De entrada, um prato de lagostas azuis da Bretanha preparado pela chef Anne-Sophie Pic. De prato principal, Chapon de Bresse au parfum de maïs, gratin de cèpes. Depois, queijos refinados, aliás, refinadíssimos, e macaron recheado de creme perfumado à pétala de rosas acompanhado de framboesas e lichias para a sobremesa. Assim o presidente da França, Emmanuel Macron, recepcionou o rei Charles III em um jantar. Sem direito à ironia: com o menu digno de um rei.
A recepção aconteceu na Galeria dos Espelhos do Palácio de Versalhes no último dia 20. Além do rei e do presidente francês, estavam a rainha Camilla, a primeira-dama da França, Brigitte Macron, e uma centena de convidados. De Mick Jagger, líder dos Rolling Stones, ao ator Hugh Grant, do ex-treinador francês Arsène Wenger ao ex-jogador Didier Drogba, os presentes se sentaram ao redor de uma mesa de 62 metros em uma noite carregada de simbolismos para a França e o Reino Unido pós-Brexit.
A começar pela entrada. A lagosta foi inspirada em um dos pratos prediletos do rei Luís XIV, que reinou a França entre 1643 e 1715 e construiu a Galeria dos Espelhos, onde o jantar foi servido.
A chef responsável pelo prato é Anne-Sophie Pic, única chefe francesa com três estrelas num dos principais guias de restaurantes do país, o Guia Michelin, publicado pela primeira vez no ano de 1900.
O principal ficou a cargo do chef Yannick Alléno, que comanda os restaurantes Pavillon Ledoyen e L’Abysse, localizados nos jardins do lado leste da Champs-Élysées, e o Le 1947, em Courchevel, nos Alpes franceses.
O prato é feito com um frango criado durante sete meses ao ar livre, que se alimenta de cereais produzidos na região de Bresse, sem trigo, milho ou antibióticos, e de alimentos encontrados naturalmente nos campos. Tão específicos que somente 30 criadores são autorizados a criar os galináceos em toda a França.
E então, os vinhos da noite: champanhe Pol Roger cuvée Winston Churchill 2013, vinho branco do Domaine Olivier Bâtard Montrachet grand cru 2018 e Château Mouton Rothschild 2004.
O último possui o rótulo decorado com uma pintura em aquarela que retrata uma paisagem francesa. Abaixo, há uma inscrição e uma assinatura do pintor: “Charles, 2004″. Sim, estamos falando do próprio rei Charles III, então Príncipe de Gales.
O rótulo foi criado em comemoração ao centenário da Entente Cordiale, um tratado assinado em 1904 que normalizou as relações entre a França e o Reino Unido e pôs fim a quase mil anos de conflito entre as duas nações. A história considera como um dos principais responsáveis pelo tratado o rei Edward VII, ancestral direto de Charles.
O rei fez questão de citar o tratado no dia seguinte em um discurso em francês no Palácio de Versalhes, o primeiro de um monarca britânico perante o Parlamento da França, para propor algo semelhante no enfrentamento às mudanças climáticas. “Gostaria de propor que se tornasse também uma Entente para a sustentabilidade, para enfrentar de forma mais eficaz a emergência global em matéria de clima e biodiversidade”, declarou.
O discurso exprimiu os propósitos políticos da visita de Charles. Para além da cordialidade e da pompa, o rei esteve na França na intenção de estreitar os laços entre as duas nações, mais distantes após o Brexit, em 2016. Nesse período houve disputas na pesca do Canal da Mancha e discussões sobre Irlanda do Norte, vistos para residentes e acolhimento de refugiados.
Em 2021, Macron chamou o então premiê britânico Boris Johnson de palhaço de circo. Segundo o historiador e professor da Queen’s College, Andrew Thompson, a visita contribui para reverter esse histórico, sendo o rei e a monarquia britânica partes importante da influência britânica. “Mas a capacidade que o rei tem de tomar iniciativas diplomáticas independentes é estritamente limitada”, ressalvou.
A julgar pelo jantar, a visita foi bem-sucedida. Charles brindou e discursou ao lado de Macron antes dos pratos serem servidos, agradecendo a hospitalidade e relembrando o quanto a sua mãe, a rainha Elizabeth II, gostava da França. “Sua generosidade de espírito traz à memória como minha família e eu ficamos comovidos com as homenagens prestadas na França a minha mãe”, disse o monarca. “Você (Macron) disse que ela tocou seus corações. Foi ela que manteve a França com o maior carinho”, acrescentou e concluiu citando La Vie En Rose, de Édith Piaf, como uma de suas canções prediletas.
Depois do discurso, das lagostas azuis e do Chapon de Bresse, vieram os queijos. Queijos Comté, da França, que levam 30 meses de maturação para estarem prontos, e o queijo azul inglês Stichelton, também feito sem pasteurizar. Por fim, Isfahan Persian, o macaroon servido na sobremesa, criado pelo chef Pierre Hermé.
Segundo a imprensa francesa, a mesa de 62 metros tornara impossível os convidados conversarem entre si, exceto com vizinhos à esquerda e à direita. A atenção estava voltada para os pratos servidos, seus detalhes, sua preparação.
O mais atentos devem ter reparado uma ausência. O foie gras, o fígado de ganso ou pato que é considerado uma das maiores iguarias francesas, não estava no menu.
Aqui cabe uma nota: se o glamour dos pratos e do Palácio de Versalhes não bastam para demonstrar a suntuosidade que a França ofereceu a Charles, a ausência do foie gras é um pormenor que ilumina a dedicação de Paris. Charles III é contrário ao prato devido à engorda forçada que os animais são submetidos para prepará-lo e o proibiu nas residências oficiais da realeza britânica. “O Estado francês faz muito bem a pompa e as circunstâncias (aos chefes de Estado). O tratamento dado a Charles é típico de um chefe de Estado visitante, embora talvez tenha sido em uma escala maior”, declarou Thompson.
Nos dias seguintes ao jantar, Charles seguiu com a rainha Camilla por outras cidades da França antes de retornar à Inglaterra. Nos jornais franceses, a recepção oficial ao rei foi vista como boa-vontade às relações bilaterais. “Estreitar os laços, afrouxados pelo Brexit, é um imperativo absoluto”, escreveu o Le Monte no editorial de 22 de junho. O jornal ressaltou que o Brexit funcionou como uma bomba de fragmentação entre o Reino Unido e as nações da Europa, “provocando tanto uma ruptura institucional histórica quanto um sentimento de estranhamento, desdém até”. Pelo menu servido no dia 20, o esforço é para que isso esteja prestes a mudar.
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