O jornalista Carlos Fernando Chamorro, de 66 anos, pertence a uma família com longa tradição no jornalismo e na política da Nicarágua. Filho da ex-presidente do país Violeta Chamorro (1990-1997), hoje com 92 anos, e de Pedro Joaquín Chamorro, ex-publisher do jornal La Prensa, assassinado em 1978, durante a ditadura de Anastasio Somoza, ele cresceu acompanhando de perto o cenário turbulento que marcou boa parte da história da Nicarágua.
Fundador e editor do site Confidencial (confidencial.com.ni), que hoje comanda do exílio, em San José, na Costa Rica, onde vive desde junho de 2021, Carlos Chamorro foi também produtor de TV no Telenica Canal 8 na Nicarágua, até a emissora ser comprada por Juan Carlos Ortega Murillo, um dos nove filhos do ditador do país, Daniel Ortega, e de sua mulher, a vice-presidente e porta-voz do governo, Rosario Murillo.
Nesta entrevista exclusiva ao Estadão, concedida por telefone para a série do jornal sobre o avanço da esquerda na América Latina, Chamorro fala sobre o caráter autoritário do regime de Ortega, que está em seu quarto mandato consecutivo como presidente, e sobre a dura repressão desencadeada por ele contra seus opositores, incluindo ex-companheiros do movimento sandinista, a imprensa e a Igreja. Chamorro comenta também, em um complemento à entrevista enviado por WhatsApp, o confisco da sede e das máquinas e equipamentos do La Prensa, anunciado na quarta-feira, 24.
“Isto é um roubo descarado, um ato de delinquência. Mas eles não vão conseguir calar o La Prensa”, afirma. “O Daniel Ortega tem DNA stalinista. Ele nunca teve compromisso nem com a democracia nem com os direitos humanos. Quer imitar o tipo de liderança que em certo momento o Fidel Castro representou em Cuba.”
Como o sr. vê o confisco da sede do “La Prensa”, anunciado na quarta-feira, 24, pelo governo de Daniel Ortega?
Na Nicarágua, o confisco de bens é proibido pela Constituição, que garante o direito de propriedade. O regime, no entanto, já havia confiscado o Confidencial, que é o veículo que hoje eu dirijo do exílio, o 100% Notícias, cujo proprietário está preso, e agora confiscou o La Prensa, que tem três diretores presos e estava ocupado pela polícia desde agosto do ano passado. Incluindo máquinas e equipamentos industriais retirados pelo governo, é um patrimônio de cerca de US$ 10 milhões. Isto é um roubo descarado, um ato de delinquência. Mas eles não vão conseguir calar o La Prensa. O Daniel Ortega pode confiscar os meios de comunicação, mas não pode confiscar o jornalismo independente, que continuará a informar do exterior a população, através das plataformas digitais, e a fiscalizar o poder.
Por que o sr. resolveu deixar a Nicarágua e se exilar na Costa Rica? Há quanto tempo está no exílio?
Estou no exílio na Costa Rica, porque se estivesse na Nicarágua estaria preso. Há uma ordem de captura contra mim pelos supostos delitos de “lavagem de dinheiro” e “gestão abusiva”, que significam fazer jornalismo, investigar a corrupção e fazer as denúncias que temos feito no Confidencial. Nunca apresentaram um único indício, uma única prova ou uma acusação concreta contra mim. Vim para a Costa Rica uma primeira vez em 2019. Fiquei de janeiro a novembro e voltei à Nicarágua. Em junho de 2021, sai novamente do país e estou na Costa Rica até hoje.
O sr. tem algum contato com sua irmã Cristiana Chamorro, pré-candidata à Presidência nas eleições de novembro de 2021, que foi presa pelo regime, e com seu irmão Pedro Joaquín, que também foi detido?
