O que a Coreia do Norte ganha ao se aliar com a Rússia — e quais são os riscos

Enviar tropas para lutar contra a Ucrânia rendeu à Coreia do Norte dinheiro e influência diplomática muito necessários. Mas pode haver também custos ocultos

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Por Choe Sang-Hun (The New York Times)

Kim Jong-un, o líder da Coreia do Norte, fez sua aposta diplomática mais ousada ao fornecer cerca de 11.000 tropas e estoques de armas para a Rússia para apoiar sua guerra contra a Ucrânia.

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A implantação fornece ajuda estrangeira oportuna para os esforços de guerra da Rússia, com tropas norte-coreanas lutando ao lado das forças russas na região de Kursk para ajudá-las a retomar territórios perdidos para a Ucrânia. Na segunda feira, o major-general Pat Ryder, porta-voz do Pentágono, disse que os militares americanos tinham visto “indicações” de que um número não especificado de soldados norte-coreanos tinham sido mortos e feridos lá.

O envio das tropas traz uma série de benefícios para a Coreia do Norte, incluindo dinheiro muito necessário e influência diplomática. Kim está recebendo bilhões de dólares em alimentos, petróleo, dinheiro e sistemas de armas avançados da Rússia, que ajudarão seu regime a suportar sanções internacionais e atualizar suas forças armadas convencionais, dizem analistas.

Kim precisava desesperadamente de tal avanço.

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Kim Jong Un recebe Vladimir Putin em Pyongyang, reforçando cooperação militar entre Coreia do Norte e Rússia.  Foto: Vladimir SMIRNOV / POOL / AFP

Uma tripla onda de incidentes abalou seu regime dinástico na década mais recente. Primeiro, as sanções da ONU lideradas pelos Estados Unidos devastaram a economia da Coreia do Norte ao proibir todas as suas principais exportações, incluindo carvão, frutos do mar, têxteis e mão-de-obra, além de reduzir drasticamente suas importações de petróleo. Kim tentou suspender as sanções por meio de diplomacia direta com o ex-presidente Donald J. Trump. Mas as negociações fracassaram sem um acordo em 2019, manchando a imagem doméstica de Kim como um líder infalível. Então, a pandemia prejudicou ainda mais a economia do país.

A Coreia do Norte parecia mais isolada do que nunca quando viu oportunidades surgindo conforme a invasão da Ucrânia pelo presidente Vladimir V. Putin se arrastava. A Rússia estava usando tropas e munição, e a Coreia do Norte tinha muito de ambos a oferecer. Seu exército é uma das maiores forças armadas convencionais do mundo, com 1,3 milhão de membros. E manteve enormes estoques de projéteis de artilharia, foguetes e outras armas convencionais — muitas delas desatualizadas — bem como novos mísseis balísticos desenvolvidos sob o ambicioso programa de armamentos de Kim.

O namoro começou quando a Coreia do Norte convidou o então ministro da defesa da Rússia, Sergei Shoigu, para um grande desfile de armas em Pyongyang em julho do ano passado. As armas norte-coreanas começaram a fluir para a Rússia logo depois. Quando Putin convidou Kim para uma reunião de cúpula no Extremo Oriente russo em setembro do ano passado, a Rússia mostrou o que poderia oferecer à Coreia do Norte em troca, levando Kim para passeios em uma instalação de lançamento espacial, uma fábrica de aeronaves e um porto naval.

Em junho, Kim e Putin assinaram um tratado de defesa mútua e cooperação em Pyongyang. A Coreia do Norte começou a enviar tropas para a Rússia depois.

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A Coreia do Norte também forneceu à Rússia 20.000 contêineres de armas, incluindo milhões de projéteis de artilharia, mísseis balísticos recentemente desenvolvidos, sistemas de foguetes de lançamento múltiplo e obuses de longo alcance, disseram autoridades sul-coreanas.

Kim se encontrou com o novo ministro da defesa da Rússia, Andrei R. Belousov, em Pyongyang em 29 de novembro, prometendo continuar apoiando a Rússia e “expandir vigorosamente” os laços entre os dois países.

Essa reunião anunciou o envio de mais tropas e suprimentos de armas da Coreia do Norte, disse Yang Moo-jin, presidente da Universidade de Estudos Norte-Coreanos em Seul.

As exportações rápidas de armas para a Rússia estão dando vida à indústria de munições da Coreia do Norte. Kim pediu aumento da produção quando visitou fábricas de armas nos meses mais recentes e a fabricação em massa de drones de ataque. A Coreia do Norte também está expandindo uma fábrica de mísseis em um esforço aparente para produzir mais mísseis KN-23, que forneceu à Rússia para uso contra a Ucrânia, de acordo com pesquisadores de um centro de estudos estratégicos sediado nos EUA.

