O delírio da soberba dos ditadores; leia a coluna de Mario Vargas Llosa

Livro de Carlos Granés resume a história cultural latino-americana que, segundo ele, tem como norma desde os tempos pós-coloniais lutar contra os EUA, desde o arielismo direitista de José Enrique Rodó até as guerrilhas contemporâneas

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colunista convidado
Foto do author Mario Vargas Llosa
Atualização:

É extraordinário o livro que Carlos Granés escreveu nesses anos de coronavírus e pandemia, enquanto Vladimir Putin se preparava para invadir a Ucrânia e matar ucranianos: Delirio americano – Una historia cultural y política de América Latina–, (Editora Taurus, ainda sem edição no Brasil), é uma obra imensa, de quase 600 páginas, que começa com a morte de José Martí, recém-chegado a Cuba para lutar por sua independência, e termina em 2016, com o falecimento de Fidel Castro.

Entre as duas datas, segundo Carlos Granés, resume-se uma história cultural latino-americana (na qual, por fim, está incluído o Brasil), que, segundo ele, tem como norma desde os tempos pós-coloniais lutar contra os EUA, desde o arielismo direitista de José Enrique Rodó até as guerrilhas contemporâneas, que explodiram em diversas partes da América Latina e duram, por exemplo, na Colômbia, até os nossos dias.

O então presidente da Venezuela Hugo Chávez (esquerda) visita o líder cubano Fidel Castro em hospital em Havana, em 2006  Foto: Estudios Revolucion-Granma / Reuters

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Não estou muito de acordo com esta tese, mas para refutá-la cabalmente é necessário passar uns dez anos repetindo a façanha de Granés e lendo a imensa quantidade de livros que ele revisou neste tempo, de modo que me atrevo apenas a dizer que a maioria dos bons escritores latino-americanos não escreveu seus melhores livros com esta intenção (entre eles, por exemplo, Borges, Octavio Paz, Vallejo, García Márquez, Neruda, Rulfo, César Vallejo, Onetti) ainda que alguns deles se acomodaram na vida cotidiana a defender a tese militante.

Mas repito, para refutar esta ideia que preside este notável volume é necessário pelo menos trabalhar tanto quanto ele trabalhou neste livro, que, creio, é o mais importante já escrito resumindo a história e a cultura latino-americana, do princípio ao fim. Porque, ainda que o livro se concentre no século 20, há nele extensos parágrafos sobre a história pré-hispânica e até mesmo de pós-guerrilhas da época atual, que mostram domínio e conhecimento da grande cultura da América Latina – o “delírio da soberba”, segundo Granés, extraordinários e exemplares.

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Um aspecto verdadeiramente desconhecido até agora das grandes sínteses feitas a respeito da cultura e da história da América Latina foi o da experimentação vanguardista, à qual o livro de Granés dedica muitas páginas. E demonstra, de maneira categórica, que escritores como o chileno Vicente Huidobro e o argentino Leopoldo Lugones estiveram, respectivamente, à frente de movimentos internacionais de grande envergadura que seus respectivos países transbordaram e criaram tendências internacionais de grande valor e originalidade, que contaminaram as novas gerações e fizeram surgir, entre os discípulos daqueles pioneiros, alguns poetas e narradores em prosa que convém reler por sua riqueza e originalidade, que passaram quase despercebidos em sua época.

Fidel Castro (esquerda) e Che Guevara (centro) caminham em manifestação em Havana em 5 de maio de 1960  Foto: Reprodução

Panorama da vida cultural latino-americana

Delírio Americano é muito bem escrito e não há na obra livros que não tenham sido lidos e avaliados por seu autor. Isto é algo que merece ser sublinhado, pois o distingue entre a enorme quantidade de ensaios supostamente informados escritos sobre a história e a vida cultural da América Latina, que, em geral, excluíam o Brasil e passavam muito superficialmente por um exame rigoroso e preciso, como o que nos dá este livro, sobre o que ocorria nos distintos países do continente, tanto nas artes plásticas pictóricas quanto na vida política e literária, de modo que a obra revela um panorama muito preciso e de certo modo exultante, por sua variedade e riqueza, da vida cultural latino-americana, muito mais importante do que se acreditava até agora.

