‘O partido se acostumou com a violência’

Historiador húngaro acredita que massacre associado ao regime comunista  decorreu de influências internas e externas

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Foto do author Marcelo Godoy

O húngaro Tamás Krausz viveu os anos da estagnação, declínio e implosão do socialismo no Leste europeu e o fim da União Soviética. Historiador, ele crítica o uso desenfreado da violência pelo partido e pelos líderes comunistas e afirma que o problema não era só Stalin, mas os "muitos Stalins" queexistiram e "impulsionaram o Stalin principal para a cova escura do terror da ditadura pessoal". 

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100 anos da Revolução Russa: um olhar sobre o 'século soviético'

Para muitos historiadores, a chegada dos bolcheviques ao poder foi um golpe de Estado. O que a pesquisa nos arquivos soviéticos e os documentos e outras fontes revelam sobre a tomada do poder pelos bolcheviques?

Os documentos e fontes - em particular - falam do que dizem os documentos históricos de todas as outras grandes revoluções. Ou seja, todas essas revoluções encarnam em si golpes, atos armados de tomada de poder. Ao mesmo tempo, no princípio, o golpe é apenas um episódio na história da revolução. Mas as forças opostas da revolução eram firmes e convictas. O poder do governo provisório desmoronou sob pressão popular sem conflitos armados sérios. Lenin e os bolcheviques nunca negaram os fatos do golpe, e eram orgulhosos dessas ações. Novos documentos e fontes mostram povoados de província em muitas regiões - que operários e camponeses já antes de outubro começaram a se organizar de arma na mão. Ocuparam em primeiro lugar não as ruas, mas os locais de trabalho. A auto-organização operária e dos soldados-camponeses era parte integrante da revolução russa contra o capital e o poder estatal. Nos documentos também se vê que o destino da revolução dependeu muito do nível cultural do povo. Com base no analfabetismo, não é possível esperar uma revolução "de veludo" (referência à queda pacífica do regime comunista na Checoslováquia, em 1989) e, portanto, as forças opositoras atuaram em nível igualmente bárbaro: ajustes de contas de ambos os lados, um elemento de motim, Desordem vermelha (livro do historiador russo Vladimir Buldakov) e a contra-revolução da guarda branca. O ajuste de contas de classe pertence à via principal da história da revolução russa, a guerra civil.

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'Muitos 'Stalins' existiram e eles impulsionaram Stalin ao terror', diz o historiador húngaro Tamás Krausz Foto:

O historiador Alexander Rabinovitch diz que o partido bolchevique convivia em 1917 com grandes divergências internas. Quais as circunstâncias levaram ao fim disso? O que significou para a revolução o fechamento da Assembleia Constituinte, em 1918?

Diversos motivos... A tomada do poder, a autodefesa da Revolução, a luta contra os inimigos organizados, a responsabilidade perante as massas revolucionárias, uniram todas as tendências dos bolcheviques, que puderam ser convencidas de que Lenin estava certo quanto à possibilidade de vitória da revolução russa. Sua autoridade se tornou uma força unificadora. A dissolução da Assembleia Constituinte mostrou que os bolcheviques entendiam que uma reunião que não aceitava o poder soviético e os decretos de outubro da revolução se tornaria um baluarte da contrarrevolução. Rosa Luxemburgo (revolucionária e teórica marxista) disse que, nesse fato, manifestou-se uma das contradições mais importantes do desenvolvimento histórico da Revolução Russa. Mas, depois se esclareceu que a alternativa real ao poder soviético (na forma de ditadura do Partido Comunista) era a ditadura contra-revolucionária dos oficiais e generais. Na Rússia, não havia burguesia democrática, sem ela a democracia burguesa era apenas um sonho utópico dos liberais, que depois, de armas na mão, lutaram contra o Exército Vermelho do lado dos oficiais brancos.

Em seu livro Reconstruindo Lenin, o senhor relata que os bolcheviques não souberam impor limites à violência e aos métodos ditatoriais. Quais as consequências disso para o partido e a revolução?

A violência teve uma influência muito forte no partido. Simplesmente "acostumaram-se" a que os problemas se resolvessem pela força, com métodos "da guarda vermelha". Os métodos militares eram "normais" na guerra civil, mas depois começaram a ser empregados também uns contra os outros, sem falar em operários e camponeses amotinados. Nenhum romance soviético esclareceu esses métodos e suas consequências. O analfabetismo também era fonte de violência. Falando simbolicamente, era preciso coagir - afinal, todas as questões não eram colocadas na vida, mas na morte. Posteriormente, o poder stalinista mitificou essa "tradição" como heroísmo, ousadia na ação política. A revolução arrefeceu. Em vez de auto-organização, coação burocrática... As premissas históricas desse processo são claras, é claro que não se pode "desistorizar" o processo histórico, e explicar tudo pela má vontade de Stalin.

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Soldados do Exército Vermelho em 1917, depois da Revolução bolchevique Foto: Acervo/Estadão

A autocracia de Lenin levou necessariamente à brutal e impiedosa ditadura de Stalin?

