THE NEW YORK TIMES - Dezenas de milhares morreram lutando por ela e contra ela, destruindo as carreiras de dois presidentes — um da Armênia e um do Azerbaijão — e atormentando uma geração de diplomatas americanos, russos e europeus que pressionou por planos de paz natimortos. Ela perpassou seis presidentes americanos. Mas a autodeclarada república no enclave montanhoso de Nagorno-Karabakh — não reconhecida por nenhum país — desapareceu tão rapidamente na semana passada que sua população de etnia armênia teve apenas minutos para arrumar as malas antes de deixar suas casas e juntar-se a um êxodo motivado por temores de limpeza étnica de um Azerbaijão triunfante.
Depois de sobreviver a mais de três décadas de guerra em guerra e pressões de grandes potências para desistir de suas ambições, ou pelo menos reduzi-las, de ser um país independente, com presidente, Exército, bandeira e governo próprios, a República de Artsaque, dentro das fronteiras internacionalmente reconhecidas do Azerbaijão, colapsou quase da noite para o dia.
Slava Grigoryan, um dos milhares de habitantes de Nagorno-Karabakh que fugiram esta semana, disse que teve somente 15 minutos para fazer as malas antes de partir para a Armênia por uma estrada estreita na região montanhosa controlada por tropas do Azerbaijão. No caminho, afirmou Grigoryan, ele viu soldados retirando quatro homens armênios de seu comboio.
Grigoryan levou apenas umas poucas camisas e os negativos das fotos que tem de sua família, deixando para trás seu apartamento e uma casa no campo com apiário e jardim.
Grigoryan contou que uma das últimas coisas que fez antes de sair foi destruir vídeos que gravou a respeito da jornada de sua terra-natal do triunfo à destruição. Ele começou a gravar os vídeos em 1988, quando Armênia e Azerbaijão eram parte da União Soviética, e Nagorno-Karabakh foi tomada pela violência pela primeira vez, conforme armênios étnicos exigiram e posteriormente obtiveram a autodeterminação. “Com lágrimas nos olhos”, afirmou Grigoryan, “eu queimei 100 fitas”.
Sergei Danilyan, ex-soldado artsaque, fugiu para a Armênia no sábado, após o prefeito de seu vilarejo ter dito a todos que escapassem “dos turcos” — o termo franco que define azerbaijaneses — que estavam se reunindo nas redondezas. “Eles vão matar as crianças, cortar suas cabeças”, afirmou o prefeito.
Danilyan disse que esta foi a quarta vez que ele fugiu de seu vilarejo, Nerkin Horatagh, em razão de violência. “Sempre guerra e mais guerra — 30 anos de guerra.”
As condições de vida estavam insuportáveis havia meses em razão de um bloqueio imposto pelo Azerbaijão, afirmou seu irmão, Vova. “As pessoas estavam passando fome. Sem cigarro, sem pão, sem nada”, afirmou ele.
Até a semana passada, a minúscula república autodeclarada, com menos de 150 mil habitantes, persistia como bastião da antiga esfera política e diplomática da ex-União Soviética. A Rússia, tradicional protetora e aliada da Armênia desde 1992 em uma organização de segurança coletiva liderada por Moscou, mandou tropas de paz para a região em 2020 e prometeu manter aberta a única estrada que liga Artsaque à Armênia, uma rota de abastecimento vital para o enclave.
Mas o governo russo, distraído com sua guerra na Ucrânia e ávido para estabelecer relações econômicas e políticas mais próximas com o Azerbaijão e sua aliada, a Turquia, não interveio quando o Azerbaijão fechou essa rota, cortando o fornecimento de alimentos, combustíveis e medicamentos. O Kremlin ordenou suas tropas de paz a não interferir durante o ataque relâmpago do Azerbaijão contra as fracas defesas de Artsaque.
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Quase ninguém, nem o governo dos Estados Unidos, previu o rápido colapso.
