O ano de 2023 foi marcado por guerras na Europa e no Oriente Médio. Com o maior número de conflitos armados no planeta desde o fim da Guerra Fria, a tendência para 2024 é que tanto a guerra na Ucrânia e o conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas em 2024, sigam em curso, com seu destino misturado às eleições esperadas, principalmente, nos Estados Unidos.
Apesar de sinais de cansaço entre aliados ucranianos e poucos progressos na contraofensiva de Kiev, a luta para reconquistar o território ocupado pelos russos deve continuar de forma intensa, pelo menos até as eleições americanas, marcadas para novembro do ano que vem.
Em Israel, o objetivo do Exército do país segue sendo a destruição do grupo terrorista Hamas. A ofensiva terrestre israelense na Faixa de Gaza já deixou mais de 20 mil mortos no enclave palestino, segundo dados do ministério da Saúde de Gaza, que é controlado pelo Hamas. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já criticou publicamente as ações de Israel em Gaza e Washington pressiona Tel-Aviv para que o país inicie a próxima fase dos conflitos, com menos presença das forças em Gaza e operações mais cirúrgicas.
Política e conflito
“As guerras estão conectadas com as eleições”, aponta Vitélio Brustolin, pesquisador da Universidade de Harvard e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). “2024 será um ano histórico, com bilhões de pessoas afetadas pelas eleições, uma grande parte do PIB mundial. Se formos comparar 2024 com algum outro ano, podemos lembrar de 2016, que teve Donald Trump eleito nos EUA e a votação que tirou o Reino Unido da União Europeia, em um processo chamado de Brexit”.
Ucrânia
Os ucranianos desejam avançar enquanto há tempo em 2024 em sua tentativa de liberar todo o seu território da ocupação russa, segundo especialistas. A Ucrânia termina o ano de 2023 com dificuldades para obter financiamento militar e menos apoio entre os aliados europeus e nos Estados Unidos, principalmente dentro do Partido Republicano. No campo de batalha, a chamada contraofensiva de Kiev não deu os resultados desejados, apesar do amplo apoio militar do Ocidente.
As lideranças do Partido Democrata e do Partido Republicano já anunciaram que qualquer acordo envolvendo a aprovação de um pacote econômico para a Ucrânia será finalizado no ano que vem. O governo do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, tentou aprovar um grande pacote para Ucrânia e Israel, mas o Congresso americano não chegou a um acordo.
“Estou otimista que os líderes do Congresso vão conseguir trabalhar juntos para que a aprovação de um pacote econômico para a Ucrânia ocorra no curto prazo”, avalia o analista Raphael Cohen, especializado em assuntos políticos e militares, da Rand Corporation, uma think-thank americana.
Apesar disso, Cohen destaca que este deve ser o último pacote aprovado para a Ucrânia até as próximas eleições americanas, marcadas para novembro de 2024, o que pode pressionar ainda mais as forças ucranianas a conseguirem melhores resultados no campo de batalha, antes do pleito na Casa Branca. “Ao longo do ano os políticos americanos vão entrando em clima de campanha e um novo projeto de ajuda a Kiev deve ficar em segundo plano”.
Nos últimos meses, os republicanos têm se mostrado mais reticentes no apoio à Ucrânia, principalmente desde as eleições de meio de mandato nos Estados Unidos em novembro do ano passado, quando o partido conseguiu um ligeiro controle da Câmara dos Deputados.
Na União Europeia, o apoio continua alto, apesar de atritos de Kiev com parceiros como a Polônia, que faz fronteira com a Ucrânia. Contudo, um pacote de 50 bilhões de euros para o país não foi aprovado pela União Europeia por conta de um veto da Hungria. O primeiro-ministro do país, Viktor Orban, é considerado um aliado do presidente da Rússia, Vladimir Putin.
“Putin acredita que neste momento as forças russas estão em um lugar melhor do que há um ano atrás, mas isso não significa uma vitória para a Rússia, que teve uma perda militar enorme e ainda viu a sua fronteira com a Otan aumentar”, disse Cohen, em referência a entrada da Finlândia na aliança militar, que rompeu a sua posição de neutralidade após o início da guerra na Ucrânia.
