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O papel dos Estados Unidos nas eleições da Venezuela

O próprio futuro da democracia no país sul-americano dependerá em grande parte de como o governo americano responderá ao resultado da votação de 28 de julho

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Por Rafael Ioris (Interesse Nacional)

O dia 28 de julho promete ser importante na Venezuela, um país que tem atraído interesse e preocupação na região e no mundo todo há algum tempo. Será nessa data que essa importante nação latino-americana realizará uma eleição presidencial histórica. Muitos acreditam ser a oportunidade final para os venezuelanos iniciarem um caminho de reconciliação nacional muito necessário, que poderia fornecer os meios para o apaziguamento político, a normalidade econômica e um curso de desenvolvimento mais sustentado.

A Venezuela é um país com cerca de 30 milhões de habitantes que controla algumas das maiores reservas globais de petróleo. A sociedade venezuelana vem enfrentando desafios socioeconômicos e políticos complexos há mais de uma década. E a própria possibilidade de enfrentar esses desafios depende centralmente da capacidade de realizar uma votação verdadeiramente inclusiva e sem interferência estrangeira. Isso, por outro lado, depende diretamente da maneira como o governo dos Estados Unidos se comportará ao longo do caminho que levará a essa data potencialmente histórica, bem como da maneira como responderá aos resultados da eleição. Há muito em jogo para a Venezuela, bem como para a América Latina e até mesmo para o mundo em geral.

Apoiadores exibem bandeira da Venezuela em comício de Nicolás Maduro.  Foto: Juan Barreto/AFP

O longo caminho rumo a uma eleição histórica

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As dificuldades políticas da Venezuela não são novas. Na verdade, apesar de ter sido vista na década de 1970 como um caso de sucesso econômico e político que talvez pudesse servir de modelo para toda a região, a Venezuela passou por uma série de crises de dívida externa na década de 1980, o que serviu de justificativa para uma série de reformas neoliberais que destruíram os renomados programas de bem-estar social do país.

Esse processo gerou um descontentamento generalizado e o fim do próprio pacto político (Pacto de Punto Fijo), que havia permitido a inclusão econômica e a democracia política nas décadas anteriores. De modo geral, essas experiências abriram caminho para a entrada de forças populistas no cenário político. Em especial, o ex-comandante militar Hugo Chávez emergiu como a figura política mais importante das últimas duas décadas.

Chávez foi eleito pela primeira vez em 1998 com uma ambiciosa agenda de reformas sociais que, desde então, reestruturou a política do país ao longo de uma profunda divisão entre esquerda socialista e direita radical. Em 2002, ele sofreu um golpe que aprofundou a fratura política no país.

Inicialmente, o governo dos EUA apoiou o golpe, mas, depois que ele foi rapidamente revertido, procurou diminuir a escalada da situação, inclusive apoiando a iniciativa do presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, de criar o Grupo de Amigos da Venezuela, o que ajudou a evitar que a situação crítica na nação vizinha se deteriorasse em alguma forma de conflito civil violento.

O grupo – integrado por Brasil, Chile, México, Portugal, Espanha e EUA – foi, de fato, fundamental para garantir alguma medida de diálogo entre o presidente Chávez e a oposição. Desde então, o presidente do Brasil continuou a desempenhar um papel importante para ajudar a promover o diálogo e a reconciliação na Venezuela. Recentemente, Lula, que está de volta ao poder no Brasil, pediu ao sucessor escolhido a dedo por Chávez, Nicolás Maduro, que realize eleições justas neste ano, como o único caminho para começar a lidar com a crise de longa data que o país ainda enfrenta.

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Uma eleição decisiva, capaz de reunir os dois lados da sociedade venezuelana profundamente polarizada, é esperada e desejada há muito tempo. Por um lado, em 2018, a maior parte da oposição reclamou quando Maduro foi reeleito pela primeira vez, levando a uma situação em que alguns países e até mesmo organizações regionais, como a Organização dos Estados Americanos, viram em Juan Guaidó, o presidente da Assembleia Nacional, como o presidente legítimo, embora Maduro tenha sido empossado em janeiro de 2019.

Em março de 2020, os Estados Unidos propuseram um governo de transição que excluiria ambos os candidatos à Presidência, apesar de as sanções internacionais contra as empresas venezuelanas – estabelecidas já em 2005 e reforçadas em 2019 – continuarem em vigor. Essas sanções incluem a proibição de mais de 150 empresas venezuelanas de fazer negócios com os EUA, a União Europeia e vários outros países. Sanções semelhantes foram impostas a atuais e ex-funcionários do governo, membros das forças militares e de segurança e indivíduos privados acusados de envolvimento em abusos de direitos humanos, corrupção, degradação do Estado de Direito e repressão à democracia.

Em resposta às sanções, incluindo o congelamento de ativos no exterior, em dezembro de 2022, três dos quatro principais partidos políticos da oposição propuseram um plano para dissolver o governo e criar uma comissão de cinco membros para administrar os ativos estrangeiros e planejar uma nova eleição presidencial programada para julho de 2024 para escolher quem governaria o país pelos próximos seis anos, a partir de janeiro de 2025. Essa proposta foi rejeitada pelo governo de Maduro, e a possibilidade de realizar uma votação mais inclusiva e potencialmente consequente só se tornou possível com o chamado Acordo de Barbados.

