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Análise|O maior desafio da Argentina é derrotar sua própria história

Não é a inflação nem algum político morto

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Por Brian Winter*

Ao longo da minha vida, eu provavelmente passei, sem exagero, pelo menos mil horas em Buenos Aires tomando café e ouvindo pessoas discorrerem sobre suas teorias próprias a respeito de como a Argentina se perdeu.

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Durante essas conversas, ouvi amigos e políticos culpando variadamente: Juan Perón, Eva Perón, Isabel Perón ou o Juan Perón velho (menos iluminado com o passar dos anos, alguns insistem); os antiperonistas, os “gorilas” ou os milicos; os mercados, os sindicatos ou fazendeiros; o neoliberalismo, o comunismo, o fascismo ou o capitalismo; Néstor e Cristina Kirchner, Cristina mas não Néstor, os antikirchneristas ou os fundos abutres; e o Governo Mundial, o Foro de São Paulo, os serviços de inteligência cubanos, os serviços de inteligência dos Estados Unidos ou o Consenso de Washington. E esta lista é apenas parcial.

Eventualmente cheguei à conclusão que a culpa é disso tudo e de nada disso. Na verdade, o maior desafio da Argentina hoje é provavelmente sua própria história.

Um boneco representando o presidente argentino Javier Milei é exibido, enquanto membros do sindicato dos trabalhadores do estado (ATE) protestam contra cortes e demissões do governo, em Buenos Aires, em 5 de abril Foto: Agustin Marcarian/Reuters

Para explicar: quando cheguei a Buenos Aires como repórter, em 2000, o país estava afundado em outra de suas crises — a pior já registrada, de fato. Ao longo dos quatro anos seguintes, eu testemunharia o maior calote em uma dívida soberana na história, uma desvalorização de 70% na moeda e uma agitação social que fez o país ter cinco presidentes diferentes em apenas duas semanas.

Achei isso tudo evidentemente chocante, mas poucos argentinos pareciam realmente tão surpresos, naquele ponto. Afinal, a narrativa já estava bem estabelecida: tratava-se de um país que estava em um lamentável declínio há… bem, a quantidade exata de anos também era uma questão muito política. Afirmar que os problemas começaram em 1930, 1946, 1955, 1976 ou 1989 era mais revelador politicamente do que anunciar sua filiação partidária. A única coisa com a qual todos concordavam era que a Argentina, um dos países mais ricos do mundos até a década de 1930 (uma frase que deve ser repetida laboriosamente em todas essas conversas ou discursos políticos, ao que parece), tinha se perdido havia muito.

Passei anos pesquisando em livros de história, tentando sinceramente constatar quem estava certo. Não faltaram violências horripilantes e traições. Logo tudo começou a sangrar ao mesmo tempo. Imaginei — e não desejo ofender ninguém com essa comparação, dada a política atual — se a Argentina não se parece um pouco com o Oriente Médio; que a dúvida sobre quem começou e quem era o culpado principal não era mais a questão mais importante e talvez fosse impossível resolvê-la. O que importava agora era a própria luta e a maneira que ela havia levado os argentinos a despedaçar a coisa linda, mas delicada, que eles tiveram no passado. O que eu estava testemunhando no início dos anos 2000, por mais dramático que fosse, parecia não a crise em si, mas suas consequências.

De fato, a desgraça da Argentina, singular na história da economia moderna, produziu sua própria lógica autoconcretizada. As pessoas tendem a acreditar que o passado foi um paraíso, os dias de hoje são infernais e o futuro será ainda pior. Esse pessimismo confunde formuladores de políticas; um ministro da Economia chegou a colocar a culpa da crise em uma “depressão do estado de espírito”. Mas esse comportamento não era irracional, muito pelo contrário. Todos que nasceram na Argentina nos cem anos recentes testemunharam estagnação e declínio em suas vidas. No primeiro sinal de problemas, eles param de investir e sacam dinheiro dos bancos e o colocam dentro de colchões ou em contas no exterior. Há uma razão para os argentinos terem estimados US$ 246 bilhões depositados fora do país — um montante maior que a metade do PIB de seu país. Infelizmente, com o tempo os pessimistas quase sempre se provaram corretos.

