O drama dos soldados latinos que viraram presença ativa no front da guerra na Ucrânia

Em meio às dificuldades da Ucrânia em renovar as suas forças, soldados profissionais da Colômbia e de outros países latinos enfrentam amputações e dificuldades no campo de batalha

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Foto do author Carolina Marins

ENVIADA ESPECIAL A LVIV, UCRÂNIA* - Quando Gabriel Ramírez, 28, deixou a Colômbia para lutar na guerra da Ucrânia, ele sabia que a morte era um risco alto, mas nunca imaginou que terminaria com uma perna amputada.

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Agora, em tratamento em um centro de reabilitação para amputados em Lviv, no oeste da Ucrânia, ele se lamenta pelo incidente. “Quando se vem a uma guerra dessa já se sabe as consequências. Mas, honestamente, para mim, ficar amputado não era uma opção. Morrer era o de menos, ficar amputado não estava nos meus planos”, desabafa. Agora ele não pode retornar ao front devido à amputação, mas também não planeja retornar à Colômbia.

Ramirez deixou a mãe e seis irmãos em Tolima para se juntar às forças ucranianas em 2023. Um irmão chegou a vir junto, mas retornou para a Colômbia pouco depois. Ele atuou por muito tempo na região do Donbas, que agrupa as províncias de Donetsk e Luhansk, onde a luta com a Rússia é mais intensa.

Mas a ferida na perna ocorreu quando lutava em Bakhmut, região que chegou a ser conquistada pela Rússia graças a grupos mercenários. Um disparo de tanque atingiu seu pelotão, deixando mortos e feridos. Ele teve a perna esquerda atingida. Graças a um torniquete e à rápida capacidade de buscar ajuda, ele foi capaz de escapar da morte por hemorragia. Hoje, no Superhumans, utiliza uma prótese e faz reabilitação para aprender a utilizá-la.

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Assim como Ramírez, dezenas de latino-americanos vieram para os campos de batalha da Ucrânia, entre eles peruanos e brasileiros, mas os colombianos são a maioria.

“Cheguei a encontrar uns 50 colombianos, mas já ouvi falar que existem mais de 200 combatendo”, conta em entrevista durante um intervalo nos seus exercícios de reabilitação no centro de ortopedia Superhumans, em Lviv. O número que cita não é confirmado oficialmente pelo governo ucraniano, que mantém em sigilo as informações sobre suas forças. Mas é corroborado por autoridades anonimamente, que chegam a falar que 200 é a estimativa por baixo.

O médico de Ramírez, o espanhol Manuel Veiga, diz que este é o número de colombianos estimados no campo de batalha ucraniano. Sua presença no centro de reabilitação como um médico que fala espanhol, inclusive, tem ajudado a atender pacientes falantes do idioma que chegam feridos.

Gabriel Ramírez, 28, um solsado profissional da Colômbia, deixou a mãe e seis irmãos em Tolima para lutar na guerra da Ucrânia Foto: Carolina Marins/Estadão

Ramirez não é o único colombiano no centro. Miguel Ángel Rodríguez, 30, também está em tratamento para uma perna amputada após pisar em um campo minado. Diferente do colega, cujo pelotão era formado por outros latino-americanos, o de Rodríguez era inteiramente formado por colombianos. “Éramos pelo menos uns 30″, lembra.

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Segundo fontes militares informaram ao jornal The Washington Post em fevereiro deste ano, há mais de 20 mil estrangeiros de 50 nacionalidades lutando na Ucrânia. O governo ucraniano não informa esses números oficialmente alegando segurança nacional.

No entanto, a publicação de estatísticas de mortos na guerra - outra raridade - já dá uma dimensão do tamanho do contingente de colombianos no front: ao menos 38 morreram em combate, sendo a quarta nacionalidade estrangeira em número de mortos, atrás de Estados Unidos (56), Geórgia (55) e Belarus (39), segundo dados do Ukrinform, agência de notícias da Ucrânia.

Quando questionado se chegou a encontrar brasileiros, Ramírez responde que conheceu ao menos quatro durante o período que combateu na região do Donbas. Não existe, porém, dados oficiais sobre a presença de brasileiros no front.

No levantamento do Ukrinform há dados de cinco brasileiros que morreram no país, um número que já havia sido levantado pela imprensa brasileira até o ano passado. Na praça Maidan há um memorial em homenagem aos voluntários estrangeiros que morreram na guerra e lá está a bandeira brasileira.