Oficialmente conhecido como Acordo Parcial sobre a Promoção dos Direitos Políticos e Garantias Eleitorais para Todos, esse documento histórico foi assinado pelo governo de Maduro e pela oposição venezuelana, organizada sob a Plataforma de União Democrática (Plataforma Unitaria Democrática) em outubro de 2023, em Bridgetown, Barbados, abrindo caminho para finalmente realizar o que ainda se espera que sejam eleições notavelmente justas no país no final deste mês.

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Os Estados Unidos e a União Europeia comemoraram o acordo e começaram a aliviar algumas das sanções aos setores de petróleo, gás e ouro da Venezuela, alertando que essas decisões poderiam ser facilmente revertidas caso o acordo fracassasse.

O presidente Nicolás Maduro está concorrendo como titular para um possível terceiro mandato, enquanto o ex-diplomata Edmundo González Urrutia está representando a Plataforma Unitária, a principal aliança política da oposição. Outros candidatos importantes da oposição venezuelana foram impedidos de participar da eleição durante sua campanha ou em eleições anteriores.

Impedida de concorrer, María Corina Machado faz campanha para Edmundo Gonzalez, candidato da oposição na Venezuela.  Foto: Gabriela Oraa/AFP

Em janeiro de 2024, por exemplo, a principal candidata, María Corina Machado, foi impedida de participar pelo governo venezuelano por supostos crimes políticos. Essa medida foi considerada pela oposição como uma violação dos direitos humanos e políticos e foi condenada por órgãos internacionais como a Organização dos Estados Americanos, a União Europeia, além de países como Canadá, Chile, Colômbia, Equador, França, Alemanha, México, Paraguai, Reino Unido, Estados Unidos e Uruguai. Apesar das desqualificações, ainda há outros sete candidatos na disputa pela presidência.

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O presidente Maduro recentemente convocou os venezuelanos que fugiram nos últimos anos – um número estimado em algo próximo a 7 milhões – a voltarem ao país para poderem votar. Ao mesmo tempo, porém, muitos dos exilados que tentaram se registrar para votar nos consulados venezuelanos no exterior encontraram grandes desafios burocráticos para que seus nomes fossem incluídos nas listas de votação – presumivelmente porque pelo menos um bom número deles está politicamente alinhado com os candidatos da oposição. De qualquer forma, não é certo que Maduro vença, já que cerca de 80% da população expressou o desejo de que a eleição ofereça uma oportunidade para que o país encontre um novo rumo, e as pesquisas recentes mostraram um forte favoritismo para González Urrutia.

Uma possibilidade real de mudança?

Para muitos, parece existir uma possibilidade real de que Maduro possa deixar o poder pacificamente. Ainda assim, embora todos os candidatos tenham assinado um acordo que os obriga a respeitar os resultados da disputa conforme anunciados pelas autoridades eleitorais, o presidente em exercício acusou a oposição de tentar manipular as próximas eleições a seu favor e, recentemente, decidiu rescindir um convite feito anteriormente à Comissão Europeia para que observadores eleitorais fossem enviados ao país em 28 de julho.

Esses acontecimentos não são um bom presságio e levaram alguns analistas a esperar que Maduro talvez até tente imitar o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, que proibiu e até prendeu candidatos da oposição nas eleições presidenciais de 2021 naquele país e, posteriormente, eliminou todos os vestígios de oposição política.

No entanto, antes que se possa concluir muito sobre esse ponto, é preciso destacar que a Venezuela tem um potencial democrático que falta à Nicarágua. Por um lado, a Venezuela tem líderes da oposição nacional atraentes, uma sociedade civil robusta, um eleitorado mobilizado e uma comunidade internacional que examina os acontecimentos eleitorais, De fato, há cenários em que as chances eleitorais de Maduro podem ser naturalmente melhoradas, mesmo sem recorrer a ações ilegítimas. O principal deles envolve o nível de participação dos eleitores.

Ou seja, assim como nas eleições anteriores, quando a oposição se absteve, se o comparecimento às urnas for baixo, espera-se que Maduro se saia melhor do que se a campanha de González Urrutia conseguir fazer com que o povo vote. Em uma situação em que o governo não consiga reduzir a participação da oposição, Maduro perca a eleição com folga e os apoiadores pró-regime se sintam compelidos a desconsiderar o veredicto do povo, a guerra legal poderá ser utilizada – uma tática que tem sido cada vez mais usada em toda a região nos últimos anos.

Mas mesmo no caso de uma vitória clara e esmagadora da oposição, ratificada pelos monitores eleitorais, muito do que viria a seguir dependeria de como os líderes militares venezuelanos se comportariam. Será que as forças armadas venezuelanas, apesar de serem uma instituição politizada que sustenta o regime, cumpririam ordens para reprimir violentamente os manifestantes de um presidente que acaba de ser amplamente rejeitado pela população?