“Todos nós estamos em choque. Todos entendem que este é o fim: a destruição completa de Artsaque”, afirmou Benyamin Poghosyan, ex-diretor da unidade de pesquisa do ministério armênio da Defesa. “A única coisa realmente importante agora é retirar a população em segurança.”
Nagorno-Karabakh, que declarou independência em 1991, têm sido sinônimo de fracasso diplomático, um problema interminável semelhante ao conflito israelo-palestino ou à situação no Norte do Chipre.
Quase em um piscar de olhos, porém, a questão de Nagorno-Karabakh foi agora “resolvida” — pela força das armas, deixando armênios étnicos apavorados, à mercê do presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, um líder que há anos incita ódio contra os armênios.
Em 2012, Aliyev perdoou, promoveu e homenageou como herói um oficial militar azerbaijanês que tinha sido condenado na Hungria por assassinar com um machado um colega de classe armênio em um curso da Otan. Depois de cumprir seis anos de sua pena de prisão perpétua na Hungria, o assassino foi deportado para o Azerbaijão, que prometeu mantê-lo na cadeia. Ao chegar no aeroporto de seu país, ele foi recebido com flores e libertado.
“Qualquer um que ache que armênios podem viver sob aquele regime é um fantasista”, afirmou Eric Hacopian, apresentador de um programa semanal na CivilNet, uma popular emissora armênia de TV pela internet.
Relatos não confirmados de assassinatos e estupros em massa inundaram as redes sociais e foram substituídos agora por imagens de pessoas em fuga, ocasionando temores a respeito de uma repetição do genocídio armênio praticado em 1915 pelo Império Otomano. Artsaque foi apagada, mas sua ideia ainda tem muitos apoiadores.
Edik Aloyan, que trabalhava como gerente de vendas em Nagorno-Karabakh, saltou do caminhão que o levou para a segurança assim que chegou ao vilarejo armênio de Kornidzor e declarou que sua terra-natal perdida “é puramente armênia” — o que, insistiu ele, jamais mudará, mas “os russos não nos ajudaram, eles ajudaram o Azerbaijão”.
Na capital armênia, Erevã, milhares de manifestantes têm se reunido todas as noites desde a semana passada na praça central para entoar “Vida longa a Artsaque” e berrar xingamentos ao primeiro-ministro, Nikol Pashinyan, por ele não ter mandado soldados defenderem seus parentes de etnia.
Mas apoiadores do primeiro-ministro afirmam que os protestos são obra de dois líderes desacreditados que chegaram ao poder promovendo a causa de Artsaque.
A batalha entre azerbaijaneses, de religião muçulmana e etnia turcomena, e armênios cristãos por Nagorno-Karabakh começou quando a região era controlada pela União Soviética e escalou para uma guerra total após Azerbaijão e Armênia tornarem-se independentes. Limpezas étnicas de ambos os lados forçaram mais de 1 milhão de pessoas, segundo algumas estimativas, a fugir de suas casas. A guerra acabou em 1994, com Artsaque — o nome em língua armênia que designa Nagorno-Karabakh — independente e a Armênia controlando vastas regiões do Azerbaijão; alterações que a comunidade internacional recusou-se a legitimar.
A Armênia foi tomada pela euforia da vitória e pelo desprezo em relação a um inimigo cujo Exército era mal equipado, mal liderado e incapaz de superar forças armênias mais motivadas. O primeiro presidente armênio após o fim da era soviética, Levon Ter-Petrosyan, foi forçado a deixar a função em 1998 depois de apoiar um acordo prevendo concessões mútuas sobre Nagorno-Karabakh.
Os azerbaijaneses colocaram a culpa de seu mau desempenho militar em seu presidente na época, Abulfaz Elchibey, que acabou deposto e substituído por Heydar Aliyev, que tinha liderado o Azerbaijão no período soviético e dirigido a KGB no país e era pai do atual presidente.