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“Pessoalmente não cheguei a conhecer ou tratar brasileiros, mas ouvi de companheiros que muitas de suas unidades tinham brasileiros”, comenta o médico Manuel Veiga. “É que o caso colombiano é um extremo porque há muitos”.

Bandeira brasileira colocada em um memorial da Praça Maidan que homenageia os estrangeiros mortos lutando pela Ucrânia Foto: Cedida ao Estadão por Myroslava Iaremkiv/Ukraine Crisis Media Center

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A barreira do idioma

Os colombianos, e outras nacionalidades como franceses, ingleses e poloneses, vem respondendo a um chamado do presidente Volodmir Zelenski. Muitos estrangeiros se voluntariaram para lutar pela Ucrânia nos primeiros meses da invasão russa por meio da Legião Internacional de Defesa da Ucrânia. Mas agora o governo busca atraí-los de forma oficial para compensar as perdas que vem sofrendo, bem como as dificuldades para mobilizar novos homens.

Em fevereiro, Zelenski emitiu um decreto permitindo que cidadãos estrangeiros que residam legalmente no país entrem na Guarda Nacional. Antes, ele havia proposto uma legislação que tornava mais fácil para os estrangeiros que lutam no país a receberem a cidadania ucraniana.

A forte mobilização latino-americana levou o governo ucraniano a incluir o espanhol em comunicações das Forças Armadas e buscar recrutadores que falassem a língua. “Os colombianos são a razão para que tantos escritórios de recrutamento na Ucrânia tenham textos em espanhol”, relata Manuel Veiga. “Eles estavam chegando como voluntários, para ajudar o país, mas era muito difícil se comunicar”.

“Muitas vezes por falta de comunicação lhes faltavam coisas. Eu perguntei se eles tinham kits de primeiros-socorros no front e eles não sabiam como pedir porque os comandantes não falavam espanhol. Por isso agora eu faço parte de um grupo de voluntários que arrecada botas, capacetes, kits de primeiros-socorros e até placas em espanhol.”

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A Ucrânia precisava muito de gente e havia muita vontade de pessoas dos países falantes de espanhol de se juntar ao Exército da Ucrânia, mas quantos ucranianos falam espanhol? Muito poucos.

Manuel Veiga, médico no centro de reabilitação Superhumans

Gabriel Ramírez, 28, teve a sua perna esquerda amputada após um ferido causado por um tiro de tanque em Bakhmut Foto: Carolina Marins/Estadão

Incentivos

Tanto Ramírez quanto Rodríguez eram soldados profissionais na Colômbia e haviam lutado na longa guerra civil contra os grupos de narcotraficantes que tem repercussões até hoje na política colombiana. Todos os outros colombianos que conheceram também eram ex-soldados profissionais. Há duas motivações principais: incentivos financeiros e ausência de propósito depois de deixar “as linhas de frente” na Colômbia.

O que o motivou a ir para a Ucrânia, conta, foi a vida militar. Depois de atuar no conflito colombiano, sentia falta desta vida. “Uns amigos que já haviam vindo para cá me contaram como era. Vi que não era muito complicado”, disse sem entrar em detalhes do processo.

A maioria, porém, vai por incentivos financeiros. Ramírez, bem como Rodríguez, tinham um contrato de US$ 3 mil por mês para atuar durante três anos no conflito, enquanto na Colômbia a média salarial de um soldado é de US$ 400 por mês. “Na Colômbia não vale a pena”, diz Ramírez. Agora que não pode voltar ao front, ele recebe uma pensão do governo além de uma indenização pela ferida, mas não quis especificar valores.

Pacientes amputados, militares e civis, são tratados no Superhumans Center em Lviv, Ucrânia Foto: Carolina Marins/Estadão

Rodríguez também se viu atraído pela vida militar, mas foi o salário que lhe chamou mais atenção. Ele foi para a Ucrânia depois de ter atuado durante 10 anos na Colômbia. Em novembro de 2023, porém, se desviou de seu pelotão em Andriikva e entrou em um campo minado, o que resultou na perda de sua perna esquerda. Assim como o colega, o torniquete o salvou.

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“Meu projeto é terminar minha reabilitação e, se puder, seguir trabalhando. Quero voltar para a Colômbia. Lá tenho a minha esposa e o meu filho”, afirmou. Sua esposa e filho de sete anos ficaram em Bucaramanga.

Quando questionado sobre a diferença entre os dois conflitos, ele rapidamente destaca os horrores da guerra contra a Rússia. “É muito diferente da Colômbia, lá é uma guerra interna. Não parece em nada como aqui. Aqui do nada te lançam granadas. É um inferno”. Gabriel Ramírez concorda, o nível de artilharia e ataque desta guerra, diz, é sem precedentes em sua vida.

