O preparo de elite dos instrutores brasileiros para missão no Congo

Tropa especial das Forças Armadas chega ao país no dia 20 para participar de operação

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Há certas noites sem lua em que é preciso entrar em um rio levando 30 quilos de equipamento e nadar 2 quilômetros evitando ruídos que não pareçam naturais. Um rio da Amazônia. Às vezes, a única ferramenta disponível é um grande facão de aço negro, ótimo para garantir a vida no mato – e para cortar a jugular do inimigo. Em silêncio. 

Centro de Instrução de Guerra na Selva é responsável por preparar militares brasileiros para missão Foto: Exército Brasileiro / Divulgação

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Eventualmente, a única fonte de proteína é a larva branca de um certo tipo de inseto. Tem gosto de amêndoa. O time de 13 guerreiros de selva que o Brasil vai mandar para dar treinamento de combate à tropa da missão da ONU na República Democrática do Congo, a Monusco, é assim, uma bem preparada tropa de especialistas. Todos eles embarcam no dia 20. O grupo esteve até o fim de maio em Manaus preparando o programa de instrução concluído, depois, no Rio. Os oficiais e sargentos sairão de sete cidades distribuídas por vários Estados. Seguirão em voos comerciais para Entebbe, em Uganda, onde é formalizada a incorporação dos militares que participam de operações da ONU na África

O início efetivo do trabalho começa logo em seguida, em Goma, no Congo, onde está a sede das forças da Monusco; cerca de 16,2 mil soldados comandados pelo general brasileiro Elias Rodrigues Martins Filho. O destino final é a cidade de Beni, no nordeste do país, centro de uma região marcada pela ação intensa de 100 a 200 milícias armadas e centro de uma grave epidemia do vírus Ebola – na semana passada o número de mortos entre as 1.412 pessoas atingidas pela doença passou de 900.

Os 13 especialistas foram formados no Centro de Instrução de Guerra na Selva, o Cigs, de Manaus. É a melhor escola do mundo nesse campo, disse o ex-secretário de Defesa dos Estados Unidos James Mattis, um general dos Marines americanos, veterano de campanhas no Oriente Médio e na Ásia. Mattis usou a referência para justificar o envio periódico ao Cigs de oficiais dos EUA.

O Centro não é exatamente um local sem tensões. Desde a criação, há 55 anos, passaram por lá 6.446 militares; 561 estrangeiros Foto: Exército Brasileiro / Divulgação

O Centro não é exatamente um local sem tensões. Desde a criação, há 55 anos, passaram por lá 6.446 militares; 561 estrangeiros. E com destaque, apenas duas mulheres, as sargentos Elisângela Ferreira Xavier e Lidiana Reinaldo da Costa, ambas da área de saúde do Exército. 

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Ambas foram submetidas aos mesmos procedimentos aplicados a todo o pessoal. Tiveram de raspar a cabeça e passaram pelas mesmas provas. Perderam o nome e ganharam uma sigla, ‘Guerra 50’ para Lidiana, ‘Guerra 51’ para Xavier. Tinham de cumprir tempo curto e seguir as rotinas sem exceção. Uma delas, Lidiana, em um dia de ensaio de deslocamento rápido, ficou menstruada minutos antes de embarcar no caminhão levando todo o peso do material, mais o fuzil calibre 7.62, uma faca e uma pistola. Correu para o alojamento, cronômetro rodando. Voltou a tempo, mas na última posição da fila, sob gritos de repreensão – tinha 150 segundos para estar a postos, chegou no limite. 

Depois de inscrita, Elisângela gastou seis meses cuidando do condicionamento físico para os testes de admissão. É uma etapa levada a sério – o Cigs mantém em sua página na web uma tabela calórica e uma orientação nutricional para os candidatos. O curso dura 12 semanas e é realizado duas vezes por ano. Cada turma tem em média 100 alunos divididos em equipes de 50, orientadas por 40 instrutores – 20 oficiais e 20 sargentos. 

O dia começa cedo na área de 1.152 km² onde é feita a formação em sete diferentes cenários. Tudo é reservado e além da face pública, evidenciada por um parque zoológico aberto a visitação e a programas comunitários, os detalhes são sigilosos.