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Hoje, Javier Milei é o mais novo político a prometer romper com esse ciclo aparentemente interminável. “Nós estamos virando a página deste longo e triste declínio na Argentina (…) enterrando décadas de fracassos”, prometeu ele em seu discurso de posse, em dezembro. Mas apesar de toda novidade que Milei oferece — o cabelo, os cachorros — ele é mais comum do que alguns podem perceber. Seu chamado para que os argentinos façam sacrifícios agora, em troca de tempos melhores depois — “Nós podemos reverter cem anos de declínio da noite para o dia” — parece as garantias de Carlos Menem, nos anos 90, afirmando que “Estamos mal, mas vamos bem”, conforme já notaram alguns comentaristas argentinos. A agenda de Milei de cortes de gastos e terapia de choque recorda o chamado Rodrigazo, de 1975, sob Isabel Perón, a “cirurgia sem anestesia” de Menem ou os esforços mais tímidos de Mauricio Macri em meados da década de 2010. Acreditar que esses planos fracassaram por causa do equívoco em sua ideologia subjacente ou por que não foram colocados em prática até sua conclusão adequada não é a questão central. O importante é que eles fracassaram, e Milei tem de lutar com essa história.

Um manifestante usa sinalizadores de fumaça do lado de fora Casa Rosada durante protesto em 5 de abril  Foto: Agustin Marcarian/Reuters

Isso dialoga com um desafio adicional, que tem atormentado todos os liberais argentinos há meio século. Milei afirma que o principal problema da Argentina hoje é fiscal, que o longo declínio do país o levou a gastar habitualmente mais do que tem, e então o país financia esse gasto por meio de empréstimos ou, quando os recursos externos de financiamento se esgotam, como ocorre inevitavelmente, imprimindo dinheiro — o que explica a inflação argentina registrar atualmente mais de 270%. Quase todos os principais economistas concordam e afirmam que a única solução é austeridade. Mas no curto prazo isso só aprofunda a negatividade que prevalece — faz os salários caírem e aumenta o desemprego; faz os pessimistas dizerem, “Ah não, aqui vamos nós outra vez”. A paciência se esgota e as pessoas tomam as ruas, porque a história as ensinou que a contrapartida prometida não virá — ou pelo menos não durará. Foi esse ponto no ciclo que Fernando de la Rúa não conseguiu superar na época em que vivi na Argentina. É o ponto com o qual Milei tem de, alguma maneira, acertar as contas agora.

Ele é capaz disso? Javier Milei é realmente o líder que se sairá bem onde outros fracassaram e superará quase um século de profecias autocumpridas? Apesar de ainda ser muito cedo, ele desempenhou melhor do que alguns esperavam. Milei avançou com mudanças na economia simultaneamente, ao que parece, mantendo a maioria de sua popularidade. Isso pode apontar para uma contradição. A base de Milei é jovem e aparenta, por qualquer razão que seja, se interessar menos em história do que gerações anteriores de argentinos. Ao mesmo tempo, entre os presidentes argentinos cuja trajetória acompanhei em minha vida, Milei é o único que soa como a maioria das pessoas que passei mil horas ouvindo em cafés. Economista, Milei claramente se deleita com referências a conceitos teóricos em seus discursos, assim como a capítulos obscuros da história, que alimentam tantas conversas nas confeitarias de belle époque de Buenos Aires. Somente o tempo dirá se conhecer a história o torna mais propenso a ser prisioneiro dela ou, de alguma forma, derrotá-la./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Análise por Brian Winter*

É editor-chefe da Americas Quarterly e analista experiente de política latino-americana, com mais de 20 anos acompanhando as idas e vindas da região.

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