Quando Emmanuel Macron enfrentou no segundo turno a rival de extrema direita Marine Le Pen, em 2017, o chamado dela para que seu país seguisse o Reino Unido deixando a União Europeia estava afinado com os tempos populistas. Mas ainda assim fracassou em conquistar eleitores preocupados a respeito do caos que se seguiria.
Um Brexit francês está fora do cardápio desta vez, o que fez Le Pen parecer mais palatável. Mas o que ela está propondo em seu lugar é uma UE esvaziada por dentro, por uma França que segue os passos do húngaro Viktor Orbán, rompendo a cooperação com a Alemanha e a união em relação à Rússia. Enquanto Le Pen e Macron debatem antes da votação do domingo, os riscos são menos extremos do que antes, mas o Ocidente ainda tem motivos para observar — e se preocupar.
Na visão de mundo de Le Pen, a Europa serve a dois propósitos: de saco de pancadas simbólico para ela se diferenciar do “globalista” Macron — daí a conversa barata a respeito de tirar as bandeiras da UE dos prédios públicos; e também como uma válvula de escape vital para cortes de gastos. Ela promete que, se vencer, reduzirá a contribuição da França ao orçamento da UE, idealmente, em cerca de 5 bilhões de euros (US$ 5,4 bilhões). Esses fundos poderiam, então, ser destinados a extravagantes planos de gastos domésticos.
A realidade é que reabrir o orçamento 2021-2027 já aprovado encontraria pouco respaldo. Em vez de liderar em estilo Margaret Thatcher, batendo o punho contra a mesa para exigir de volta o dinheiro da França, Le Pen provavelmente isolaria o país e o envolveria num conflito permanente. Com uma aspirante à presidência afeita ainda a afrontar o estado de direito da UE, dar tratamento especial a produtos franceses e restaurar controles de fronteiras nacionais, a França poderá se tornar uma garota-propaganda por “menos Europa” — ameaçando se tornar “nada de Europa” se Le Pen não conseguir o que quer.
Em relação à ambição de Le Pen de construir uma aliança de nações com pensamento parecido para reaver o poder de Bruxelas, qual país entre os outros 26 integrantes da UE sucumbiria aos seus encantos coercitivos? Certamente não os Estados-membros do sul. Orbán, que é alvo de Bruxelas por desrespeitar o estado de direito, certamente apreciaria uma apoiadora sincera ao seu estilo iliberal na mais alta instância europeia. Mas até mesmo Orbán pode se frustrar com a perspectiva de um buraco de 5 bilhões de euros nas contas da UE, ou com a França obrigando o mercado comum europeu a pender a seu favor.
Sem dúvida, uma vitória de Le Pen é atualmente o resultado menos provável. Estrategistas do Citigroup Inc. colocam em menos de 10% suas chances de vencer a disputa pela presidência e obter maioria no Parlamento — e a calmaria no mercado financeiro reflete isso.
Ainda assim, a disputa está mais apertada do que em 2017. A opinião pública francesa anda profundamente ambivalente a respeito do futuro da integração da UE, mesmo que haja pouco desejo de deixar o bloco. O risco de um “Frexit no armário”, segundo o qual as leis que sustentam o mercado comum não se aplicariam à segunda maior economia da UE, não deve ser negligenciado. Nem a possibilidade de um impasse institucional. A perspectiva de que isso aconteça num momento em que ocorre uma guerra bem na porta da Europa, quando as relações energéticas do país estão sendo transformadas, é particularmente sombria.
É possível imaginar Vladimir Putin regozijando a cada instante se o Eliseu for conquistado por Le Pen, cujo partido, segundo relatos, ainda paga um empréstimo tomado de uma empresa russa, pediu o fim das fazendas eólicas e criticou as sanções mais duras contra a Rússia. Sem mencionar o desejo declarado de Le Pen de retirar a França do comando integrado da Otan e renegociar as relações do país com os Estados Unidos, enfraquecendo o laço transatlântico que Putin tanto detesta.
Nesse cenário, a França continuaria a deter peso estratégico enquanto membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e único país da UE a possuir armas nucleares — mas direcionaria sua influência para novas alianças, rompendo a cooperação com a Alemanha a favor de uma parceria estratégica com a Rússia e uma tentativa de redefinir as relações com o Reino Unido pós-Brexit. Mas como os britânicos têm foco em estreitar os laços transatlânticos, é difícil imaginar sucesso nesse sentido.
A retórica de Le Pen claramente aspira à grandeza de De Gaulle durante a Guerra Fria. Mas o general reviraria no túmulo se visse a França dispensar sua aliada mais próxima no continente e âncora estratégica.
Nigel Farage, o animador original do Brexit, considera que uma vitória de Le Pen seria o “pior pesadelo” para Bruxelas. Ele não está errado. Ao contrário do Reino Unido, cuja morosa retirada finalmente estabeleceu uma data para o desenlace e ocasionou um incentivo para a Europa se unir, a luta por uma “França em primeiro lugar” dentro da UE seria similar a um acidente de carro em câmera-lenta.
O espírito do Frexit vai bem, obrigado. Macron tem pouco tempo para afrontá-lo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.