Miguel Ángel Rodríguez, 30, se feriu após entrar em um campo minado em Andriivka em novembro de 2023 Foto: Carolina Marins/Estadão

Mercenários

Embora nenhum dos dois utilize o termo, a definição para ex-soldados que combatem por outro país por contrato é mercenário. E a Ucrânia está longe de ser o primeiro caso de mercenários em guerra, especialmente colombianos. A própria Rússia conquistou avanços importantes no sul graças a mercenários do Grupo Wagner, que depois caíram em desgraça ao participar de um motim contra o Kremlin.

No caso da Rússia há muita presença de russos e nacionalidades do Oriente Médio e da África. Mas os latino-americanos, especialmente os colombianos, vêm se tornando um ativo cobiçado nas guerras pelo mundo devido às suas técnicas de combate urbano e guerrilha. A mercenários colombianos é atribuído o assassinato do presidente haitiano Jovenel Moise em 2021.

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Além de técnicas diferentes de combate, o médico Manuel Veiga detalha que colombianos também chegam com alto conhecimento para lidar com as feridas de guerra, como fazer os torniquetes.

“É um milagre que Gabriel esteja vivo porque foi um impacto direto de tanque. Muitos dos seus companheiros morreram e ele só se salvou porque se ‘auto-resgatou’ com um torniquete. Esse é um dos motivos para termos tantos soldados mortos, eles não sabem como fazer um torniquete. Os colombianos sabem”, afirmou.

“Os mercenários latino-americanos são muito bons no que fazem e também são mais baratos do que mercenários americanos ou europeus”, explicou Sean McFate, professor de estratégia militar na Georgetown University em entrevista ao Estadão em 2022 sobre a presença de mercenários latino-americanos nos batalhões russos. “Eles sabem lutar não apenas nas cidades, mas nas selvas. Sabem fazer a guerra de guerrilha e contra-guerrilha. E isso os torna muito atraentes porque a maior parte do mundo não gosta disso.”

Civis amputados

A movimentação de jornalistas latino-americanos entrevistando ex-combatentes também latino-americanos chamou a atenção da ucraniana Olena Levitska, 36, que também faz tratamento no centro Superhumans. Ela nunca serviu no Exército, mas ainda assim teve a perna amputada devido à guerra. Ela também queria ter a oportunidade de contar a sua história.

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Olena estava tentando fugir da guerra de trem com seus dois filhos, de sete e quatro anos, em maio de 2022 em Krivii Rih, na região de Dnipropetrovsk, quando houve um bombardeio. Ela não sabe dizer como, se caiu ou foi empurrada, mas na confusão acabou indo parar debaixo dos carros do trem, que entrou em movimento.

“Eu não tenho a perna esquerda e os médicos se esforçaram durante oito meses para salvar a minha perna direita, o que conseguiram”, relata a ucraniana.

Olena Levitska, 36, perdeu a perna esquerda e quase perdeu a direita depois de cair embaixo de um vagão de trem em Krivii Rih em 2022 quando tentava fugir de bombardeios russos Foto: Carolina Marins/Estadão

Embora seja formada em psicologia e RH, ela e o marido conduziam uma fazenda de morangos na região de Zaporizhzhia, quando a Rússia bombardeou a região em 3 de março e começou a se aproximar de sua cidade. “Decidi fugir porque nenhum ser vivo restaria se os russos chegassem”, afirmou.

Seu marido ficou para lutar nas Forças de Defesa da Ucrânia, mas foi liberado da mobilização depois do ferimento da esposa.

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Ela chegou a morar na Noruega durante 10 meses, mas não teve acesso a tratamentos adequados lá, por isso decidiu retornar à Ucrânia. “Cheguei ao Superhumans em cadeira de rodas e depois de três semanas já estava de pé e caminhando”, celebra.

Em seu website, o centro informa que atende tanto militares quanto civis, sejam adultos ou crianças. Ali, além da reabilitação, são produzidas próteses personalizadas para cada paciente, que são produzidas em impressoras 3D. O Superhumans tem em sua conselho diretor o ministro da Saúde Viktor Liashko e a primeira-dama Olena Zelenska.

Uma prótese sendo construída no Superhumans Center, em Lviv, Ucrânia Foto: Carolina Marins/Estadão

*A repórter viajou a convite da Fundação Gabo, que tem um projeto para incentivar reportagens em cobertura de conflitos internacionais, em parceria com a organização Ukraine Crisis Media Center, da Ucrânia