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O desespero calado dos palestinos na vagarosa retirada da Cidade de Gaza; leia a análise

As pessoas caminhavam com dificuldade, carregando sacolas com tudo que conseguiram levar de suas casas e a cada 15 metros, aproximadamente, alguém tinha nas mãos uma bandeira branca

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Por David Ignatius

CIDADE DE GAZA — A fila de civis estendeu-se por centenas de metros ao longo da rodovia Salah al-Din no domingo, conforme palestinos deixaram para trás, desesperados, violência e destruição a caminho do sul da Faixa de Gaza, onde esperam encontrar segurança.

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O silêncio era absoluto conforme a fila andava e parava. O único som vinha de disparos ocasionais de artilharia à distância. A cada 15 metros, aproximadamente, alguém tinha nas mãos uma bandeira branca. As pessoas caminhavam com dificuldade, carregando sacolas com tudo que conseguiram levar de suas casas. Eu contei cinco cadeirantes; vi uma cama com rodas levando uma pessoa jovem ou enferma demais para caminhar.

Foi um vislumbre do “corredor humanitário” que Israel, sob crescente pressão internacional, estabeleceu para permitir aos palestinos que habitam o norte da Faixa de Gaza fugir para uma região mais segura — para que as Forças de Defesa de Israel (FDI) possam intensificar seus ataques contra bases do grupo terrorista Hamas com menos risco para os civis. As tropas israelenses permitiram a mim e a outros três jornalistas que acompanhássemos essa fuga da zona de guerra.

Palestinos saem do norte da Faixa de Gaza em direção ao sul do enclave palestino no sábado, 11 Foto: Haitham Imad/EFE

Durante os 30 minutos que nos foi permitido assistir, nós estimamos que cerca de mil palestinos caminhavam na rodovia Salah al-Din. Um porta-voz do Exército afirmou no sábado, 11, que cerca de 50 mil pessoas utilizaram vários corredores. No domingo, 12, o número foi provavelmente similar.

Nós fomos mantidos atrás de uma barreira de soldados que portavam armas automáticas, para que não pudéssemos entrevistar nenhum civil palestino. O tenente-coronel Gilad Pasternak, subcomandante da brigada acionada para esta região, afirmou que os soldados estavam lá para evitar possíveis ataques do Hamas para impedir que os civis fugissem. Cerca de 15 minutos após deixarmos o local, afirmou Gilad, seu rádio recebeu um alerta de “fogo roxo”, alertando que o Hamas tinha disparado morteiros contra aquele setor. Foi impossível verificar o relato independentemente.

Restou-nos apenas imaginar o que os fugitivos naquela fila silenciosa passaram durante as cinco primeiras semanas da guerra. O Hamas é onipresente no norte de Gaza, e Israel devastou bairros civis em seus ataques. Quase todos os edifícios na região da Cidade de Gaza em que estivemos pareciam danificados por bombas ou projéteis de artilharia.

Civis palestinos saem da Cidade de Gaza em direção ao sul do enclave palestino, em meio a guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas  Foto: Mahmud Hams/AFP

Esta guerra tem produzido imagens terrivelmente assustadoras: crianças israelenses atacadas com selvageria pelos terroristas do Hamas; crianças palestinas morrendo sob os bombardeios israelenses. Trata-se de uma guerra na qual todos nós encaramos o fundo do abismo.

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Conforme a fila andava lentamente, Pasternak sacou um megafone e transmitiu uma mensagem para as pessoas a cerca de 100 metros dele, em hebraico e depois em inglês: “Se há algum israelense na fila, corra na direção dos soldados. Não tenha medo. Se eles (Hamas) atirarem em você, deite no chão”. Pasternak disse que ele e seus colegas da FDI repetiram esse apelo dois dias a todas as filas de refugiados esperando que algum refém ouvisse. Até aqui, nenhum sucesso.

Eu disse a Pasternak que, ao ver essa fila de gente assustada, recordei-me das imagens mais dolorosas da guerra. “Nós também nos compadecemos”, afirmou ele, “mas a luta e pela nossa existência, ser ou não ser”. Quase todos os soldados com que conversei em Gaza e quase todos os militares e civis com que me encontrei em Tel-Aviv pronunciam uma versão diferente dessa mesma narrativa.

Tanques militares israelenses operam dentro da Faixa de Gaza  Foto: Ari Messinis/AFP

Nós chegamos à Cidade de Cada depois de uma passagem pelo kibutz de Be’eri, palco de alguns dos mais aterradores atos de terrorismo do Hamas contra civis israelenses, onde vimos carros vazios de israelenses assassinados ou sequestrados e casas com marcas de tiros de morteiros. As imagens de 7 de outubro estão cravadas nas mentes de todos os israelenses como se o ataque tivesse ocorrido um instante atrás.

“Eu entendi naquele momento que o ataque do Hamas era algo que nós jamais havíamos temido ou antecipado”, afirmou Pasternak. “A quantidade de morte, a tortura e as monstruosidades foram algo que nós nunca tínhamos imaginado.”

Nós chegamos a Gaza em um blindado de transporte de soldados, percorrendo a mesma estrada que os militantes do Hamas usaram quando atacaram Be’eri. Essa via passa por vilarejos palestinos quase totalmente em escombros. Em Juhor ad Dik, que segundo Pasternak foi um ponto de concentração do Hamas para o rompimento da cerca, quase todos os edifícios foram danificados ou destruídos.

Pasternak mostrou-nos um vídeo de um túnel a aproximadamente 50 metros de uma escola local que o Hamas tinha usado como base para organizar os ataques. Não era seguro visitar o túnel, disse o militar. Terroristas do Hamas tinham emergido de um túnel na região um dia antes e atacado com granadas propelidas por foguetes. Só restou da escola o esqueleto de colunas, paredes arrebentadas e armações metálicas. Pasternak afirmou que os civis fugiram antes do bombardeio israelense.

Este conflito levanta questões tão excruciantes que sou incapaz de dar conta. Mas eis como parecia a situação em campo no domingo: os soldados israelenses na rodovia Salah al-Din Road estavam tentando, afirmaram eles, proteger uma massa de refugiados palestinos em fuga da violência infligida por Israel. A um observador só restava ter esperança de que a fila andava a caminho da segurança, em vez de mais morte e destruição. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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