O anúncio, no mês passado, do presidente da Rússia, Vladimir Putin, de que seu país suspenderia a participação no último pacto remanescente com os Estados Unidos de controle de armas nucleares disparou alarmes adormecidos havia muito. As forças atômicas americanas entraram em alerta vermelho, as pessoas se apressaram para reabastecer seus abrigos antincucleares, papel higiênico e leite em pó desapareceram das prateleiras dos supermercados… pelo menos nos sonhos de Putin, dada sua fantasia de restabelecer a Rússia aos tempos jovens e inexperientes da arriscada diplomacia da Guerra Fria.
Mas o pronunciamento de Putin acabou amplamente interpretado pelo que realmente foi: intimidação para convencer seus cidadãos assustados de que a guerra na Ucrânia se trata realmente de um conflito de vida ou morte entre superpotências. A maioria dos americanos pareceu mal ter notado o anúncio; muitos provavelmente tinham apenas uma vaga lembrança do que travava o pacto Novo START, conhecido mais formalmente como Novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas. Alguns podem ter se surpreendido ao saber que ainda havia algum acordo entre EUA e Rússia em vigor.
Por mais gratificante que possa ser negar a Putin o prazer de desprender pânico pelo Ocidente, a manobra dele foi um lembrete direto de que a ameaça da guerra nuclear ainda é presente, com potencial de metástase, e não deve ser desconsiderada levianamente.
Mais de 30 anos depois do fim da Guerra Fria, a ameaça de aniquilação nuclear simplesmente não figura entre os maiores medos dos americanos. Por um período após o 11 de Setembro, o terrorismo global dominou o imaginário dos americanos enquanto ameaça mais premente.
De acordo com uma pesquisa de 2022 do Pew Research Center, ciberataques são hoje considerados a maior ameaça global nos EUA, seguidos por informações falsas, China, Rússia, a economia global, doenças infecciosas e as mudanças climáticas. Meu neto, aluno de faculdade, disse-me que seus colegas não consideram guerra nuclear global um perigo real atualmente.
Mas mesmo os arsenais nucleares acentuadamente reduzidos dos russos e dos americanos ainda são capazes de aniquilar grande parte do mundo, a China está pressionando com força para se tornar a terceira potência nuclear do planeta, e pelo menos outros seis países, incluindo a uberditadura da Coreia do Norte, têm armas nucleares (os outros são: Reino Unido, França, Israel, Índia e Paquistão).
De maneira perversa, a complexidade do mundo atual gerou até um fenômeno similar à nostalgia — de um tempo em que havia apenas duas grandes potências para se lidar e em que a estabilidade se fiava na destruição mútua garantida. Mas é difícil ter saudade de um tempo em que o ex-presidente John Kennedy instava todos os cidadãos a preparar abrigos nucleares (“A hora de começar é agora”) e pesadelos nucleares eram temas de filmes populares, como A hora final, Limite de segurança e Dr. Fantástico.
É verdade que, quando a União Soviética ruiu, havia temores de uma terrível “segunda era nuclear”, de proliferação descontrolada e terrorismo atômico, se seguiria. De fato, desde o fim da Guerra Fria, apenas a Coreia do Norte obteve a bomba, e seu programa nuclear começou muito antes do fim da União Soviética. No oposto positivo, a África do Sul abandonou seu programa nuclear, em 1989, e três novos países que haviam herdado parte das armas atômicas soviéticas — Ucrânia, Belarus e Casaquistão — as devolveram (agora talvez para seu arrependimento).
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Os americanos terem ou não justificativa para deixar de se preocupar tanto com a bomba é outra questão. Jon Wolfsthal, conselheiro-sênior do grupo Global Zero, que defende a abolição das armas nucleares, e pesquisador do Centro para uma Nova Segurança Americana, acha que não. “Grande parte disso é algo subjetivo”, afirmou ele. “Nos anos 60 e 70, nós acreditávamos que os russos atacariam se baixássemos a guarda; e eles tinham certeza que nós atacaríamos.” Conforme o medo arrefeceu, afirmou ele, a consciência sobre a ameaça sempre presente também diminuiu. “Antes, os senadores tinham de conhecer a língua dos quilotons” — as cargas dos mísseis nucleares. “Hoje, nem cinco senadores entendem do assunto.”
Mas controles de armas nucleares são tão necessários hoje quanto sempre foram — e não apenas com Moscou. Putin reconheceu obliquamente isso quando, após afirmar em 21 de fevereiro que a Rússia suspenderia sua participação no Novo START, o governo russo acrescentou prontamente que o país continuaria a respeitar os limites do tratado sobre ogivas nucleares e sistemas de entrega. A alternativa, sabia ele, poderia ser uma nova corrida armamentista na qual a Rússia não é páreo para as capacidades econômicas e tecnológicas dos EUA. Com efeito, o anúncio de Putin estendeu uma suspensão em inspeções presenciais iniciada durante a pandemia de covid-19.
Isso é sério. Mas pelo menos o princípio de limitar ogivas nucleares estratégicas (para 1.550 cada país) e mísseis, submarinos e aviões bombardeiros capazes de lançá-las sobrevive.
Mesmo que o Relógio do Apocalipse não mova seus ponteiros mais para a meia-noite, o tempo ainda está acabando. O Novo START expira daqui a três anos. É difícil imaginar negociações de um novo tratado enquanto a guerra na Ucrânia continuar. Ao mesmo tempo, a China avança em uma aparente tentativa de equiparar seus arsenais aos dos americanos e russos até 2035. Por enquanto, Pequim tem rejeitado qualquer esforço para negociar limites com os EUA, mas os chineses se juntaram a americanos, russos, franceses e britânicos, em janeiro de 2022, na declaração de que “a guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada”. Mesmo se Rússia e China puderem ser trazidas para a mesa de negociação, as partes precisarão de uma nova maneira para definir quantas bombas cada país precisa para dissuadir os outros dois.
No meio-tempo, o crescente arsenal da China pode estimular a Índia a aumentar o seu, o que poderia motivar o Paquistão a fazer o mesmo. Em outros fronts, o Irã, diz-se, avança constantemente com seu programa atômico desde a mal aconselhada retirada do ex-presidente Donald Trump do acordo nuclear com Teerã. E não existe contato com a Coreia do Norte, que no passado demonstrou disposição para negociar limites sobre seu programa nuclear.
Com a guerra na Ucrânia emanando uma cortina de fumaça sobre as relações de Washington com Rússia, China, Índia e grande parte do sul global, controles de armas podem parecer perda de tempo. Mas a era de controle de armas começou quando as relações entre Washington e Moscou se deterioraram perigosamente durante a Crise dos Mísseis em Cuba. E a demonstração de força de Putin com seus mísseis pode ser sinal de que a guerra na Ucrânia nos levou novamente a esse ponto. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
*É MEMBRO DO CONSELHO EDITORIAL
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