Eu não falaria em autocracia de Lenin. Ele determinou corretamente o caráter da vida política do país: a ditadura do Partido Comunista. Ditadura pessoal houve sob Stalin. Foi um outro fenômeno histórico, outro do ponto de vista da história social, do ponto de vista da história das ideias, etc. Claro que há premissas históricas e tradições de gestão política da Rússia em comum. A estrutura básica de desenvolvimento estava historicamente determinada, mas havia alternativas diante de Stalin no campo das decisões políticas concretas em muitos aspectos. Por exemplo, o "Grande Terror" não era indispensável, não havia necessidade histórica.

Quando a Revolução Russa começou e quando terminou? Por quê?

Essa também é uma das questões mais complexas. No sentido amplo do termo, a revolução começou em 1905, quando o povo se rebelou contra o czarismo, e terminou como o "Termidor soviético" de 1933-34 (referência ao golpe conservador de 9 Termidor - 27 de julho de 1794 -, que derrubou o governo de Maximilien Robespierre, encerrando o período jacobino da Revolução Francesa), quando a revolução derrotou todos os inimigos de classe e os fundamentos do novo sistema, o socialismo de Estado, foram assentados na base da propriedade estatal. No sentido estrito, a revolução começou em fevereiro de 1917 e terminou quando "terminou a campanha em nosso Oceano Pacífico", e foram removidos todos os obstáculos para a formação da União Soviética e a implantação do regime soviético. As Forças Armadas hostis internas e externas foram destruídas.

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Tropas russas na frenta da Duma, a Câmara russa, em 1917 Foto: Acervo/Estadão

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O historiador Oleg Khlevniuk disse que o Grande Terror foi também uma reação de Stalin contra a cultura partidária da direção colegiada, que se opunha ao seu poder pessoal. Em que proporção Stalin foi o "coveiro da revolução" ou foi 'a natural consequência do regime soviético?

Khlevniuk, por um lado, está obviamente certo, pelo outro é melhor sublinhar que a questão não é só Stalin, mas, como o célebre filósofo marxista húngaro György Lukács formulou o problema, que "muitos Stalins" existiram, e eles também impulsionaram o Stalin principal para a cova escura do terror da ditadura pessoal. Passara o perigo da restauração capitalista, era preciso baixar o nível do terror, em vez de aprofundá-lo. Mas ouso dizer que o "coveiro da revolução" foi feito principalmente pela história, ele é produto não apenas da história soviética, mas surgiu antes de tudo de traços específicos do processo histórico russo, da ausência de premissas socioeconômicas e civilizacionais para o socialismo. Como disse Lenin, o "derjimorda" (palavra russa que designa alguém com tendências policialiescas) estabelecido historicamente, ou, como Trotski, o primeiro representante do novo fenômeno social, o burocrata soviético, o "apparatchik" do partido, revelou-se imbatível na luta pelo poder e pela conservação do poder.

Acreditar na violência como forma de resolver problemas socais, econômicos e políticos quotidianos foi outra causa para o Grande Terror. Em qual proporção a violência da guerra civil permaneceu e influenciou a Era Stalin?

Eu falaria em três níveis de violência herdados pela história soviética. 1) Tipicamente, até 1905, o castigo corporal era um meio legal de manter nas mãos a população, especialmente a população camponesa das províncias. 2) A herança violenta do colonialismo ocidental com campos de concentração, a violência do imperialismo, sob a forma da 1.a Guerra. 3) A guerra civil, cujos métodos surgiram até no "Grande Terror". Mas dizer que os russos estão mais imersos e degradados pela violência que as nações ocidentais é uma mentira. As formas, os meios da violência são diferentes.

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O candidato Checo à presidência Vaclav Havel acena para apoiadores, em dezembro de 1989; naquele mesmo ano, a 'revolução de veludo' marcou a queda pacífica do regime comunista Foto: REUTERS/Petar Kujundzic

O líder soviético Bukharin disse que Stalin e seu entorno viam uma larga parte da população como gente culpada, sob suspeitaou potencialmente suspeita. Todos haviam sido atingidos de alguma maneira pelos atos da direção soviética e a direção sabia disso. Então, seria uma boa ideia fazer um expurgo para eliminar uma potencial quinta coluna, dado o perigo de uma guerra estourar. Qual a importância do medo de uma guerra, do isolamento da União Soviética e dos sentimentos paranóicos de Stalin contra os estrangeiros para explicar as ações do Grande Terror?

O Grande Terror, além de motivos psicológicos, explica-se por motivos sócio-históricos, como por exemplo os interesses dos aparatos de poder central e locais, que defendiam seus privilégios e posições sociais. Um elemento importante desse processo é a luta de diferentes aparatos por poder e recursos orçamentários. O historiador americano Arch Gettyanalisou magnificamente toda essa problemática. Pessoalmente, antes e depois da guerra, Stalin temia especialmente agentes secretos estrangeiros e seus agentes locais. Claro que eles existiam, mas ele exagerou a importância desses fenômenos.