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A Rússia paga com petróleo, alimentos e modernização de armas

A Coreia do Norte ganhou até US$ 5,5 bilhões por meio de acordos de armas com a Rússia, segundo Olena Guseinova, pesquisadora da Universidade Hankuk de Estudos Estrangeiros em Seul. Em um relatório publicado em outubro, ela também estimou que a Coreia do Norte poderia arrecadar até US$ 572 milhões anualmente por meio do envio de tropas — uma quantia enorme para os padrões dos norte-coreanos. As exportações oficiais do país totalizaram US$ 330 milhões somente no ano passado.

Nem a Rússia nem a Coreia do Norte revelaram como Moscou estava pagando à Coreia do Norte.

Mas os petroleiros norte-coreanos têm trazido muito mais petróleo da Rússia do que o permitido pelas sanções da ONU, de acordo com uma análise de imagens de satélite publicada no mês passado pelo Open Source Center, do Reino Unido, e pela BBC.

No solo, os militares da Coreia do Norte também estão obtendo informações valiosas do campo de batalha pela primeira vez em décadas, incluindo inovações no uso de drones que estão mudando a guerra moderna. A guerra contra a Ucrânia está dando à Coreia do Norte sua primeira oportunidade de testar seus novos mísseis balísticos KN-23 e KN-24 contra sistemas de defesa aérea ocidentais em combate real. Seus técnicos viajaram com os mísseis para identificar as deficiências e coletar dados para trazer para casa, de acordo com autoridades na Coreia do Sul.

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Um medo em Seul é que, no futuro, Kim possa negociar a ajuda russa para dominar as tecnologias necessárias para mísseis nucleares capazes de atingir alvos no Pacífico.

“Não acho que eles tenham chegado ao estágio em que a Rússia forneceria tecnologias sensíveis e componentes nucleares e de mísseis”, disse Jang Seho, analista do Institute for National Security Strategy, sediado em Seul.

O novo fluxo de receitas e tecnologias de armas da Rússia protegerá a Coreia do Norte das sanções da ONU e encorajará as provocações de Kim em relação a Washington e seus aliados. Resta saber se o presidente eleito Trump buscará retomar sua diplomacia pessoal com Kim.

Imagem do ministério russo mostra disparo de foguete em Kursk, onde a Rússia empregou tropas da Coreia do Norte. Foto: Ministério da Defesa da Rússia/Associated Press

Quais são os riscos para Kim?

Mas a implantação também traz vários riscos para Kim.

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As forças especiais norte-coreanas têm lutado ao lado de paraquedistas e fuzileiros navais russos para ajudar a Rússia a retomar territórios perdidos para a Ucrânia em sua região de Kursk, disseram autoridades de inteligência sul-coreanas. Eles foram treinados para se infiltrar por mar e rio e através do terreno montanhoso da Coreia. Não estava claro o quão bem eles estavam preparados para uma guerra de atrito travada em trincheiras e planícies com artilharia e drones, disseram especialistas militares.

As autoridades sul-coreanas estão monitorando de perto como as armas e tropas do Norte se saem na guerra — com o potencial de deserções no campo de batalha — para obter informações a respeito do preparo de seus militares. Muitas das munições de artilharia norte-coreanas tinham sido fabricadas há décadas e se revelaram inúteis.

O esgotamento de seus suprimentos pode enfraquecer a Coreia do Norte em casa.

A Coreia do Norte já enviou tantas armas convencionais e munições para a Rússia que “o país não poderia lutar uma guerra na Coreia agora mesmo se quisesse”, disse Doo Jin-ho, analista sênior do Instituto Coreano de Análises de Defesa em Seul. “Essa pode ser a maior vulnerabilidade atual de Kim Jong-un.”

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Alguns analistas sul-coreanos duvidam que a colaboração entre Pyongyang e Moscou perdure. As duas economias têm tão pouco a oferecer uma à outra que a Rússia seria responsável por menos de 2% do comércio internacional da Coreia do Norte, além de acordos de armas, enquanto a China seria responsável por mais de 90%, de acordo com um relatório de pesquisadores do Instituto Coreano de Política Econômica Internacional.

Mas mesmo o comércio bilateral entre a Coreia do Norte e a China desacelerou para US$ 1,5 bilhão nos primeiros nove meses do ano, abaixo dos US$ 1,6 bilhão durante o mesmo período do ano passado.

Isso pode refletir outra aposta de Kim. A Coreia do Norte há muito tenta jogar Pequim contra Moscou, mas alguns analistas dizem que o aprofundamento dos laços militares da Coreia do Norte com a Rússia pode prejudicar suas relações com a China. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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