É importante esclarecer que, na Nicarágua, os presos políticos estão isolados. Minha irmã Cristiana e meu irmão Pedro Joaquín foram condenados a oito e nove anos de prisão em simulacros de julgamentos. Ela está em prisão domiciliar há mais de um ano. Não têm direito a atender o telefone nem de falar com meios de comunicação. Só tem direito a receber visitas de seus filhos. Meu irmão Pedro ficou 309 dias na prisão de El Chipote, em Manágua, e depois foi transferido para prisão domiciliar. Tenho um primo-irmão, o Juan Sebastián Chamorro, que foi condenado a 13 anos e está em El Chipote. Outro primo-irmão meu, o diretor do La Prensa, Juan Lorenzo Holmann Chamorro, foi condenado a nove anos e também está na prisão, além muitos outros companheiros que são muito próximos de mim.
Só se pode definir o regime da Nicarágua como uma ditadura, um regime autoritário
Em que condições estão hoje os presos políticos na Nicarágua?
Hoje, na Nicarágua, há 190 presos políticos, dos quais sete candidatos presidenciais nas eleições de 2021, entre eles minha irmã Cristiana. Todos já foram condenados a penas que variam de 8 a 13 anos em julgamentos de fachada, geralmente feitos na própria prisão. Na maioria dos casos, os presos só ficaram sabendo que iriam a julgamento algumas horas antes, sem que seus advogados tivessem acesso aos processos. Entre os presos, há quatro mulheres – D. Maria Téllez, Tamara Dávila, Syen Barahona e Ana Margarita Vigil – que ficaram mais de 400 dias em confinamento solitário. Na prisão de El Chipote, onde estão quase todos, só são permitidas visitas a cada 45 dias. Muitos perderam 20 kg, 30 kg desde que foram presos e acumulam diferentes problemas de saúde, decorrentes de enfermidades crônicas que não são tratadas. Mas o pior, talvez, seja o efeito psíquico, porque o isolamento é uma forma de tortura. Agora, o Ortega nunca conseguiu mostrar uma única imagem de confissão de um preso político, de alguém que se tenha declarado culpado dos crimes que lhe são atribuídos e pedido perdão pelo que aconteceu. Todos declararam sua inocência. Todos disseram “estamos na prisão porque reivindicamos eleições livres, porque protestamos ou porque decidimos participar de um processo eleitoral”.
Qual a sua visão sobre o regime liderado por Daniel Ortega?
Atualmente, só se pode definir o regime da Nicarágua como uma ditadura, um regime autoritário. Durante mais de uma década, de 2007 a 2018, ele já havia implantado uma ditatura institucional, que fechou completamente o espaço político. Concentrou o poder, cometeu fraudes eleitorais e restringiu totalmente a democracia. Mas, naquela época, havia uma aliança do governo com o setor empresarial, com os grandes capitais da Nicarágua e de outros países da região. Isso outorgou alguma legitimidade a esse regime ditatorial e permitiu uma certa estabilidade econômica e, no melhor momento, a atração de investimentos. Essa aliança, que o governo chamava de “modelo de diálogo e consenso”, mas que na realidade era um regime corporativista autoritário, desmoronou com os protestos iniciados em 18 de abril de 2018, quando as pessoas saíram às ruas para se manifestar contra a reforma na Previdência Social e foram reprimidas com violência.
De que forma se configurou essa ditadura institucional a que o sr. se refere?
O pilar da ditadura institucional é o controle de todos os poderes do Estado. O Daniel Ortega não chegou ao governo em 2007 com maioria legislativa, mas a partir das eleições de 2011, de sua primeira reeleição consecutiva, adquiriu o controle total do Parlamento e já detinha antes o poder eleitoral. Adquiriu também o controle do Poder Judiciário e da Procuradoria, da polícia e do Exército. Em 2016, quando se deu a segunda reeleição consecutiva de Ortega e sua esposa Rosario Murillo, que se tornou porta-voz do governo, já apareceu na cédula como candidata a vice-presidente, ele já tinha um absoluto controle de todos os espaços do Estado. Aí, em 2018, os acontecimentos determinaram a evolução de uma ditadura institucional para uma ditadura sangrenta, que reprimiu e matou mais de 300 pessoas em protestos cívicos, crimes que estão impunes, e desencadeou uma repressão que levou à prisão mais de 1.200 pessoas, forçou o exílio de centenas de milhares e passou a perseguir a Igreja Católica. Neste momento, as vozes da Igreja estão em silêncio total.
Depois da farsa eleitoral, a ditadura de Ortega adquiriu um traço ainda mais totalitário
Que reflexo isso tudo teve nas eleições presidenciais de 2021?
