‘O Brasil está em cima da muro, mas com um pezinho do lado da Rússia’, diz Roberto Abdenur

Ex-embaixador do Brasil nos EUA e na China critica neutralidade do Itamaraty na guerra da Ucrânia e vê com ceticismo proposta de paz sugerida por Lula

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Foto do author Carolina Marins
Entrevista comRoberto AbdenurDiplomata e ex-embaixador do Brasil nos EUA e na China

A pressão para que o Brasil tome posição na guerra da Ucrânia cresceu nos últimos dias, conforme o conflito entra em seu segundo ano e o Ocidente se prepara para enviar mais ajuda militar a Kiev. Desde o princípio, o País optou por uma estratégia de neutralidade que, segundo Roberto Abdenur, ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos e na China, faz parecer que o Brasil é conivente com a Rússia.

Na última quinta-feira, 23, o País votou pela aprovação de uma resolução na Assembleia Geral da ONU que pede pela paz na Ucrânia. O “sim” brasileiro chamou atenção porque foram raros os momentos neste um ano em que o País não se absteve - como tem feito outros grande parceiros da Rússia, como China e Índia. Pelo contrário, em artigo ao Estadão, o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, celebrou que o Itamaraty teve participação na elaboração da proposta.

Também no dia do aniversário da guerra, o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, criticou países que não tomam posição e alertou que vai buscar o posicionamento de nações da América Latina e da África - ambas com grande proximidade da Rússia e da China. O Brasil, no entanto, optou por participar propondo a criação de um grupo mediador para a paz, uma proposta vista com ceticismo pelo Ocidente e elogiada pelos russos.

As Nações Unidas votaram esmagadoramente na quinta-feira para exigir que a Rússia 'imediatamente' e 'incondicionalmente' retire suas tropas da Ucrânia, marcando o aniversário de um ano da guerra com um apelo por uma paz 'justa e duradoura' Foto: TIMOTHY A. CLARY / AFP

Porém, no dia seguinte, durante reunião do Conselho de Segurança - onde as decisões não tem poderes meramente simbólicos como na assembleia e a Rússia tem o poder de vetar condenações - a delegação brasileira não se levantou quando o chanceler ucraniano, Dmitro Kuleba, pediu homenagens às vítimas da agressão russa. Na prática, atitudes como essa apontam ambiguidade do Brasil, aponta Abdenur. Abaixo, trechos da entrevista do Estadão com o ex-embaixador:

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O Brasil votou recentemente na Assembleia Geral da ONU pela resolução que pede o fim da guerra na Ucrânia, em um texto que o chanceler brasileiro até cita ter havido participação do Itamaraty na construção. O fato chama atenção porque o Brasil tem optado por se abster nas resoluções mais condenatórias à Rússia, como o senhor interpreta esse voto?

O Brasil sim apoiou essa resolução, mas eu tenho a impressão de que apoiou meio a contra gosto e sob forte pressão dos Estados Unidos e dos países europeus. Nós estamos comprometidos com a resolução ‘pero no mucho’. Tanto é assim que nosso embaixador na ONU declarou há poucos dias que a consecução da paz deve deve ser feita sem condições prévias. Em outras palavras, isso dá a entender que o Brasil não considera indispensável uma retirada completa das tropas russas da Ucrânia.

Eu analisei a resolução da assembleia e é interessante notar que não são usadas palavras duras como ‘invasão’ ou ‘condenação’. Vejo que são usadas expressões duras apenas na parte referente à situação humanitária, em que há o termo ‘agressão da Federação russa’.

O Brasil justifica a sua neutralidade no conflito dizendo que pretende participar das mediações de paz junto com outros países não envolvidos. O quanto é realístico o Brasil mediar as negociações de paz na Ucrânia?