Os guerreiros de selva pulam da cama de madrugada, às 4h50, tomam café da manhã e só vão dormir à meia-noite. O almoço com frequência é frio, comido em pé, com os 30 quilos de equipamento pesando nos ombros. 

Determinadas atividades exigem que cada um encontre na mata o seu alimento. As duas últimas atividades do dia são uma inspeção pessoal (higiene, uniforme) e os cuidados com as armas. O ciclo final compreende ensaios de operações em São Gabriel da Cachoeira e Tabatinga, no Amazonas. A turma estará bem perto de receber o facão, uma espécie de distinção de luta – a extremidade da empunhadura traz uma cabeça de onça. Há uma versão mais pesada, de combate, em aço carbono negro. É para evitar reflexos. Em cada leva, de 10 a 20 inscritos desistem. 

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Eles passam por disciplinas psicológicas, de confronto pessoal, sabem como evitar doenças e encontrar água; manipular explosivos, preparar emboscadas e lançar ataques furtivos; a conduzir operações em helicópteros e embarcações. 

Brasil enviaráoficiais e sargentos do Exército para atuarem na Missão das Nações Unidas na República Democratica do Congo. Os 13 especialistas foram formados no Centro de Instrução de Guerra na Selva, o Cigs, de Manaus Foto: Alberto Cesar Araújo / Estadão

No final, terão feito mais de mil disparos com precisão acima de 85%. Saberão que o curso terminou em uma cerimônia na qual serão cumprimentados com a saudação do Cigs, “Selva!”, e receberão a insígnia da “cara da onça”. A solenidade, fechada, é feita à noite. 

Elite de selva no núcleo do governo

Vários dos generais que compõem o circulo mais próximo do presidente Jair Bolsonaro são guerreiros de selva. O vice presidente, Hamilton Mourão, comandou um batalhão especializado em São Gabriel. Na semana passada, em viagem ao Amazonas para um evento empresarial, Mourão participou da festa anual que reúne em Manaus os veteranos da área.

De acordo com o Ministério das Relações Exteriores, o governo brasileiro considera fundamental, “em paralelo à atuação militar da Monusco”, que a comunidade internacional “continue promovendo a reconciliação nacional na República Democrática do Congo por meio do desarmamento, a desmobilização e a reintegração dos combatentes”. Em nota, o Itamaraty afirmou que considera “o fortalecimento das instituições e o desenvolvimento econômico, essenciais a fim de criar as condições para uma paz duradoura.

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Segundo o ex-secretário de Defesa dos Estados Unidos James Mattis, o Centro de Instrução de Guerra na Selva éa melhor escola do mundo nesse campo Foto: Alberto Cesar Araújo / Estadão

Desde 1949 o Brasil participou de 42 missões de paz da ONU, mobilizando 46 mil pessoas. Em abril, havia 262 militares e 11 policiais envolvidos em oito dessas ações, seis das quais na África: Sudão do Sul, República Centro-Africana, Saara Ocidental, República Democrática do Congo, Darfur e Abyei; mais um time especial na Guiné Bissau.

Além do ‘force-commander’, Elias Martins, estão na RDC outros sete oficiais. Os 13 instrutores designados para o Congo têm entre 30 e 45 anos. Já cumpriram missões semelhantes na Guiana Francesa, no Suriname, na Guiana e no Senegal. São fluentes em inglês. O objetivo do treinamento direto é a qualificação dos integrantes da Brigada de Intervenção da ONU em luta de selva. Na bagagem dos brasileiros a única arma será o facão-símbolo do Cigs. Os fuzis 5.56 mm, as pistolas 9mm, granadas e explosivos serão fornecidos pela Brigada, de uso padrão da tropa local.

O adversário é cruel. Os grupos radicais protagonizam uma complexa rebelião armada com várias vertentes – tribais, étnicas, religiosas – sob influência de organizações islâmicas fundamentalistas como o Boko Haram, com base na Nigéria, e o Estado Islâmico na Líbia, revigorado após o líder Abu Bakr al-Baghdadi ter decidido transferir oalto comando do movimento para os arredores da cidade de Sirte, no litoral do Mediterrâneo. O efetivo das Nações Unidas é alvo preferencial. No ano passado sete soldados da missão foram mortos em uma única emboscada na região de mata tropical  mais densa, em Ituri, a oeste de Beni.

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