Com a aproximação das eleições de 7 de novembro de 2021, essa ditadura terminou de fechar o espaço político que ainda existia ao anular a concorrência política, prendendo os sete pré-candidatos da oposição e colocando na ilegalidade os partidos políticos. Em setembro de 2021, impôs-se na Nicarágua um Estado policial. Não houve um decreto impondo o “Estado de emergência”. Simplesmente suspenderam de fato os direitos constitucionais. É isso o que diz a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Na Nicarágua, há um Estado de exceção de fato, onde há uma criminalização dos direitos constitucionais – a liberdade de reunião, a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão e o direito de associação. O Ortega já controlava o aparato eleitoral, já tinha controle de tudo e mesmo assim não permitiu que houvesse concorrência política e prendeu os sete pré-candidatos pela oposição. Digo pré-candidato porque eram apenas pessoas que estavam competindo para ser candidatos da oposição contra Ortega.
Nas eleições do ano passado, houve muitas acusações de fraude. O que o sr. pensa sobre esta questão?
Na eleição de 2021, embora os resultados tenham conferido a Daniel Ortega uma vitória com mais de 70% dos votos, houve uma altíssima abstenção. Nós fizemos uma pesquisa pós-eleitoral para checar isso. Contratamos uma empresa que fez uma pesquisa telefônica e os resultados indicaram que o nível de apoio obtido por ele nessa votação – e digo votação porque não foram eleições – foi menor do que 20%. Depois dessa farsa eleitoral, houve uma radicalização do regime. A ditadura adquiriu um traço ainda mais totalitário.
Como se deu essa radicalização do regime?
Não foi uma radicalização no sentido de promover grandes transformações sociais e políticas, mas simplesmente de fechar ainda mais o espaço político. Foram canceladas 1.400 organizações não-governamentais, entre elas fundações e associações médicas, de beneficência e de promoção dos direitos democráticos. Por que? Para que? Simplesmente para impor um modelo em que se pretende que o governo e o Estado sejam os únicos interlocutores da sociedade. Foi radicalizada a perseguição contra a imprensa independente. Além do confisco do La Prensa e de outros veículos de comunicação, hoje há mais de 120 jornalistas no exílio. Não apenas se criminalizou a liberdade de imprensa, mas também a liberdade de expressão. Eu não posso citar fontes da Nicarágua, não posso atribuir informações ou opiniões a nenhuma fonte, porque isto está criminalizado. Há pessoas que estão na prisão por ter dado uma entrevista ou emitido uma opinião.
A principal palavra de ordem nos protestos de 2018 era ‘o Ortega e o Somoza são a mesma coisa’
Ironicamente, o Daniel Ortega liderou um movimento guerrilheiro contra a ditadura da família Somoza (1935-1979) e décadas depois ele próprio se transformou num ditador igual ou até pior do que aqueles a quem combatia. Qual a sua avaliação deste paralelo histórico?
Quando a população foi às ruas em 2018, a principal palavra de ordem era “Ortega e Somoza são a mesma coisa”. No imaginário popular, a população não vê que o Daniel Ortega foi parte de uma luta contra outra ditadura. Simplesmente o vê como um ditador que está à frente de uma ditadura familiar que tem muitos elementos semelhantes com a ditadura familiar dos Somoza. Agora, por uma questão de precisão histórica, gostaria de esclarecer um ponto. Ao contrário do que muita gente costuma dizer, o Ortega não foi o líder da Revolução Sandinista que derrotou a ditadura de Somoza. Naquela época, o movimento sandinista tinha uma direção coletiva. Depois do trunfo da revolução, em 1979, houve uma junta de governo e só em 1985 ele foi eleito presidente e depois secretário-geral do partido da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Em 2007, quando o Ortega voltou ao poder, ele ganhou a eleição em primeiro turno, em razão de uma regra muito particular, que ele conseguiu aprovar na Assembleia Nacional, a partir de um pacto político firmado na época com líderes de outros partidos de direita e que lhe permitiu ganhar o pleito com apenas 35% dos votos, que foi o seu teto eleitoral.
Como se deu essa transformação do Ortega de líder revolucionário em ditador?
