Opinião | O papel dos Estados Unidos no mundo é difícil - e acabou de ficar muito mais complicado

Administrar a política externa americana é tentar dialogar com Estados falidos, Estados-zumbi e homens enfurecidos

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Por Thomas Friedman (The New York Times)

Ultimamente tenho me surpreendido comigo mesmo iniciando falas a respeito dos desafios de política externa diante do próximo presidente da seguinte maneira: “Quero dialogar hoje com todos os pais e mães neste recinto: Mãe, pai, se seu filho ou filha chegar da faculdade e lhes disser, ‘Quero ser secretário de Estado americano algum dia’, lhe respondam: ‘Amor, você pode ser o que quiser, tudo bem, mas por favor não vire secretário de Estado. É o pior trabalho do mundo. Secretário de Educação, Agricultura, Comércio — sem problema. Mas prometa para a gente que você nunca se tornará secretário de Estado’”.

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A razão: a incumbência de administrar a política externa dos Estados Unidos é muito, muito mais difícil do que a maioria dos americanos jamais imaginaria. É quase uma impossibilidade numa era que você tem de lidar com superpotências, supercorporações, indivíduos e redes superempoderados, supertempestades, Estados superfalidos e superinteligências — tudo junto e misturado, criando um arranjo incrivelmente complexo de problemas a serem solucionados para conseguir fazer qualquer coisa.

Na Guerra Fria, uma diplomacia heroica sempre figurou no tabuleiro. Pensem em Henry Kissinger. Ele precisou de apenas três fichas de telefone, um avião e alguns meses para montar o vaivém diplomático que ergueu o histórico acordo que pôs fim às hostilidades da Guerra Árabe-Israelense de 1973 entre Israel, Egito e Síria. Com a primeira ficha ele ligou para o então presidente egípcio, Anwar Sadat; com a segunda, para a ex-primeira-ministra israelense Golda Meir; com a terceira ele ligou para o ex-presidente sírio Hafez Assad. E abracadabra: Egito, Síria e Israel firmaram seus primeiros acordos de paz desde os pactos do armistício de 1949.

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, participa de uma coletiva de imprensa em Paris, França  Foto: Michel Euler/AP

Kissinger lidava com países. Antony Blinken não teve tanta sorte ao se tornar o 71.º secretário de Estado americano, em 2021. Blinken — juntamente com o conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, e o diretor da CIA, Bill Burns — tem jogado bem um jogo difícil, mas compare o Oriente Médio com que eles têm de lidar ao de Kissinger. A região foi transformada — de uma região formada por sólidos Estados-nação para um lugar composto cada vez mais por Estados falidos, Estados-zumbi e homens enfurecidos, superempoderados e armados com foguetes de precisão.

Estou falando do Hamas em Gaza, do Hezbollah no Líbano e na Síria, dos houthis no Iêmen e das milícias xiitas no Iraque. Virtualmente para qualquer lado que Blinken, Sullivan e Burns olharam quando montaram sua diplomacia de vaivém após 7 de outubro de 2023, sua visão era dupla: o governo oficial do Líbano e a rede do Hezbollah; o governo oficial do Iêmen e a rede houthi; e o governo oficial do Iraque e as redes de milicianos xiitas controladas pelo Irã.

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Na Síria, há um governo central na função em Damasco e o restante do país é uma colcha de retalhos com zonas controladas pela Rússia, pelo Irã, pela Turquia, pelo Hezbollah e por forças americanas e curdas. O único contato possível com a rede do Hamas em Gaza é através de mediadores catarianos e egípcios. E até o Hamas se divide em um braço militar dentro de Gaza e um braço político no exterior.

Bombardeio israelense atinge posições do Hezbollah no sul do Líbano  Foto: Rabih Daher/AFP

Capacidade

Enquanto isso, o Hezbollah é a primeira entidade não estatal na história moderna a estabelecer uma relação de destruição mútua assegurada com um Estado-nação. Hoje o Hezbollah é crivelmente capaz de destruir o Aeroporto de Tel-Aviv com seus foguetes de precisão tanto quanto Israel tem capacidade de ameaçar destruir o Aeroporto de Beirute — o que não ocorria quando os israelenses e a milícia travaram a guerra de 2006.

