Para um bloco com frequência visto como contrapeso à ordem internacional liderada pelo Ocidente, a história da origem do Brics é em certa medida desajeitada. Em 2001, o economista britânico Jim O’Neill, da megafirma americana Goldman Sachs, inventou o acrônimo “BRIC” — Brasil, Rússia, Índia e China — para dar conta do poder coletivo dessas grandes economias na arena mundial. Não importando suas diferenças em história, geografia e sistemas políticos, as quatro nações representavam mais de um terço da população mundial e uma porção crescente do PIB global.
O termo pegou, transformando-se de um jargão de marketing ocidental em um autêntico projeto geopolítico. A primeira cúpula BRIC envolvendo os quatro países foi organizada na Rússia em 2009. Em 2011, a África do Sul se tornou integrante plena também, adicionando o S ao acrônimo. Mas o Brics se atrapalhou na década passada. Suas economias têm desempenhado de maneira desigual, e seus Estados-membros ocasionalmente bateram de frente, com Índia e China confrontando-se violentamente ao longo de sua escarpada e contestada fronteira.
Em um mundo de miríades de blocos regionais e agrupamentos políticos, o Brics pareceu um dos mais quixotescos. Quais são seus interesses comuns? A que agenda eles servem? O peso da economia chinesa obscureceu dificuldades que afligem alguns Estados do Brics. A única realização tangível do bloco foi o lançamento de um braço internacional de desenvolvimento financeiro sediado em Xangai.
“Não fosse pela China — e pela Índia em certa medida — não haveria muita história do BRIC”, escreveu O’Neill em 2021. “Além de criar o Banco do Brics, hoje conhecido como Novo Banco de Desenvolvimento, é difícil ver o que o grupo fez além de se encontrar anualmente.”
A cúpula anual desta semana, organizada em Johannesburgo, poderá não passar de mais uma feira de negócios, mas, ao contrário dos eventos anteriores, transborda intrigas e narrativas interessantes. A guerra na Ucrânia encobrirá os trabalhos. O presidente russo, Vladimir Putin, perseguido por um mandado de prisão internacional do Tribunal Penal Internacional, é o único líder do Brics que não comparecerá (ele tem marcado um discurso virtual e será representado pessoalmente pelo ministro russo de Relações Exteriores, Sergei Lavrov). Grupos da sociedade civil, incluindo a representação sul-africana da Anistia Internacional, deverão protestar diante do local que sedia o evento pedindo o fim da invasão russa à Ucrânia e da repressão do Kremlin sobre dissidentes antiguerra dentro da Rússia.
As outras nações do Brics protestaram pouco ou não se manifestaram de nenhuma maneira em relação à decisão do Kremlin de partir para a guerra. China e Índia incrementaram suas compras da Rússia conforme as sanções ocidentais começaram a morder. O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, sugeriu que a culpa pelo conflito é ao menos em parte do Ocidente e ofereceu uma vaga proposta de ajuda para forjar uma trégua entre Kiev e Moscou. O governo sul-africano também se equivocou ao recusar-se a condenar diretamente o regime de Putin ao mesmo tempo em que lamenta os efeitos cascata da guerra sobre cadeias de fornecimento críticas para sociedades africanas.
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Em Johannesburgo, um grande tópico de conversa será a influência desproporcional do dólar americano sobre a economia global. Conversas sobre “desdolarização” ocorrem em profusão entre expoentes do Brics, mesmo que não figurem na agenda formal da cúpula. Alguns aventaram a joada criação de uma moeda rival apoiada pelo Brics para desafiar a supremacia das verdinhas. Mas a invenção de uma nova moeda do Brics é vertiginosamente ambiciosa — e provavelmente infactível — e a cúpula deverá colocar foco, em vez disso, em opções para expandir o uso de moedas locais no comércio entre os membros do bloco. Países atados ao dólar, como a Argentina, já começaram a usar a moeda chinesa em certas transações.