Isso não aconteceu de um dia para o outro. Foi um processo longo. A minha tese é de que o Daniel Ortega nunca foi um democrata. Nunca teve um compromisso nem com a democracia nem com os direitos humanos. Certamente ele foi um lutador contra uma ditadura, mas sob a perspectiva de uma esquerda autoritária, ortodoxa. No fim das contas, no DNA de Daniel Ortega há um stalinista. Ou, se você quiser ver de outra forma, ele pretende imitar ou copiar o tipo de liderança que em certo momento o Fidel Castro representou em Cuba, no sentido de uma liderança individualizada, personalista.
Agora, é estranho que, apesar de ser uma ditadura de esquerda, alinhada com Cuba e com a Venezuela, onde a influência do Estado na economia é colossal, o regime do Daniel Ortega reserva um papel relevante para a iniciativa privada na Nicarágua. Como o sr. explica isso?
É certo que o Ortega tem como aliados Cuba e Venezuela, além da Rússia, do Irã, da Coréia do Norte e agora da China. Ele apoiou, inclusive, a invasão do Vladimir Putin na Ucrânia. Mas não acredito que se possa descrever seu governo como um regime de esquerda.
O Ortega criou o seu próprio grupo de empresas, desviando fundos estatais da cooperação venezuelana
O que o leva a dizer que o regime de Ortega não é de esquerda?
O modelo autoritário que o Ortega implantou de 2007 a 2018 estava baseado, como falei há pouco, em um controle político e ditatorial do país. Mas ele estava baseado também em uma aliança com os grandes empresários. Os grandes empresários aceitaram essa aliança, porque ela oferecia um clima propício aos investimentos sem que eles tivessem de passar por nenhum trâmite que seria necessário no Estado de Direito. Decidiam-se com o governo as leis tributárias, as leis bancárias, e havia um Parlamento controlado por Ortega que aprovava tudo. Por outro lado, o Ortega criou o seu próprio grupo de empresas. Ele desviou os fundos estatais da cooperação venezuelana para criar empresas que, em teoria, são de economia mista ou quase públicas, mas que na prática funcionam como empresas privadas, controladas pela família Ortega-Murillo, a partir de um consórcio que se chama Albanisa.
Que tipo de negócios o Ortega criou com os fundos enviados pela Venezuela para a Nicarágua?
Posso compartilhar com você uma investigação sobre isso que publicamos no Confidencial. Fizemos muitos trabalhos sobre este tema. Os principais negócios estão nas áreas de energia, combustíveis, rede de postos de gasolina, meios de comunicação e também construção e desenvolvimento urbano. Nós publicamos recentemente uma investigação sobre os negócios da família Ortega-Murillo e no passado fizemos várias investigações sobre como os fundos da cooperação estatal venezuelana, que chegaram a um total de US$ 5 bilhões em dez anos, foram usados para negócios privados na Nicarágua. O esquema da cooperação venezuelana estava montado em condições muito favoráveis para a importação de petróleo. Ao mesmo tempo, o Ortega deu ao setor privado uma grande vantagem para exportar para a Venezuela. Em questão de três anos, a Venezuela se converteu no segundo destino em volume de exportações da Nicarágua, que até então era mínimo. Agora, com a queda do preço do petróleo em meados da década passada, acabou a cooperação com a Venezuela.
O sr. pode dar um exemplo concreto de um negócio em que a família Ortega está envolvida?
Posso lhe dar um exemplo por experiência própria. Como você sabe, eu sou um jornalista e dirijo o Confidencial, que é um site de internet, e também fui produtor de televisão. Eu trabalhava como produtor num canal de televisão privado. Eu comprava espaço neste canal, que chamava Telenica Canal 8. Em 2010, de um dia para outro, a família Ortega-Murillo comprou por US$ 9,7 milhões esse canal, com os fundos da cooperação venezuelana. Não para o Estado, não para fazer um canal público ou mesmo do partido. De um dia para o outro, o novo dono deste canal passou a ser Juan Carlos Ortega Murillo, filho de Daniel Ortega e Rosario Murillo. Utilizaram os fundos da Albanisa para fazer um negócio privado. Este é o modelo de Ortega, um modelo de corrupção política e empresarial.