O que também não existia naquela época era a capacidade tecnológica de Israel de matar ou ferir centenas de membros do Hezbollah numa única tacada, como fez na terça-feira usando ferramentas cibernéticas à la “Matrix” para detonar pagers de seus integrantes de uma só vez — ao mesmo tempo que diplomatas americanos trabalhavam febrilmente num cessar-fogo entre as partes. Então, exatamente no momento que os diplomatas americanos tentavam arrefecer o campo de batalha no espaço físico, a guerra irrompeu no ciberespaço.

Adeus abracadabra. Hoje, alinhar os interesses de todas essas entidades simultaneamente para assegurar um cessar-fogo em Gaza é tão fácil quanto agrupar cada cor de um cubo mágico em cada face do brinquedo.

Hezbollah realiza funeral para integrantes do grupo que morreram após as explosões de pagers e walkie-talkies na quarta-feira  Foto: Bilal Hussein/AP

Portanto, só uma coisa é clara para mim a respeito desta nova geopolítica que o nosso próximo presidente terá de encarar: nós precisamos de muitos aliados. Não é um trabalho para “os EUA a sós”. É um trabalho para “os EUA e seus amigos”.

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Por isso que minha escolha nesta eleição é também tão clara. Você prefere Donald Trump — cujas duas principais mensagens nos adesivos de carros para os nossos aliados são, basicamente, “Saia da minha propriedade” e “Paguem ou lhes entregarei para Putin” — como presidente ou Kamala Harris, que vem do governo Biden, cuja expressão mais marcante em política externa tem sido sua capacidade de construir alianças? Eis o maior legado de Joe Biden, um legado substancial.

Na região Ásia-Pacífico, o time de Biden usou alianças para contrabalançar a China militarmente e tecnologicamente. Na Europa, usaram-nas para se contrapor à invasão russa à Ucrânia. No Oriente Médio, em 13 de abril, para derrubar virtualmente todos os cerca de 300 drones e mísseis que o Irã disparou contra Israel. E na diplomacia de bastidores os enviados americanos reuniram nossos aliados para a complexa troca de prisioneiros multinacional que libertou, entre outros, o repórter Evan Gershkovich, do Wall Street Journal, que tinha sido encarcerado desonestamente por Vladimir Putin.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, participa de um evento no Clube Econômico de Washington  Foto: Win Mcnamee/AFP

Será esta a razão número 1 para Rússia, Irã e China quererem ver Trump eleito? Porque eles sabem que Trump é tão transacional quando lida com a Otan e outros aliados dos EUA que nunca seria capaz de reunir alianças sustentáveis contra eles.

Não tenha dúvida: o mundo no qual nossos próximos presidente e secretário de Estado terão de liderar é mais desafiador do que qualquer período anterior à 2.ª Guerra Mundial. É por isso que tenho achado tão útil estar lendo neste momento o livro que Michael Mandelbaum, acaba de publicar, intitulado “The Titans of the Twentieth Century: How They Made History and the History They Made” (Os titãs do século 20: Como eles fizeram história e a história que eles fizeram), um estudo sobre o impacto das trajetórias de Woodrow Wilson, Lênin, Adolf Hitler, Winston Churchill, Franklin Roosevelt, Mohandas Gandhi, David Ben-Gurion e Mao Tsé-tung.

Os capítulos sobre Churchill e Roosevelt são particularmente relevantes para o presente. Esses dois grandes líderes democráticos do século 20 reconheceram o que as ditaduras na Alemanha e no Japão eram realmente — e sabiam que elas representavam uma ameaça para o Reino Unido e os EUA. Mas Churchill e Roosevelt também entenderam que seus países não poderiam ter vencido a 2.ª Guerra Mundial sozinhos (nem sem a União Soviética). As alianças foram cruciais.

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“Manter alianças nunca é fácil”, disse-me Mandelbaum. “Churchill e FDR não eram tão próximos pessoalmente como com frequência demonstravam ser e tinham importantes discórdias políticas. Ambos entendiam, contudo, que precisavam um do outro — e faziam sua parceria funcionar. Manter e fortalecer as parcerias globais dos EUA diante de um mundo perigoso será um grande risco para o comandante em chefe”.

A vice-presidente dos Estados Unidos e candidata presidencial democrata, Kamala Harris, discursa no Comitê Hispânico do Congresso americano, em Washington, Estados Unidos  Foto: Jacquelyn Martin/AP

O que é especialmente verdadeiro num momento que não estamos tão preparados para o mundo em que entramos como precisaríamos estar. Rússia, Irã e China têm incrementado significativamente suas Forças Armadas há anos. Nós, em contraste, ficamos literalmente sem os armamentos necessários para lutar nesses três fronts simultaneamente. A única maneira de enfrentar esse problema em potencial não é abandonar uma ou mais dessas regiões, mas adicionar outras forças às nossas por meio de alianças — que foram, conforme sucedeu, cruciais para o nosso sucesso nas duas Guerras Mundiais e na Guerra Fria.

