NEUSTADT, Alemanha — O chefe de inteligência doméstica da Alemanha, Thomas Haldenwang, franziu a testa diante do preto-vermelho-dourado da desbotada bandeira alemã original em exibição no Castelo de Hambach, onde ela foi famosamente erguida durante uma marcha pró-democracia em 1832.
Quase 200 anos depois, dezenas de milhares de cidadãos enfurecidos estão novamente nas ruas ostentando as cores nacionais da Alemanha. Mas desta vez eles se manifestam principalmente contra os valores democráticos que seus ancestrais defenderam.
A ironia do momento não se perdeu em Haldenwang. O trabalho dele é literalmente defender esses valores e a Constituição na qual eles estão consagrados: ele chefia o Escritório para Proteção da Constituição, título pelo qual a agência de inteligência doméstica da Alemanha é conhecida. Sua missão é detectar e colocar sob vigilância entidades e atores antidemocráticos.
“Fico preocupado em razão dos nossos símbolos nacionais terem sido sequestrados pelos inimigos da democracia liberal”, afirmou Haldenwang durante uma entrevista recente, dentro do castelo que foi palco de manifestações pró-democracia no século 19, onde ele fez uma rara aparição pública para discutir as ameaças à democracia em um auditório repleto de estudantes do ensino médio. “Precisamos reivindicá-los e recuperá-los.”
Num momento em que a guerra da Rússia na Ucrânia, o aprofundamento da recessão e os preços da energia nas alturas colaboram para encorajar a extrema direita, Haldenwang leva sua função muito a sério. Este mês, sua agência ajudou a frustrar uma conspiração que almejava depor o governo, em uma das maiores operações de contraterrorismo na Alemanha do pós-guerra, a segunda este ano.
“Considero-me realmente um defensor da democracia na Alemanha”, afirmou ele. “Além de ser minha missão constitucional, é também uma missão pessoal.”
Golpe na Alemanha
Nascido em 1960, Haldenwang cresceu na cidade ocidental de Wuppertal, num momento em que os alemães estavam apenas começando a acertar as contas com seu passado nazista. Aos 16 anos, um jovem professor de história levou sua classe para conhecer o memorial no campo de concentração de Dachau. As imagens dos corpos esqueléticos grudaram na mente de Haldenwang e estiveram entre as razões que o motivaram a se voluntariar para trabalhar em um kibbutz em Israel gerido por sobreviventes do Levante do Gueto de Varsóvia, de 1943.
Muitos dos sobreviventes se recusavam a falar com os jovens alemães que apareciam para ajudá-los a tirar pedras de algum pomar de abacateiros. Quem o fazia insistia em falar inglês.
‘Defensor da democracia’
Para Haldenwang, a questão era pessoal: o avô dele tinha lutado e morrido pelo exército de Hitler nas imediações de Varsóvia.
“Eu estava completamente consciente da culpa da Alemanha nazista, da culpa que os alemães contraíram naquela época”, recordou-se Haldenwang, hoje com 62 anos, em uma entrevista recente. “Entendi então que nós somos os descendentes e arcamos com uma responsabilidade especial de garantir que isso jamais aconteça novamente.”
A expressão “nunca mais” passou a integrar a identidade alemã no pós-guerra como a única maneira de seguir adiante para uma nação em busca de se redimir, passando de um Estado assassino e terrorista para um país digno de se aliar com o Ocidente democrático. Para Haldenwang, esse mantra se tornou uma força motivadora.
Filho de um executivo têxtil e uma dona de casa, Haldenwang estudou direito e comprou sua primeira cópia da Constituição, a edição original, de 1949, com 20 e poucos anos — prometendo dedicar sua vida a servir a democracia alemã do pós-guerra.
Ao contrário de muitos jovens de sua geração que preferiam evitar o serviço militar, Haldenwang se alistou na Marinha antes de se integrar ao serviço público civil. Após a queda do Muro de Berlim, ele foi enviado para o leste ex-comunista para ajudar a construir instituições democráticas, antes de ascender nas hierarquias do Ministério do Interior e do serviço de inteligência.
A agência em que Haldenwang trabalha, que ele comanda desde 2018, é um pilar crucial do que os alemães chamam de “democracia defensiva”— uma democracia equipada para defender a si mesma contra ameaças internas. A Alemanha conhece esse tipo de ameaça melhor do que qualquer outra democracia ocidental. O Partido Nazista, de Hitler, assumiu o poder após eleições democráticas e usou esse poder para abolir a democracia.
Os autores da Constituição alemã deram à jovem democracia do pós-guerra ferramentas robustas para fazê-la durar. Um artigo permite ao Judiciário banir partidos políticos considerados inimigos da Constituição. Outro estipula que indivíduos podem perder seus direitos constitucionais quando usam esses direitos para minar a Constituição. Há até um artigo permitindo resistência armada a um ditador em ascensão, caso tudo mais fracasse.