De acordo com Steven Pifer, ex-embaixador dos Estados Unidos na Ucrânia e analista do Instituto Brookings, a Ucrânia deve reforçar as defesas e se preparar para uma possível ofensiva russa. “2024 será um ano difícil porque o Ocidente não vai conseguir replicar a quantidade de projéteis de artilharia fornecidos em 2023, mas acredito que Kiev se preparar defensivamente no campo de batalha”.
Na avaliação de Pifer, os russos estão em uma posição mais favorável neste momento, mas com grande número de baixas no contingente. “Os ucranianos precisam recarregar munição, treinar mais soldados e quem sabe tentar uma nova contraofensiva no segundo semestre de 2024″.
Vitória para Zelenski
Uma vitória para o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, foi a decisão da UE de iniciar o processo de adesão da Ucrânia no bloco econômico.
Segundo o professor de relações internacionais da FGV e colunista do Estadão, Oliver Stuenkel, o processo de entrada da Ucrânia na UE pode transformar o bloco.
“Estes eventos sugerem uma tendência de ‘europeização’ do conflito entre Rússia e Ucrânia, com países europeus assumindo um papel cada vez mais importante no conflito, enquanto Joe Biden enfrenta uma campanha eleitoral acirrada contra Donald Trump, que defende reduzir o apoio militar a Kiev”, disse Stuenkel.
Com eleições marcadas para março do ano que vem, a realização ou não do pleito ucraniano pode impactar a maneira que o país é visto no Ocidente. Zelenski já declarou ser contra a realização de eleições no ano que vem durante a guerra, mas pode ser pressionado a aceitar um pleito em condições excepcionais. O país está sob lei marcial e teria que mudar a legislação para conseguir realizar eleições neste momento.
Campo de batalha
O final de ano foi intenso no campo de batalha para Ucrânia e Rússia. Na última sexta-feira, 29, 30 pessoas foram mortas e 60 ficaram feridas por conta de ataques russos a capital da Ucrânia, Kiev, e outras grandes cidades como Lviv e Kharkiv. Segundo o governo ucraniano, maternidades, escolas, shoppings e residências foram bombardeadas.
Já a cidade russa de Belgorod, que fica próxima da fronteira com a Ucrânia, foi atacada por um bombardeio que deixou mais de 20 mortos, o que fez com que o presidente russo, Vladimir Putin, apontasse que Moscou iria intensificar os ataques contra Kiev no mês de janeiro. Os ucranianos também intensificaram os ataques a região da Crimeia, que é ocupada pela Rússia desde 2014.
Israel
Em Israel, o discurso permanece o mesmo desde o início da guerra contra o grupo terrorista Hamas: o conflito só vai terminar quando o grupo terrorista for destruído.
Desde o dia 7 de outubro, quando terroristas do Hamas invadiram o território israelense e mataram 1.200 pessoas, além de terem sequestrado 240, as Forças de Defesa de Israel (FDI) tem atacado posições dentro da Faixa de Gaza, com bombardeios aéreos e a ofensiva por terra.
O apoio dos EUA à ofensiva israelense, que era unânime no começo da guerra, começou a diminuir em dezembro. Biden criticou o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, no dia 12 de dezembro, quando apontou que Tel-Aviv estava perdendo apoio da comunidade internacional em razão dos bombardeios em Gaza. Washington tem pressionado Israel a tomar mais cuidado com os civis palestinos em Gaza.
Tel-Aviv tem pedido para que os civis palestinos se desloquem desde o início do conflito. Com operações militares intensas no sul, as forças israelenses destacaram que os civis deveriam ir para Rafah, cidade próxima da fronteira do enclave palestino com o Egito. Oficiais americanos já indicaram que desejam que Israel entre em uma etapa menos incisiva dos conflitos a partir de janeiro, com planos mais cirúrgicos para ir atrás de membros do grupo terrorista Hamas e diminuir as mortes e o deslocamento de civis.
Para Cohen, da Rand Corporation, Israel deve concentrar as suas operações na região de Khan Yunis, no sul de Gaza, onde Tel-Aviv acredita que o líder do Hamas no enclave palestino, Yahya Sinwar, está escondido, assim como outros membros do alto escalão do grupo terrorista.