E também, acrescentou Mandelbaum, “um líder às vezes tem de pedir sacrifícios”. “Esse pedido só pode ser eficaz se o líder tiver reputação de credibilidade. E credibilidade, por sua vez, requer sinceridade”. Tanto Roosevelt quanto Churchill “comunicavam as escolhas diante de seus países claramente, honestamente e eloquentemente”.

Neste quesito, sou obrigado a admitir, Trump ainda pode ter certa vantagem. Ele é honesto a respeito de suas visões repulsivas. Sinalizou que para ele não é importante a Ucrânia vencer a guerra ou ser derrotada pela Rússia. E, desafortunadamente, quando perguntaram a Kamala no debate, “A senhora acredita ter alguma responsabilidade sobre a maneira que os EUA saíram do Afeganistão?”, que ocasionou as mortes de 13 militares americanos, ela desviou totalmente da questão. Um grande erro. Tenho certeza que eleitores indecisos notaram — não para o benefício de Kamala.

O ex-presidente dos Estados Unidos e candidato presidencial republicano, Donald Trump, participa de um comício em Uniondale, Nova York  Foto: Frank Franklin Ii/AP

A resposta dela deveria ter sido: “Fiquei devastada por causa dessas mortes. Nunca me esquecerei do momento que ouvi a notícia na Sala de Situação, porque tudo tem um limite. Mas, acima de tudo, nunca me esquecerei do que aprendi dessa experiência. Isso não se repetirá no meu governo”. Harris teria ganhado votos com uma resposta assim — de eleitores que se preocupam com a possibilidade de ela ser mais muito “de esquerda” do que deixa transparecer.

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Infelizmente, há outra razão para a China preferir Trump. Não só ele detesta imigração ilegal; como presidente ele reprimiu a imigração ilegal para satisfazer nativistas de direita. Isso é música para os ouvidos de Pequim, pois enfraquece a principal vantagem dos EUA sobre a China: nossa capacidade de atrair talentos de todo o planeta.

Por exemplo, quantos americanos sabem que a revolução da inteligência artificial liderada pelos EUA deu um gigantesco passo adiante em 2017, quando o Google lançou um dos algoritmos de tecnologia mais importantes já escritos? O Google criou o modelo de aprendizado profundo — o “transformador” — para processamento de linguagem que “deu início a uma era inteiramente nova de inteligência artificial: a ascensão das IAs generativas”, como Bard e ChatGPT, conforme noticiou o Financial Times.

Segundo o FT, esse algoritmo foi escrito por uma equipe de oito pesquisadores da Google AI, em Mountain View, Califórnia: Ashish Vaswani, Noam Shazeer, Jakob Uszkoreit, Illia Polosukhin e Llion Jones, “assim como Aidan Gomez, um estagiário que estudava na Universidade de Toronto, e Niki Parmar, de Pune, no oeste da Índia, que era recém-formada em mestrado e compunha a equipe de Uszkoreit. O oitavo autor foi Lukasz Kaiser, que também atuava como acadêmico do Centro Nacional para Pesquisa Científica, na França”.

Sua “diversidade educacional, profissional e geográfica — de origens variadas, como Ucrânia, Índia, Alemanha, Polônia, Reino Unido, Canadá e EUA — tornou-os singulares”, escreveu o FT. E também foi “‘absolutamente essencial para esse trabalho acontecer’, afirma Uszkoreit, que cresceu entre EUA e Alemanha”.

Tenho certeza que Harris é apta para a função de comandante em chefe. Mais franqueza de sua parte, porém, para mostrar que tem o que é necessário para enfrentar os desafios mais impossíveis de política externa e contrariar sua base progressista se preciso, convenceria mais eleitores indecisos de que ela tem o que é necessário para enfrentar Putin.

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Quanto a Trump, ele é forte e equivocado em relação aos dois maiores problemas de política externa: alianças e migrações. Sua opção-padrão — EUA a sós — é uma prescrição para EUA fracos, isolados, vulneráveis e em declínio. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por Thomas Friedman

É ganhador do Pullitzer e colunista do NYT. Especialista em relações internacionais, escreveu 'De Beirute a Jerusalém'

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