Opinião | O destino da guerra entre Israel e Irã vai reconfigurar as forças no Oriente Médio, não para melhor

Países com origem histórica semelhante, Israel e Irã vivem escalada de agressões e risco de guerra derivada da barbárie, da anulação militar do Hamas e da primazia militar israelense

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Por Sergio Abreu e Lima Florêncio

O Oriente Médio vive um ponto de inflexão histórico, comparável à Guerra dos Seis Dias, de 1967, à Guerra do Yom Kippour, de 1973, e à Revolução Iraniana, de 1979. O destino da atual Era da Confrontação, em primeiro lugar, está nas mãos de Israel e Irã – dois regimes impopulares, militarizados e rivais históricos.

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A primazia militar, no primeiro caso, depende do comando das Forças de Defesa Israelenses (FDI) e, no segundo, do Conselho dos Guardas Revolucionários Iranianos (IRGC). No plano político, a hegemonia em Israel pertence a Binyamin Netanyahu e ao partido Likud, enquanto no Irã se distribui entre o líder Supremo Ali Khamenei, de 83 anos, o IRGC e o presidente reformista recém-eleito, Masoud Prezeshkian.

O destino dessa guerra regional entre Israel e Irã, em segundo lugar, depende de definições dos EUA – o único ator capaz de dobrar Israel, apesar da impotência atual – e da China – pela dependência econômica do Irã à superpotência rival. Os regimes árabes conservadores, com Arábia Saudita à frente, também exercem forte influência sobre os rumos do conflito regional.

Imagem do dia 1º mostra avião voando sobre Beirute após um bombardeio israelense. Ataques de Israel sobre capital libanesa expandiram guerra no Oriente Médio Foto: Bilal Hussein/AP

Duas prioridades parecem conformar o curso da guerra: de um lado, a política israelense de dissuasão (deterrence), como instrumento para alcançar a hegemonia militar na região; e de outro, a construção de proxies e o avanço do programa nuclear, como meio para o Irã se projetar regionalmente e enfraquecer Israel.

É muito curioso que o Irã, a potência desestabilizadora do Oriente Médio desde a Revolução Islâmica, seja hoje justamente aquela que mais evita uma guerra aberta com Israel. Isso se explica pelos devastadores ataques israelenses ao longo de um ano, que resultaram na quase anulação militar do Hamas e no brutal desgaste do principal proxy iraniano – o Hezbollah. No caso deste segundo, houve humilhação dos dirigentes com a explosão dos pagers; atentados fatais contra os líderes; destruição das principais bases de lançamento de mísseis; e eficaz interceptação israelense e norte-americana de mísseis lançados pelo Hezbollah.

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Uma breve nota histórica. Israel só sobreviveu como país independente após vencer as guerras contra os vizinhos árabes de 1948, ano de sua criação. De forma semelhante, um ano após sua vitória, a Revolução Iraniana enfrentou oito anos de sangrenta guerra protagonizada pelo Iraque.

A ameaça do panarabismo e do nacionalismo nasserista ajudaram a moldar um Israel militarista. Do outro lado, o perigo contrarrevolucionário, alimentado por Iraque, EUA e monarquias do golfo, justificou a utilização de proxies como instrumento iraniano de dissuasão e de desestabilização regional.

Em outros termos, a origem histórica semelhante tanto de Israel como do Irã revolucionário – ambos nascidos sob a égide da confrontação – ajuda a entender a dupla barbárie do ataque terrorista do 7 de outubro de 2023 e de seu desproporcional desdobramento.

A invasão do território israelense pelo Hamas há um ano atrás, com cerca de 1.200 mortes e 250 reféns, representaram, além de tragédia humanitária, pesada humilhação para um país orgulhoso de sua superioridade militar. Esses dois componentes serviram de justificativa para o lançamento de uma guerra devastadora que destruiu a infraestrutura da Faixa de Gaza, produziu mais de 40 mil mortos e aniquilou a força militar do Hamas.

Apesar desses feitos, o governo Netanyahu passou a ser visto como perdedor: não trouxe os reféns de volta; o Hamas, mesmo militarmente derrotado, não foi totalmente eliminado; a desproporcional reação israelense foi percebida pelo mundo como barbárie; o país passou a ser visto como pária internacional; e internamente os protestos se avolumaram e ganharam as ruas do país contra Netanyahu e a condução da guerra.

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Imagem desta quinta-feira, 24, mostra garoto carregando um cobertor próximo a escombro de uma escola em Nuseirat, no centro da Faixa de Gaza. Ofensiva israelense contra o Hamas causou tragédia humanitária contra palestinos Foto: Eyad Baba/AFP

Naquele momento, era consensual que o fim da guerra significaria a queda de Netanyahu, um político desgastado e muito impopular antes do conflito. Ao mesmo tempo, insistir na ofensiva contra o Hamas quase aniquilado não fazia sentido militar nem político, não traria os reféns de volta e seria uma vitória de Pirro.

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Assim, Netanyahu precisava urgentemente transformar a frustrada derrota sobre o Hamas na Faixa de Gaza, em contundente vitória contra o Hezbollah no sul do Líbano. Os dados estavam lançados e já existia justificativa para o lançamento da intitulada “nova fase da guerra” – a forte pressão popular sobre o governo Netanyahu exercida pelos 60 mil israelenses deslocados de suas residências no norte do país pelos bombardeios fronteiriços do Hezbollah, em resposta aos ataques das FDI contra o Hamas.