Para Hacopian, a sensação de superioridade da Armênia após 1994 foi um erro fatal, que deixou o país e a República de Artsaque cegos em relação a quanto, nos anos que se seguiram, o equilíbrio de poder vinha mudando. O Exército do Azerbaijão tornou-se uma força temível, com novas armas compradas com renda de petróleo e gás natural.
“Empáfia é o pior erro que alguém pode cometer”, afirmou Hacopian.
O Azerbaijão foi à guerra outra vez em 2020 e venceu facilmente, retomando grande parte do território que tinha perdido.
Quando Nagorno-Karabakh deixou de ser uma querela interna soviética e virou uma questão internacional, a região tinha se tornado tão remota e obscura que “nós tínhamos de pesquisar livros antigos para descobrir onde ficava e como era esse lugar”, recordou-se o acadêmico armênio-americano Richard Giragosian, que vive em Erevã e trabalha como conselheiro do governo armênio.
Ao longo dos anos, planos de paz surgiram e desapareceram. Todos fracassaram, bombardeados pela intransigência de um lado ou de outro.
Negociações fracassadas organizadas em Key West, na Flórida, em 2001, com os EUA entre os mediadores, deixaram um sabor tão amargo que o então presidente americano, George W. Bush, disse que nunca mais queria voltar a saber nada a respeito da questão, de acordo com Thomas de Waal, autor do livro “Black Garden”, que relata 35 anos de discórdias sobre a região.
Nesta semana, Giragosian, que esteve em Washington para encontrar-se com autoridades surpreendidas pela queda de Artsaque, afirmou que esperava alguma resistência. “Do ponto de vista militar, eu achei que eles assumiriam posições nas montanhas”, afirmou ele a respeito dos armênios étnicos de Nagorno-Karabakh.
Mas no fim a República de Artsaque estava desprovida de apoiadores dispostos a ajudar na briga. Muitos habitantes mais jovens tinham partido, deixando para trás uma população predominantemente idosa para defender sua pátria não reconhecida. Meses de privação minaram a disposição do povo de seguir lutando.
Pequenos grupos militantes nacionalistas na Armênia, como Destacamento Cruzado, emitiram declarações ruidosas a respeito de ajudar Artsaque, mas não deram nenhum apoio significativo. O governo armênio de Pashinyan ficou de fora da briga.
Menos de duas semanas antes de seu Estado colapsar, em 20 de setembro, elites de Estepanaquerte, a capital da república separatista, envolveram-se em uma disputa pelo poder local, depondo seu presidente eleito depois dele responder à tempestade que se aproximava armando uma barraca diante da sede do governo e usando-a para protestar.
Em 9 de setembro, o Parlamento local selecionou Samvel Shahramanyan, uma antiga autoridade de segurança, para tornar-se presidente.
“Eu não estou revelando nenhum segredo quando afirmo que o bloqueio parcial e posteriormente completo de Artsaque praticado pelo Azerbaijão criou uma série de problemas para a república”, afirmou Shahramanyan aos legisladores.
Ao mesmo tempo que desdenhou da Armênia por perseguir uma “dita agenda de paz”, ele reconheceu que “as ideias e expectativas (de sua república) a respeito do direito internacional” eram “irrealistas e divorciadas da realidade”, em uma aparente referência à sua antiga oposição a qualquer acordo de paz que não garantisse a Nagorno-Karabakh um estatuto de Estado inteiramente separado do Azerbaijão.
Conforme as forças azerbaijanesas esmagaram as precárias defesas da república na quarta-feira, o novo presidente organizou uma reunião qualificada como uma “versão estendida do Conselho de Segurança” e anunciou que “Artsaque será forçada a dar passos apropriados”.
Ninguém mais viu nem soube, desde então, de Shahramanyan e teme-se que ele tenha sido capturado — assim como dezenas de outras ex-autoridades — pelas tropas do Azerbaijão para ser processado por “traição”.
“É uma verdadeira tragédia que anos de esforços internacionais para encontrar uma solução equilibrada para o conflito sejam erradicados em 24 horas”, afirmou Waal, o escritor. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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