A movimentação lançada pelo Lula para a criação de um grupo de países não envolvidos no conflito é uma intenção nobre, mas eu acho que é pouco realista. Em primeiro lugar, ele fala em China e Índia. A China assinou recentemente uma declaração sem precedentes na diplomacia enfatizando uma parceria “sem limites” com a Rússia, e o chanceler chinês esteve recentemente em Moscou reafirmando esse compromisso depois de passar por dois ou três países da Europa Ocidental.

A China tenta se mostrar em cima do muro, mas ela está em cima do muro com duas pernas do lado da Rússia. E o Brasil está em cima do muro com um pezinho do lado da Rússia, porque ao desenfatizar a importância da retirada das tropas, de certo modo adota uma posição de congelamento da situação no terreno que é favorável à Rússia. Tanto que porta-vozes da chancelaria russa tem enaltecido a postura do Brasil.

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E também há a Índia que tem uma relação muito antiga, dos tempos da União Soviética, com a Rússia. Ela foi e ainda é uma freguesa importante dos armamentos russos, embora agora ela esteja diversificando a sua posição. A China e a Índia têm uma postura de certo modo simpática, de passar a mão na cabeça da Rússia. Diferentemente do compromisso assumido por escrito pelo Brasil ao endossar a resolução da Assembleia Geral. A postura brasileira diante desse vai e vem é ambígua, e aliás observo a minha indignação com o fato de que na reunião do Conselho de Segurança, quando o representante da Ucrânia solicitou um minuto de silêncio em memória das vítimas do conflito, a delegação brasileira não se levantou.

O chanceler brasileiro escreveu recentemente ao Estadão um artigo em que diz que ‘é hora de ouvir quem quer a paz’, mas o senhor acredita que há clima para uma proposta de paz neste momento?

Eu sou meio cético quanto a possibilidade de que o movimento do Lula venha a ter êxito, porque o Putin não vai querer em hipótese alguma abrir mão dos territórios que conquistou e, ao contrário, vai continuar a guerra com o objetivo de aumentar a ocupação de territórios ou até, em última análise, extinguir a Ucrânia como um país independente.

A Ucrânia por sua parte não pode deixar de lutar porque ela não pode aceitar a amputação de seu território, e a resolução da ONU deixa claro o apoio de parte significativa da comunidade internacional à preservação da integridade territorial da Ucrânia de acordo com os com os seus limites reconhecidos internacionalmente, ou seja, com a situação anterior a 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e a comunidade internacional teve uma reação pífia.

Nós temos uma postura histórica de favorecer a paz. Mas, diante de uma situação tão grave quanto a da Ucrânia, você falar genericamente em paz é uma platitude, é o óbvio, e não significa efetivamente que isso vai acontecer.

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Eu só vejo uma solução de paz a curto prazo se houver um desfecho trágico da situação no terreno, seja uma derrota total da Ucrânia com a conquista de Kiev pela Rússia, seja o sucesso de uma contra-ofensiva da Ucrânia que lhe permita reconquistar todos ou pelo menos partes substanciais dos territórios ocupados pela Rússia. Eu não vejo isso acontecendo. Acho que o cenário militar, de acordo com analistas, é um cenário de impasse, de guerra prolongada. Eu não creio numa perspectiva de paz a curto e médio prazo, eu creio que essa guerra vai continuar a ter efeitos deletérios sobre a paz, a segurança, a economia internacional, a segurança energética, alimentar, tudo isso.

Quanto aos esforços pela paz, lembro que o Secretário-geral da ONU, António Guterres, já aventou a hipótese de um acerto pelo qual a Ucrânia se declararia “neutra”, ou seja, não entraria na Otan, embora pudesse continuar a ter suas forças armadas. A região do Donbas, onde maioria é ou era de língua russa, teria ampla autonomia. E haveria algo como um grande entendimento entre o Ocidente e a Rússia, para apaziguar os temores que Putin explora para justificar a guerra. Essa seria uma boa solução, mas infelizmente não prosperou. Pode, contudo, ser um caminho, talvez usado pelo Brasil, se houver um desfecho da guerra com uma situação de esgotamento, exaustão dos esforços bélicos em caso de um impasse militar prolongado.