Se a oposição de fato sair vitoriosa, os líderes de países amigos, como Lula, no Brasil, poderão desempenhar um papel fundamental para estimular Maduro a aceitar o resultado e iniciar um processo pacífico de transição. Parte disso também dependeria do fato de a nova liderança do país sinalizar aos líderes do regime atual que o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), hoje no poder, tem um papel a desempenhar na Venezuela pós-eleitoral.

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Nicolás Maduro acena para multidão em comício na Venezuela.  Foto: Cristian Hernandez/Associated Press

Felizmente, Machado e González parecem entender que, apesar da profunda impopularidade de Maduro hoje, o movimento iniciado por seu falecido antecessor, o ex-presidente Hugo Chávez, mantém um apoio significativo e que governar de forma eficaz exigirá a reconciliação entre os apoiadores e opositores do regime. Isso poderia até mesmo ser uma oportunidade para o PSUV se transformar em um partido social-democrata convencional, nos moldes de vários governos de esquerda nas Américas e na Europa.

Considerando tudo isso, embora vários outros atores nacionais e internacionais, públicos, privados e multilaterais possam contribuir para o renascimento democrático, a normalização econômica e a paz na Venezuela, nenhum outro ator pode ser tão influente nesse processo quanto o governo dos Estados Unidos, o árbitro historicamente mais importante do país e, embora em rápido declínio em termos de influência econômica, ainda é o hegemon geopolítico do hemisfério.

Possíveis reações e papel dos EUA

Conforme mencionado, os Estados Unidos impuseram sanções direcionadas a indivíduos e empresas venezuelanos associados ao regime já em 2005. Essas medidas foram ampliadas no governo de Donald Trump com a intenção de acelerar um caminho de transição naquele país. Infelizmente, o resultado dessa abordagem foi a produção de uma enorme crise humanitária que forçou milhões de venezuelanos a deixarem seu país, como também indicado anteriormente.

Potencialmente promissor, depois que o Acordo de Barbados foi implementado, o governo de Joe Biden ofereceu alívio nas sanções para incentivar o governo de Maduro a permitir um processo eleitoral livre e justo. No entanto, em abril passado, muitas das sanções foram novamente aplicadas, pois o governo dos EUA entendeu que Maduro não estava totalmente comprometido com o cumprimento das cláusulas estipuladas no Acordo.

Perguntado se poderia haver uma mudança na política dos EUA em relação à Venezuela após a eleição presidencial, um alto funcionário do governo dos EUA declarou que a resposta dependeria muito da forma como a eleição fosse conduzida. Por sua vez, o Departamento do Tesouro dos EUA disse que consideraria licenças específicas, caso a caso, para as empresas operarem na Venezuela após a revogação de uma licença ampla em abril.

Portanto, está claro que o curso final das relações entre a Venezuela e os EUA e, portanto, o próprio futuro da democracia na Venezuela dependerá em grande parte de como o governo dos Estados Unidos responderá ao resultado da votação de 28 de julho.

É interessante notar que, embora continue sendo uma relação muito desequilibrada, a Venezuela também tem algumas cartas a jogar nessa equação, além das exportações de petróleo para os EUA. De fato, grande parte do aumento da travessia de imigrantes no sul dos EUA nos últimos anos consistiu de venezuelanos exilados. Essa tendência já afetou a dinâmica política interna dos EUA e provavelmente influenciará ainda mais os debates políticos que antecedem a eleição presidencial americana em novembro.

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Imigrantes na fronteira do México com os Estados Unidos.  Foto: Ivan Pierre Aguirre/The New York Times

Isso quer dizer que pelo menos parte da motivação do governo Biden para apoiar o atual processo eleitoral na Venezuela derivou de sua necessidade de tentar encontrar uma maneira de reduzir as pressões na fronteira com o México. Esse movimento parcialmente automotivado pode servir como uma forte motivação para manter o curso ou, ao contrário, levar a frustrações crescentes que podem culminar em um possível não reconhecimento dos resultados, caso Maduro vença. Alguns especularam que a ideia de se recusar a reconhecer uma vitória do atual presidente venezuelano foi a intenção do plano dos EUA o tempo todo.

É difícil ser categórico sobre o assunto, e parece que ainda há espaço de manobra política para um caminho mais construtivo. De fato, vozes dentro dos EUA têm proposto consistentemente um curso equilibrado de resposta de Washington. Além de não exagerar na reimposição de sanções econômicas, parece haver níveis surpreendentes de concordância em um Congresso profundamente dividido de que a realização de eleições neste mês é o melhor caminho viável a seguir.

Se o resultado da votação de 28 de julho levará a um caminho em direção à reconciliação nacional ou a uma maior polarização dependerá, pelo menos em parte, de como as elites venezuelanas decidiram conduzir a eleição e aceitar seus resultados.

Ao mesmo tempo, é inegável que outros países podem certamente desempenhar um papel importante nesse processo. Isso é particularmente verdadeiro no caso dos Estados Unidos. Portanto, a maneira como o governo dos EUA escolherá se comportar nas próximas quatro semanas terá enormes consequências no futuro próximo da Venezuela, com impactos associados em toda a América Latina e até mesmo fora dela.

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