O que está acontecendo hoje não é uma segunda etapa da Revolução Sandinista, como diz a propaganda oficial
De um jeito ou de outro, então, mesmo levando em conta que a família Ortega se beneficia dessas transações feitas com dinheiro público, pode-se dizer que há uma diferença entre o modelo econômico da Nicarágua e os modelos de Cuba e da Venezuela?
Sim, é certo que há. A economia nicaraguense não está entrando em colapso. Há uma deterioração na economia, uma migração massiva, porque as pessoas não encontram saídas e futuro no país, mas não há escassez, não há hiperinflação. Há certa estabilidade macroeconômica e o país funciona basicamente com as remessas familiares feitas do exterior, que têm um grande impacto no consumo. Por outro lado, ao contrário do que acontecia antes, quando o Ortega governava com os empresários, o governo impôs uma política extorsiva, de impostos e tarifas. Com isso, os empresários agora dizem que não estão lhes confiscando as empresas, mas estão confiscando a liquidez e o lucro. Hoje, entre os 190 presos políticos, há quatro empresários, dos quais dois ex-presidentes do Conselho Superior das Empresas Privadas (Cosep), que é o grande guarda-chuva de todas as associações empresarias da Nicarágua. Também está preso Luiz Rivas Anduray, o presidente do principal grupo financeiro do país, acusado de suposta conspiração, como todos os outros presos políticos. No momento, o setor privado na Nicarágua está basicamente tentando preservar a existência de suas empresas, mas já não tem um papel de colaboração com o governo e a ditadura.
Quando a gente compara a atitude do Ortega hoje em relação à economia com a que ele tinha na época da Revolução Sandinista, me parece que houve uma transformação significativa dele neste aspecto, não?
Sim. É preciso fazer uma distinção entre a década revolucionária dos anos 1980, quando se pretendeu fazer uma transformação na economia e na sociedade nicaraguenses. Em alguns momentos, até houve algumas conquistas importantes, mas, no fim, essas iniciativas acabaram fracassando, com a deflagração da guerra com os Estados Unidos e também com a radicalização e a confrontação do governo com a sociedade, a partir da implementação de políticas econômicas que pretendiam estatizar tudo e transformar o Estado no motor econômico da Nicarágua. Isso terminou em 1990. Quando o Ortega regressou ao poder em 2007, 17 anos depois, não ocorreu uma segunda etapa da revolução, como diz a propaganda oficial. O governo que começou em 2007 não tem nada a ver com a revolução dos anos 1980, exceto pelo monopólio dos símbolos. Hoje, inclusive, há vários líderes da Revolução Sandinista na prisão. O general aposentado Hugo Torres morreu na prisão. Ele foi um guerrilheiro que, em 1974, participou de uma operação para libertar da prisão o próprio Daniel Ortega e de uma outra grande operação, em 1978, junto com D. Maria Téllez, que hoje também está presa.
Como essa mudança se viabilizou politicamente?
Na Nicarágua, não governa um partido político. Governa um casal presidencial, o marido Daniel Ortega e sua esposa Rosario Murillo, sua vice-presidente. Os dois compartilham o poder, com a participação de uma rede familiar, de seus filhos. Esta rede familiar é a única em que Ortega e Murillo têm plena confiança para administrar seu governo. O Ortega continuou com o partido da Frente Sandinista, com ajuda dos símbolos da Revolução, mas o regime atual não tem qualquer conotação ideológica. É uma ditadura pura e simples, que tem outra característica importante, diferente de qualquer outro país da América Latina: é uma ditadura familiar, que tem uma semelhança com a antiga ditadura dinástica da família Somoza, que foi derrotada em 1979.
A esquerda democrática da América Latina tem de decidir se vai se alinhar com o Ortega ou se vai demandar o respeito aos direitos humanos na Nicarágua
Se o modelo da Nicarágua é tão diferente dos modelos de Cuba e da Venezuela do ponto de vista econômico, o que explica, em sua opinião, a aproximação do Ortega com os dois países?