O saldo da “nova etapa da guerra” é uma sucessão de indiscutíveis vitórias táticas de Israel. O Hamas sofreu o assassinato de seu principal líder e, em 17 de outubro, foi eliminado o arquiteto do ataque terrorista de 7 de outubro de 2023. O Hezbollah foi humilhado pela explosão dos pagers e de parte de sua liderança, além de ver destruída sua principal base de lançamento de mísseis e assassinado seu líder, Hassan Nasrallah. O Irã teve seu consulado em Damasco atacado, além de ver assassinado, em seu território, o grande líder do Hezbollah.

A escalada mútua da guerra ganhou ímpeto com o inédito ataque direto de mísseis sobre Israel em 1º de outubro, e da invasão de forças terrestres e de aeronaves israelenses sobre o Líbano, em reedição da guerra de 2006. A insofismável supremacia militar e tecnológica israelense ficou demonstrada nas várias frentes da guerra – Faixa de Gaza, Sul do Líbano, Síria, Iêmen e Iraque.

Em contraste com seu projeto frustrado de destruição do Hamas, as investidas recentes de Netanyahu sobre o Hezbollah, os Houthis, as milícias sírias e iraquianas, e a interceptação dos mísseis lançados pelo Irã revelaram exitosa tática, mas sem estratégia.

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Se a guerra é a continuação da política por outros meios, a pergunta inescapável ressuscita Clausewitz. Quão sustentáveis são conquistas militares sem vitórias políticas? E nesse campo, os enigmas se agigantaram. O que fazer com os palestinos na Faixa de Gaza pós-Hamas e na Cisjordânia ilegalmente ocupada por milhares de colonos israelenses? O que fazer no Líbano com o Hezbollah fragilizado em termos de comando, armas e apoio iraniano, mas relevante ator político? O que fazer com a infraestrutura petrolífera e as instalações do icônico programa nuclear iraniano?

A falta de estratégia foi substituída pela retórica messiânica de Netanyahu, contida em slogans onipotentes. Vamos criar um Líbano onde o povo terá liberdade de escolher seus dirigentes sem o terrorismo do Hezbollah. Os iranianos poderão ficar livres da ditadura teocrática.

Para uma Arábia Saudita conservadora e adversária de um Irã revolucionário, as investidas israelenses contra Teerã eram muito bem-vindas, mas com a importante ressalva de que não chegassem no limite de uma guerra aberta.

Mas até onde poderá avançar, na prática, esse messianismo? Só os EUA poderão traçar a linha vermelha dos limites impostos a Israel. O primeiro deles Biden já deixou claro – Israel não atacará as instalações nucleares iranianas. Do outro lado, a China, de olho na infraestrutura petrolífera do país e preocupada com os efeitos sobre o mercado, tampouco apoiará uma guerra aberta irano-israelense.

Como antes mencionado, as monarquias árabes têm papel político relevante sobre os rumos da guerra. É preciso ter presente que um elemento propulsor do ataque terrorista do Hamas, um ano atrás, foi a perspectiva de vir a Arábia Saudita firmar os Acordos de Abraão e, desse modo, esvaziar enormemente o “eixo da resistência iraniano” e seus proxies, como o Hamas.

Assim, para uma Arábia Saudita conservadora e adversária de um Irã revolucionário, as investidas israelenses contra Teerã eram muito bem-vindas, mas com a importante ressalva de que não chegassem no limite de uma guerra aberta. Apesar dessa aliança não escrita entre Riad e Tel Aviv, os sauditas se afastaram de Israel em função das monstruosas atrocidades sobre os palestinos. A Arábia Saudita apoiou o cessar-fogo, a solução de dois Estados e poderá contribuir com vultosos recursos para a reconstrução da Faixa de Gaza.

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Da perspectiva da política doméstica em Israel, a “nova fase da guerra” alterou o jogo político a favor de Netanyahu, o que torna mais difícil uma solução de dois Estados, pelo menos a curto prazo, agravada pela força dos assentamentos ilegais de israelenses na Cisjordânia. Ao mesmo tempo, entretanto, não há alternativa viável à solução de dois Estados. Ou seja, de novo estamos no modelo tática sem estratégia.

Da ótica iraniana, prevalece o clima de animosidade sempre existente entre a forte influência do Conselho dos Guardas Revolucionários – mais tendente a defender uma guerra aberta contra Israel – e forças moderadas, lideradas pelos presidentes liberais anteriores, como Khatami, Rouhani e o recém eleito Masoud Pereshkian.

Diante de tamanhas indefinições, é difícil antever um claro desdobramento para o atual conflito entre Israel e Irã. Entretanto, o que parece mais provável é uma reconfiguração de forças no Oriente Médio, derivada da dupla barbárie do Hamas e de Israel, da anulação militar do Hamas, do enfraquecimento dos proxies iranianos e da primazia militar de Israel.

No curto prazo, as vitórias iranianas nos diversos campos de batalha elevaram seu poder de dissuasão regional, embora com o risco da hubris israelense expandir o conflito para uma guerra ampla com o Irã. Nesse último cenário, o destino da confrontação passaria a ser ditado não mais pelas duas potências regionais, mas por EUA e China, as superpotências globais.

Opinião por Sergio Abreu e Lima Florêncio

é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

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