O difícil caminho do não alinhamento do Brasil

Com a guerra cada vez mais intensa, tudo leva a crer que o conflito contaminará a geopolítica ainda mais do que no ano passado

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colunista convidado
Foto do author Oliver  Stuenkel

Com a decisão do Ocidente de fornecer mais de cem tanques à Ucrânia e o debate crescente sobre uma possível tentativa de reconquistar a península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, o conflito na Europa entra em nova fase. Depois de o governo Biden ter fornecido quase US$ 30 bilhões em ajuda militar aos ucranianos desde o início do conflito, uma derrota ucraniana seria um desastre político dificilmente aceitável para o presidente americano, que já está se preparando para sua campanha de reeleição.

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Da mesma forma, uma conquista russa de Kiev – o que parece ser a meta da contraofensiva militar que o Kremlin prepara – causaria um terremoto político na Europa, onde o premiê alemão Olaf Scholz, depois de muita hesitação, decidiu aprovar o envio de tanques à Ucrânia, país a menos de 700 quilômetros da fronteira alemã. Há pouca dúvida de que avanços decisivos russos aumentariam a probabilidade de o Ocidente fornecer caças à Ucrânia, algo inimaginável no início do conflito.

Do lado russo, também aumentaram muito as apostas: com uma onda nacionalista varrendo o país, Vladimir Putin sabe que uma derrota militar na Ucrânia representaria grave ameaça política. Tudo indica que o presidente russo está disposto a fazer o máximo possível – inclusive uma mobilização geral, que implicaria o envio de centenas de milhares de soldados para o front – para vencer o conflito. O Kremlin admitiu que tomou a decisão pouco usual de recrutar presidiários, como mercenários do Grupo Wagner, 40 mil dos quais, segundo estimativas, estão lutando na Ucrânia.

Imagem mostra tanques dos EUA sendo testados; governo Biden anunciou envio de armamento à Ucrânia  Foto: EFE/EPA/VALDA KALNINA

Com a guerra cada vez mais intensa, tudo leva a crer que o conflito contaminará a geopolítica ainda mais do que no ano passado, tornando-se um dos temas prioritários a ser discutidos nas principais plataformas multilaterais, como o G-7, o G-20, e o grupo Brics. Essa é uma notícia ruim para o Brasil, que deve participar de reunião dos três grupos, afinal, enquanto o País tem como brilhar na questão climática – tema que pode ajudar a reconquistar o status de ator indispensável no sistema internacional –, o conflito na Ucrânia dificulta a estratégia de não-alinhamento, pilar da política externa brasileira.

Tanto no encontro do G-7 quanto na cúpula do Brics, o Brasil estará em uma posição pouco confortável. Situações como a do recente pedido do governo alemão para o envio de munição brasileira – feito dias antes da visita do premiê a Brasília e declinado pelo presidente Lula – se tornarão mais comuns. Enquanto o G-7 fará uma declaração condenando a Rússia nos termos mais explícitos e buscará intensificar o isolamento econômico de Moscou – algo que o governo brasileiro não apoia –, o Brasil terá de se empenhar para evitar que a declaração final do grupo Brics vire um manifesto pró-Rússia. Afinal, com a postura cada vez mais pró-Moscou da África do Sul, o Brasil é o integrante que mais tem a perder com um posicionamento anti-ocidental do bloco.

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Essa tensão intra-Brics não é nova: certa vez, em reunião preparatória para a cúpula do grupo em Moscou, um participante russo afirmou em discurso que o Brics deveria se posicionar como “bloco anti-ocidental”, ideia prontamente criticada por um representante brasileiro, o qual lembrou que o Brasil também faz parte do Ocidente e, portanto, rejeita a caracterização.

Com os dois lados dobrando as apostas na guerra, o Brasil precisa se preparar para o cenário de uma conversa global cada vez mais monotemática, a qual deverá levar a uma intensificação das sanções econômicas contra a Rússia, a mais volatilidade dos preços de alimentos e a espaço cada vez mais estreito para construir acordos em outras áreas. As negociações para se chegar a um acordo nuclear com o Irã são o melhor exemplo: com o regime em Teerã fornecendo drones à Rússia, é pouca a disposição ocidental de negociar com o país.

É impossível prever o percurso da guerra, mas tanto a queda de Kiev aos russos – forçando Zelenski a fugir – quanto a reconquista ucraniana da Crimeia, que provavelmente levaria a uma queda de Putin – são possibilidades reais ao longo dos próximos anos. Ambos produziriam transformações significativas no sistema internacional: uma derrota russa na Ucrânia aumentaria as chances de instabilidade na Ásia Central, antigo quintal de Moscou, além de um possível atrito na sucessão presidencial russa. A queda de Zelenski poderia causar uma onda de refugiados ucranianos com profundas consequências para a Europa. Todos os cenários teriam consequências amplas para a economia brasileira e sua inserção internacional.

* É ANALISTA POLÍTICO E PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV EM SÃO PAULO

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