“Idealmente os israelenses esperam ter mais alguns meses de operação terrestre em Gaza para atingirem todos os objetivos”, aponta o analista. “De fato, o prazo americano para o fim desta fase da guerra é mais curto que o prazo israelense, mas os dois lados devem conversar e chegar a um acordo”. Cohen sinaliza que os americanos gostariam que a intensa ofensiva em Gaza terminasse em janeiro.
O analista militar indica que grande parte das forças israelenses devem sair do enclave palestino na próxima fase da guerra, com ataques mais direcionados e bombardeios aéreos contra alvos do grupo terrorista Hamas em Gaza.
Saiba mais
As forças israelenses também são acusadas de ataques fora dos perímetros da Faixa de Gaza. No dia 25 de dezembro, um outro ataque atribuído a Israel matou o general iraniano Seyed Razi Mousavi na Síria. Na terça-feira, 2, o número 2 do braço político do Hamas, Saleh al-Arouri, foi morto em um ataque de drone em Beirute, no Líbano, o que aumentou temores de uma escalada regional para a guerra. Israel não reivindicou o ataque, mas já havia prometido que iria “caçar” os membros do Hamas.
O chefe do Hezbollah, Hasan Nasrallah, disse em um discurso na quarta-feira, 3, que Israel receberia “uma resposta e punição” pelo ataque em território libanês. O discurso ocorreu no mesmo dia que uma dupla explosão deixou 84 mortos no sul do Irã onde uma multidão se reuniu para homenagear o quarto aniversário da morte do general Qasem Soleimani.
“Washington diz que os Estados Unidos e Israel não tiveram nada a ver com o atentado terrorista no Irã. Não se enganem. A responsabilidade por este crime recai nos regimes americano e sionista, e o terrorismo é apenas uma ferramenta”, declarou Mohammad Jamshidi, conselheiro do presidente iraniano Ebrahim Raisi.
Reféns
Um dos objetivos de Israel na ofensiva no enclave palestino é a libertação de mais de 130 reféns que continuam na Faixa de Gaza.
Desde que o Exército de Israel anunciou que acidentalmente matou 3 reféns que fugiram do cativeiro do Hamas, a opinião pública israelense e as famílias dos sequestrados passaram a pressionar mais o governo Netanyahu para que negocie uma nova trégua para a libertação de reféns.
“A morte dos reféns mostra uma conduta de combate preocupante do Exército israelense”, diz Leonardo Trevisan, professor de relações internacionais da ESPM-SP. Mesmo sem camisa e levantando uma bandeira branca, os reféns foram confundidos com terroristas do Hamas. “A pressão que uma conduta dessas proporciona pode fazer com que Israel volte a negociar um acordo com o Hamas para a libertação de sequestrados”.
Trevisan destaca também que o governo israelense está sendo pressionado por seus aliados a visualizar o futuro da Faixa de Gaza após a guerra, em uma realidade em que o grupo terrorista Hamas não controle o enclave palestino.
Enquanto os EUA querem que a Faixa de Gaza seja governada pela Autoridade Palestina, entidade de governo criada após os Acordos de Oslo e que controla partes da Cisjordânia, a administração Netanyahu está reticente em relação a esta opção, apontando para a necessidade de criar uma zona de segurança para os israelenses que vivem próximos da fronteira com o enclave palestino.
Novas guerras
Conflitos na África e na Ásia podem ganhar mais corpo em 2024, segundo o professor de relações internacionais da FGV, Oliver Stuenkel.
Stuenkel destaca que as eleições em Taiwan, marcadas para o dia 13 de janeiro, podem representar um aumento nos conflitos entre China e Taiwan. “Tudo indica que William Lai, um candidato anti-Pequim, deve ganhar e isso vai fazer com que a tensão aumente na região”. A China considera que Taiwan faz parte de seu território e tem realizado diversas manobras militares nas proximidades da ilha autônoma.
Stuenkel também destaca a guerra civil no Sudão e o conflito na República Democrática do Congo também podem escalar. “Estes dois conflitos também refletem a capacidade decrescente da comunidade internacional de promover estabilidade e lidar com os conflitos. Uma série de conflitos esquecidos pela opinião pública na região africana podem voltar à tona devido a crise migratória e a desertificação”.
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