O Gulag era um grande empreendimento econômico. Nesse sentido, como o uso de condenados em projetos econômicos e trabalho forçado era importante para o sistema soviético? O setor livre era eficiente para fornecer uma alternativa viável à economia da NKVD?

Sem dúvida havia ramos para os quais era difícil encontrar força de trabalho. Por exemplo, escavar ouro e outros metais não-ferrosos e produzir madeira na tundra e na região norte. Porém, depois da guerra, esse trabalho forçado não era efetivo e, portanto, era ainda mais nocivo moralmente. O Gulag, do ponto de vista econômico, participou da indústria da defesa, o que pode se chamar de trabalho importante e heróico. Chalámov, como um clássico, como poeta e escritor, conta muito sobre o Gulag. Ocorre frequentemente de exagerarem a importância econômica do Gulag no desenvolvimento econômico soviético.

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Mikhail Gorbachev desembarca em Moscou, em 21 de agosto de 1991, apóstentativa de golpe contra ele; episódio, porém, contribuiu para o colapso da União Soviética Foto: Acervo/Estadão

Qual a consequência para o sistema soviético da morte de centenas de milhares de pessoas no Gulag?

Aqui notarei uma consequência que frequentemente é esquecida. Quando reunimos os motivos do malogro da União Soviética, do sistema de socialismo de Estado, é obrigatório assinalar entre eles a morte em massa de pessoas sem culpa nenhuma nos anos 1930... Sua memória é um fardo imenso para os que guardam lembranças positivas da tradição socialista-comunista do desenvolvimento soviético, da revolução até a desintegração da URSS.

A teoria totalitária é a mais comum interpretação no ocidente sobre o regime soviético. Quais os principais problemas com essa interpretação sobre o regime e a sociedade soviéticos?

Diversas "teorias" do totalitarismo constituem ideologias não científicas, anticomunistas - frequentemente propaganda estatal, como por exemplo conosco, na Hungria, onde essa ideologia se tornou propaganda estatal. A ideologia do totalitarismo por origem remete ao começo da Guerra Fria. A função dessa "teoria" é muito simples. O conceito de totalitarismo, por indícios formais, identifica o comunismo com o fascismo, o nazismo, tenta transferir a história do socialismo para a história do fascismo, dizendo que a URSS e a Alemanha nazista são dois tipos de socialismo. Jogando a teoria de formas sociais, a "teoria" do totalitarismo manipula de forma primitiva, fazendo de conta que a Alemanha nazista não era capitalista. Esse teorema, no final da linha, justifica por toda parte a restauração do capitalismo nos antigos países socialistas, com seus novos regimes autoritários.

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Por que o Degelo de Khrushev e a Glasnost/Perestroika de Gorbachev falharam em reformar o regime?

Porque essas reformas de Gorbachev estavam voltadas para a manutenção dos privilégios da casta burocrática, dos estratos com estímulos capitalistas de mercado que, no final das contas, levaram à restauração do capitalismo. Khrushev ainda não capitalizou o país com reformas confusas (elas não estavam ligadas umas às outras), nem abriu a porta para a autonomia da sociedade, da qual se falou na parte teórica do programa do PC da URSS em 1961, no XXII Congresso. Claro que nem Khrushev nem Gorbachev pensavam em socialização, em democratização da propriedade estatal, em controle das empresas pelos trabalhadores. O próprio Gorbachev ajudou o processo de privatização da propriedade do Estado, ajudou uma parte da "nomenklatura" a se tornar os novos capitalistas, os oligarcas. A propriedade socialista estatal virou propriedade privada. Sua responsabilidade em todos os momentos é clara, como o papel de Lenin na aniquilação da propriedade privada capitalista.

O que sobreviveu da revolução na sociedade e na Rússia de hoje? Qual o significado dela para os russos hoje?

Os estratos superiores da sociedade, na forma de "ocidentalistas" e nacionalistas, e o próprio governo, odeiam a revolução por seu caráter anticapitalista. Querem eliminar a memória positiva da revolução na sociedade, querem inserira memória da revolução em uma narrativa de violência. Outros respeitam as tendências antifeudais, "modernizadoras" da revolução, que liquidou privilégios feudais e libertou muitos países do colonialismo. Muitos respeitam, na memória da revolução, a independência nacional do país e o "nivelamento", o conteúdo social, o ensino gratuito, etc. E há gente, não sei em que quantidade, que preserva os valores da revolução, formulados, por exemplo, no livro de Lenin O Estado e a Revolução. Lá o comunismo figura como uma sociedade autônoma. Nesse sentido da palavra, o socialismo não existiu, mas existirá. Mas hoje a maioria simplesmente vê na revolução o nascimento da União Soviética, uma potência mundial. Mas esse "quadro" da revolução não é estável, a mentalidade das pessoas muda no espelho do desenvolvimento histórico. / TRADUÇÃO DE IRINEU FRANCO PERPÉTUO

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