O livro também é isso: uma revalorização dos esforços riquíssimos e múltiplos da literatura e da arte da América Latina nos anos que, acreditava-se até agora, a cultura latino-americana figurava como uma mera extensão do que se fazia nos EUA e na Europa Ocidental.

O ensaio de Granés possui, entre outras virtudes, a de mostrar que no século 20 tanto a literatura quanto a arte da América Latina revelam, para quem quiser ver, uma originalidade notável, às vezes em consonância com o que acontecia em outras partes do mundo e, às vezes, como durante a época modernista, de maneira autônoma, incluindo no domínio da experimentação e na vida política.

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Um exemplo, entre as mil novidades que contém este ensaio: a influência do nazismo e do hitlerismo na América Latina. Surpreenderam-me, por exemplo, as páginas que o ensaio dedica a este tema. Eu ignorava por completo que o reino dos Somozas na Nicarágua inaugura um movimento cultural especificamente nazista, do qual é membro o primeiro nesta estirpe sinistra, que se propunha a nada menos que expandir pelo continente o racismo e os métodos violentos que já aplicava na Alemanha o movimento hitlerista.

Influência do fascismo italiano

Também me surpreendeu – e me convenceu de sua amplitude, ademais – a influência do fascismo italiano e do nazismo alemão no Brasil e na Argentina, uma influência que Granés pareia, com argumentos sólidos, ao movimento peronista e ao futurismo brasileiro, que, além disso, tem duas caras, uma negativa no campo político e uma positiva no literário e artístico, que produz uma infinidade de artistas e escritores de alto nível.

Há algumas páginas neste livro que são difíceis de ler sem gargalhar: as que tratam dos ditadores, por exemplo. Que repulsiva coleção de personagens se contorce nestes capítulos, desde a desafortunada América Central até o Rio da Prata e as ilhas do Caribe.

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Talvez, neste campo, seja difícil não apreciar o livro de Granés nas páginas que descrevem o que significou a Revolução Cubana enquanto eclosão do que acreditávamos ser uma nova forma de liberdade no continente sob a direção de Fidel Castro e Che Guevara, e o empobrecimento destas ideias à medida que passavam os anos e Cuba ia se convertendo, cada dia mais, em uma ditadura vulgar, como é a de hoje, contra a qual protestam os artistas, convertidos na vanguarda de uma nova liberdade para essa ilhota que certa vez assombrou e iludiu o mundo inteiro, antes de se converter em uma típica ditadura caribenha.

PERSONAGENS. Granés não se descuidou de nenhum aspecto da vida cultural neste livro admirável. As artes plásticas ocupam muitas páginas dele, certamente, mas também a música e os atos delirantes da guerrilha cultural, sobretudo no México e no Brasil, páginas nas quais Granés faz uma demonstração de erudição informativa que, eu gostaria de sublinhar, é notável e, ao mesmo tempo, trágica e divertida.

Essa mistura é talvez uma das maiores originalidades de seu ensaio: quando ele parece naufragar como um mero catálogo, surgem de imediato personagens característicos, como o equatoriano Velasco Ibarra, que se jactava de ter dominado seu povo toda vez que lhe deram palanque, ou os famosos “indigenistas”, aos quais Granés dedica mais páginas que eles merecem, ao meu ver, sobretudo no que tange um dos piores romances escritos naquela tendência.

Refiro-me a Huasipungo, de Jorge Icaza. Há, creio, uma sobrevalorização deste romance em seu livro, um dos pouquíssimos exageros que, me parece, figuram neste ensaio excepcional. Creio que entre os livros publicados nestes anos, o ensaio de Granés permanecerá entre os mais valiosos, em um campo em que, apesar de escritores como Henríquez Ureña ou Alfonso Reyes, a América Latina não tem sido tão pródiga. l TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL.

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