Eu acredito que o que explica isso é o que eu chamaria de oportunismo político, por eles se identificarem em sua confrontação com os Estados Unidos, ainda que Ortega fosse aliado americano no período de 2007 a 2018 que eu descrevi. Para estes chamados movimentos de esquerda, o que há são simplesmente interesses. Na verdade, aí não há ideologia. Há uma coincidência, ao menos no âmbito do autoritarismo político, da demolição do Estado de Direito, da falta qualquer tipo de prestação de contas, de fiscalização do poder pelos cidadãos. Nisto, eles são similares. Também são similares no sentido de que mantêm as mesmas alianças com Putin e com a China, com o Irã, com a Bielorrússia e com Coréia do Norte. O que os diferencia é o modelo econômico.
Como o sr. encara a posição da esquerda latino-americana em relação à Nicarágua?
Estamos diante de uma realidade com a qual a esquerda democrática latino-americana tem que se confrontar. O que há na Nicarágua não é um movimento de esquerda nem um movimento revolucionário. É uma ditadura repressiva, que tem 190 presos políticos, que fecha meios de comunicação, que persegue a Igreja Católica. Quem vai dar uma resposta a esta situação não vai ser nem Cuba nem a Venezuela. A esquerda democrática da América Latina é que tem de responder a isso. Ela vai se alinhar com o Daniel Ortega ou vai demandar que na Nicarágua se respeitem os direitos humanos e haja uma mudança democrática? O (presidente) Gabriel Boric, do Chile, por exemplo, já se manifestou claramente contra o desrespeito aos direitos humanos na Nicarágua. Antes de ser eleito presidente, o (Gustavo) Petro, da Colômbia, também fez pronunciamentos muito claros de que não faz diferença se as ditaduras são de esquerda ou são de direita. A pergunta que se tem de fazer, se o (ex-presidente) Lula ganhar as eleições, é que posição ele vai adotar pelo Estado brasileiro. Há uma expectativa de que, na América Latina, surja uma esquerda democrática, que se distancie da ditadura autoritária que se autodenomina de esquerda.
Quando o Daniel Ortega foi “reeleito” no ano passado, o Lula o comparou à ex-chanceler da Alemanha Angela Merkel e ao ex-presidente da Espanha Felipe Gonzalez, dizendo que, assim como eles puderam ficar um longo período no poder, o Daniel Ortega também podia. O que sr. pensa do comentário dele?
Parece que, em outro momento, o Lula havia feito um comentário criticando a reeleição do Ortega. Mas, no fim, ele acabou justificando a reeleição, que não se passou de uma forma democrática. Nós podemos até discutir os regimes parlamentares europeus, a presidência de Felipe Gonzalez e chancelaria de Angela Merkel. Agora, a permanência de Ortega no poder está associada primeiro a fraudes eleitorais e segundo, a um sistema não democrático, em que a concorrência política foi eliminada. Eu acredito que, na Nicarágua, as pessoas estão atentas se o Lula, hoje como líder da oposição e amanhã se chegar a ser presidente do Brasil, vai ter um compromisso com os direitos humanos do povo da Nicarágua e com a democracia e não com Daniel Ortega com quem teve uma relação política nos anos 1980, porque este Daniel Ortega hoje é um ditador. Vamos ver o que ele vai fazer. Ele tem de enfrentar a realidade.
O que que está sendo feito para alterar a situação da Nicarágua?
A crise que hoje vive a Nicarágua sob o Estado policial não tem saída a curto prazo, ainda que a maioria da população rejeite o regime, porque não pode se expressar, se manifestar. Há uma ditadura total. Agora, eu não acredito que esta ditadura seja sustentável. Há saídas para a Nicarágua. Há uma esperança democrática. Mas isso só será possível se houver um apoio internacional para recuperar as liberdades no país. A política de alguns governos de impor sanções ao Ortega e aos altos funcionários do governo não é suficiente, se a pressão internacional não levar à restituição das liberdades. A pressão internacional deveria se concentrar em apoiar o restabelecimento das liberdades na Nicarágua, para que o povo nicaraguense decida seu futuro em eleições livres, depois de uma reforma eleitoral. O Ortega pode sobreviver às sanções. O que não pode é sobreviver à restituição das liberdades – a liberdade de reunião, de imprensa, eleitoral, de mobilização.
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