Haldenwang, que hoje tem na estante 10 edições diferentes da Constituição, gosta de recitar o Artigo 1.º: “A dignidade dos seres humanos é inalienável”. Em síntese, está é a estrela-guia de sua agência. “Nós somos o sistema de alerta precoce da democracia”, afirmou ele.
Mas críticos afirmam que a agência tem sido morosa em identificar ameaças do extremismo de direita.
Violência de extrema direita
Até Haldenwang assumir, o establishment político alemão parecia ignorar a extrema direita. Desde a queda do comunismo, mais de 260 assassinatos praticados por extremistas de direita foram classificados como casos isolados.
O fracasso mais flagrante ocorreu quando um grupo de terroristas neonazistas matou nove imigrantes, entre 2000 e 2006, e continuou não detectado até 2011, quando ele próprio assumiu a responsabilidade pelas mortes. Pior, informantes pagos da agência foram acusados de auxiliar o grupo. No dia seguinte à existência do grupo vir a público, operadores da agência destruíram vários arquivos, no que até hoje parece um esforço deliberado de acobertar seu envolvimento com o grupo terrorista.
Mais recentemente, críticos afirmaram que o antecessor de Haldenwang, Hans-Georg Maassen, minimizou a violência de extremistas de direita durante manifestações anti-migração em Chemnitz, em 2018. Ele negou, mas acabou se demitindo do cargo, e desde então tem sido celebrado como mártir e herói por neonazistas.
Durante todos esses anos, Haldenwang, já na agência, nunca se posicionou publicamente. Mas assim que assumiu como presidente, ele aumentou o orçamento e o número de agentes dedicados à extrema direita.
“Fomos de um extremo para o outro”, afirmou o proeminente apresentador de TV Michel Friedman, ex-diretor do Conselho Central de Judeus na Alemanha. “Seu antecessor personificava o ponto-cego em nossas instituições em relação ao extremismo de direita, que Thomas Haldenwang qualifica como o maior perigo para a democracia.”
Haldenwang disse que começou a perceber a gravidade do problema durante a crise de refugiados de 2015-16, quando era vice-presidente da agência. Cristão devoto e membro do Partido Conservador Alemão, ele tinha apoiado a decisão da então chanceler, Angela Merkel, de permitir a entrada de mais de um milhão de refugiados. Ele apoiou Merkel mesmo quando diretores da Polícia Federal, da inteligência estrangeira e do Ministério do Interior afirmavam que a posição dela colocava em risco a segurança nacional.
Em uma campanha de sua igreja, o retrato de Haldenwang aparecia ao lado de um verso do Evangelho Segundo Lucas: “Sê piedoso, assim como teu Pai é piedoso”.
Um perverso movimento anti-imigração com tons antissemitas se assentou, eventualmente propelindo o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha, ou AfD, ao Parlamento. Foi a primeira vez que um partido desse campo conquistou presença parlamentar desde os nazistas. Haldenwang ficou alarmado.
“Foi um divisor de águas”, recordou-se. “A partir daquele momento, ficou claro para mim que tínhamos de conter isso.”
Quando assumiu a direção da agência de inteligência doméstica, Haldenwang não perdeu tempo. Em sua gestão, dúzias de atores em um ambiente de extrema direita em expansão conhecido como “nova direita” — um instituto de estudos, uma revista, uma startup de crowdfunding e outros — foram categorizados como extremistas e colocados sob vigilância. Depois que a Alemanha sofreu três ataques terroristas mortíferos, incluindo o primeiro assassinato de um político desde o nazismo, o escrutínio se intensificou.
No movimento mais impressionante, Haldenwang colocou o próprio AfD sob vigilância formal, em um dos passos mais dramáticos de uma democracia ocidental na história em se proteger de forças de extrema direita. O partido recorreu, mas perdeu. Em março, a corte constitucional de Colônia confirmou a constatação da agência de inteligência de “atividades anticonstitucionais dentro do AfD”.
Haldenwang afirmou que as forças antidemocráticas na Alemanha tentam subverter a democracia cooptando seus valores mais acalentados: a bandeira, a Constituição e até locais simbólicos, como o Castelo de Hambach.
Quase um século antes da Alemanha estabelecer pela primeira vez uma república democrática, 30 mil manifestantes marcharam sobre a colina do castelo exigindo direitos civis. Mais recentemente o castelo virou o lugar preferido da extrema direita. Em 2018, o AfD organizou uma reunião de alto nível por lá.
Anteriormente este ano, manifestantes de extrema direita envolvidos em bandeiras alemãs bloquearam a entrada do castelo e berraram com um descendente de sobreviventes do Holocausto que estava prestando informações em um memorial local sobre o nazismo.
Ainda assim, mesmo enquanto a agência de Haldenwang permanece em alerta elevado após a operação nacional deste mês contra o grupo acusado de conspirar para derrubar o governo, sua confiança na democracia defensiva da Alemanha segue inabalada. Haldenwang vê duas maneiras de considerar as operações policiais. “Uma é colocar o foco nas ameaças muito reais à nossa democracia”, afirmou ele. “A outra é celebrar nossas instituições e serviços de segurança por seu sucesso em derrotar essas ameaças.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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