disse que saber da existência do tesouro a motivou a ver se colegas mais ligados à tecnologia poderiam encontrar uma maneira de abrir digitalmente as cartas trancadas. Na época, em 2014, os pesquisadores podiam ler e estudar essas cartas apenas cortando-as, o que muitas vezes danificava os documentos e obscurecia ou eliminava pistas de como elas haviam sido protegidas.
“Nós realmente precisamos manter os originais”, disse Jana. “Você pode continuar aprendendo com elas, especialmente se as mantiver fechadas e intactas”.
As cartas antigas foram protegidas de olhares indiscretos quando as folhas de papel foram cuidadosamente dobradas para se tornarem seus próprios invólucros seguros.
A primeira etapa da abertura digital é digitalizar uma carta com uma máquina de raio-X avançada. A imagem tridimensional resultante - muito semelhante a um exame médico - revela a configuração interna da carta. Um computador então analisa a imagem para desfazer as dobras e, quase como em um passe de mágica, transformar as camadas em uma folha plana, revelando um texto manuscrito que pode ser lido.
A equipe traduziu uma das cartas abertas digitalmente da Coleção Brienne. Ela tem a data de 31 de julho de 1697 e foi enviada de Lille, França, a um comerciante francês em Haia. Acabou-se descobrindo que era um pedido de cópia autenticada de obituário. A carta também pedia “notícias de sua saúde”.
Mais análises da Coleção Brienne, de acordo com o artigo publicado, podem enriquecer os estudos não apenas das redes postais no início da Europa moderna, mas também da política, religião, música, drama e padrões de migração da região.
Além de anunciar sua técnica para abrir as cartas sem danificá-las, a equipe estudou 250 mil cartas históricas que resultaram na “primeira sistematização de técnicas de letterlocking”. Os cientistas e pesquisadores encontraram 12 formatos de cartas trancadas - o mais complexo tendo um formato geral definido por 12 bordas - assim como 64 categorias envolvendo manipulações como pregas, fendas e dobras. A equipe deu a cada carta trancada uma pontuação de segurança.
Smith, que leciona literatura inglesa moderna, disse que a arte era tão diversa que a forma de trancar a carta de uma pessoa poderia servir quase como uma assinatura. Uma carta, disse ele, “tornava-se um embaixador para você e tinha que incorporar algo seu”.
Sem a capacidade de abrir as cartas digitalmente, demorou uma década para os pesquisadores concluírem que Mary Stuart, rainha da Escócia, havia trancado a carta ao cunhado com um ponto espiral distinto. A abertura virtual da correspondência, disse a equipe, poderia ter documentado essa etapa “em questão de dias”.
E Amanda Ghassaei, uma das pesquisadoras do MIT, disse que a equipe estava prestes a concluir uma atualização do código-fonte que reduziria o tempo de abertura virtual das cartas de dias para horas.
Deborah Harkness, historiadora da ciência da Universidade do Sul da Califórnia, que não esteve envolvida na pesquisa, descreveu a técnica usando raios-X como “quase uma abordagem arqueológica” que visa minimizar o impacto do pesquisador na recuperação de artefatos.
A nova técnica apresenta “inovações significativas”, disse Howard Hotson, professor de história intelectual moderna na Universidade de Oxford, que também não participou da pesquisa. Por 500 anos, ele acrescentou, o letterlocking, uma tecnologia relativamente simples, impediu qualquer pessoa de analisar correspondências, a menos que um selo fosse danificado. “Foi necessária uma tecnologia digital muito sofisticada”, disse ele, “para superar este sofisticado sistema de segurança”. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA
The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.