“Por que o Brasil precisa do dólar para fazer negócio com a China ou a Argentina? Nós podemos fazer negócios com as nossas moedas”, disse Lula a repórteres recentemente, antes de qualificar o Banco do Brics como um ator potencialmente mais justo na arena internacional do que instituições lideradas pelos EUA, como o Fundo Monetário Internacional. “O Banco do Brics pode ser mais eficaz e mais generoso do que o FMI”, afirmou ele. “O que equivale a dizer, o banco existe para salvar países, não afundá-los, o que, muitas vezes, é o que o FMI faz.”
Para Pequim, a cúpula do Brics possui contornos geopolíticos bem definidos. Ao longo do fim de semana, o presidente Joe Biden recebeu seus homólogos japonês e sul-coreano em Camp David, marcando o aprofundamento de uma aliança tríplice na vizinhança na China — o que um editorial da agência de notícias estatal chinesa Xinhua descreveu como uma “tentativa desesperada (dos EUA) de recuperar seu poder hegemônico”. Em resposta, o presidente chinês, Xi Jinping, realiza sua segunda viagem ao exterior este ano à África do Sul, onde ele promoverá o bloco do Brics — e o papel crítico da China dentro dele — como exemplo de uma ordem mundial diferente.
As autoridades chinesas gostam da ideia de expandir o bloco para um acrônimo muito mais desenxabido, com países como Indonésia, Nigéria, Argentina e Arábia Saudita batendo à porta. Líderes de mais de 60 países deverão comparecer à cúpula. Para a China, um bloco em expansão representaria um veículo para sua visão de mundo mais “inclusiva”. Falando dos pontos de interesse de Pequim, o embaixador chinês na África do Sul, Chen Xiaodong, qualificou o bloco como “importante plataforma para cooperação entre nações emergentes e em desenvolvimento” e “sustentáculo de equidade e justiça internacional”.
Outra autoridade chinesa, falando anonimamente ao Financial Times, disse que “se nós expandirmos o Brics até equiparar (o PIB do bloco) a uma fatia similar do PIB mundial do G-7, nossa voz coletiva ficará mais forte no planeta”.
O objetivo maior, mesmo enquanto a China enfrenta dificuldades em sua própria economia, parece claro: “Xi Jinping não está tentando superar os EUA na atual ordem internacional liberal dominada pelos americanos”, disse à CNN Steve Tsang, diretor do Instituto China da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. “Seu objetivo a longo prazo é transformar a ordem mundial num sistema sinocêntrico.”
Outros membros do Brics preferem não ser envolvidos em rivalidades geopolíticas entre blocos. “Ainda que alguns dos nossos críticos prefiram defender abertamente suas escolhas político-ideológicas, nós não seremos arrastados para uma disputa entre potências globais”, afirmou o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, em um discurso sobre o estado da nação ostensivamente direcionado aos países ocidentais da Otan. “Nós temos resistido à pressão de nos alinhar com qualquer outra potência global ou bloco influente de nações”.
O “não alinhamento” pode ter estado em voga durante a Guerra Fria em muitos países do Sul Global, mas é uma proposição mais delicada em uma era na qual a pegada político-econômica da China se expande constantemente no mundo em desenvolvimento. “Dados os objetivos do C no Brics, nem o B, o R, o I ou o S, nem nenhum outro país que já tenha expressado interesse em aderir, como a Indonésia, pode se entusiasmar verdadeiramente a respeito de se tornar vassalo de Pequim só para dar a Washington uma lição”, escreveu o colunista Andreas Kluth, da Bloomberg Opinion. “Esta é uma das razões que explicam por que o fórum tem dificuldades em projetar poder brando, quem dirá coercitivo.”
Outros analistas argumentam que não há motivo para duvidar da relevância do grupo. “Para o Brics continuar viável e surtir impacto crescente, não é necessário que seus membros principais sejam amigos, mas que percebam interesses em comum”, escreveu Sarang Shidore, diretor do programa de estudo do Sul Global do Instituto Quincy, de Washington. “Formar coalizão com Rússia e China dá aos Estados do Sul Global peso em suas negociações com o Ocidente liderado pelos EUA. E também ajuda a engendrar um mundo mais multipolar, um objetivo antigo das potências médias do Sul.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
* Ishaan Tharoor é colunista de relações exteriores do jornal americano The Washington Post
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