Dois meses após o início da invasão da Ucrânia, um comandante do Exército russo sugeriu, em 22 de abril, que Moscou busca estabelecer um corredor no sul ucraniano até a Transnístria, uma república separatista pró-Rússia no leste da Moldávia.
“Controle sobre o sul da Ucrânia é uma outra escapatória para a Transnístria, onde também ocorre opressão contra população russófona”, afirmou Rustam Minnekaev, comandante em exercício do Distrito Militar Central da Rússia, de acordo com a agência de notícias russa Interfax.
O comentário surpreendeu alguns analistas, já que a Rússia tentou sem sucesso nas primeiras semanas da guerra avançar sobre o sudoeste ucraniano — área que os russos precisariam conquistar para alcançar a fronteira com a Transnístria e inclui cidades importantes como Odessa e Mikolaiv.
O envolvimento da região no conflito ganhou novos contornos nesta semana, depois que várias explosões atingiram uma central de rádio e instalações de segurança na Transnístria.
Os Estados Unidos afirmaram que estão monitorando os acontecimentos na Moldávia e o Ministério da Defesa da Ucrânia qualificou as explosões como uma “provocação planejada por parte de serviços especiais russos”.
O que é a Transnístria?
Espremida entre a Ucrânia e a Romênia fica a Moldávia, um país do Leste Europeu cujo território pertenceu anteriormente à Romênia. A Moldávia foi integrada à União Soviética em 1940. Cinco décadas depois, a queda da União Soviética desencadeou na Moldávia um conflito civil que estourou no início dos anos 90, entre a recém-independente República da Moldávia e separatistas da Transnístria que desejavam manter laços soviéticos.
A Transnístria, uma estreita faixa de território que se estende ao longo da fronteira entre a Moldávia e a Ucrânia, tem aproximadamente 500 mil habitantes. Nenhum país — nem mesmo a Rússia — reconhece a Transnístria como território independente. Mas a região funciona como uma nação distinta da Moldávia, sobre a qual as autoridades nacionais admitem não deter controle.
Militares da Rússia ficam estacionados na Transnístria há décadas como “tropas de paz” — estima-se atualmente que 1,5 mil soldados russos estejam na região atualmente. Moldávios fazem pouco da faixa de terra qualificando-a como um fim de mundo preso à era soviética, onde estátuas de Lênin continuam de pé, cartões de bancos internacionais não funcionam e uma empresa monopolista, chamada Sheriff, controla praticamente tudo.
Por que a Rússia pode estar interessada na Transnístria?
A ideia da Rússia buscar estabelecer uma ligação geográfica com a Transnístria está “no debate pelo menos desde os anos 90″, afirmou Anton Barbashin, analista político da revista online Riddle, especializada em Rússia.
A Rússia busca há muito tempo manter bolsões de influência no Leste Europeu. Moscou continua a dar apoio à Transnístria enviando gás natural gratuitamente para a região e outros benefícios financeiros, mantendo a república separatista funcional.
Minnekaev, o comandante russo, expressou o desejo de estabelecer uma ligação terrestre com a população russófona, repetindo uma justificativa que serviu para intervenções em outras ex-repúblicas soviéticas como a Geórgia, em 2008, e a Ucrânia, em 2014 e 2022.
Quando a Moldávia deu entrada em seu pedido de adesão à União Europeia, no início de março — uma semana após o início da invasão à Ucrânia —, líderes da Transnístria afirmaram não ter nenhuma intenção de seguir esse caminho e exigiram novamente a criação de “dois Estados independentes”.
Mas a região, em si, não tem tanto valor estratégico para Moscou, afirmou Barbashin. Enviar tropas para lá “cria mais problemas do que soluções” para a Rússia, provavelmente ocasionando mais sanções internacionais e destruindo a relação de Moscou com a Moldávia, que é constitucionalmente neutra e declarou que não pretende aderir à Otan.
Ainda assim, a guerra na vizinha Ucrânia e a realidade da presença militar russa em uma fatia da Moldávia deixa os moldávios inquietos e preocupados com a possibilidade das forças russas os atacarem em seguida. O governo ucraniano também alegou que as forças russas estacionadas na Transnístria poderiam ser usadas para atacar a Ucrânia.
Os comentários do comandante russo na sexta-feira elevaram a preocupação da comunidade internacional a respeito da vulnerabilidade da Moldávia.
Um avanço russo sobre a região é provável?
Não muito, afirmam analistas.
A Rússia reorientou seus esforços militares para assumir controle da região do Donbas, no leste ucraniano, após tentativas fracassadas de tomar Kiev, a capital, e regiões mais amplas da Ucrânia. O Exército russo sofreu baixas pesadas e reveses significativos nos campos de batalha durante sua ofensiva de dois meses, o que surpreendeu muitos observadores e expôs suas fraquezas.
“A conversa sobre a Transnístria não passa de boato”, afirmou Michael Kofman, especialista em Rússia do CNA, um centro de pesquisa e análise sem fins lucrativos de Arlington, Virgínia. “O Exército russo não tem capacidade para esse tipo de ofensiva. É muito provável que vire uma força exaurida após a ofensiva no Donbas.”
Kofman afirmou que a declaração de Minnekaev, o comandante russo, de que Moscou tem objetivo de tomar o controle do sul da Ucrânia não é novidade. “Eles tentaram exatamente isso na primeira fase”, afirmou ele.
As tentativas dos russos de avançar para além da cidade de Mikolaiv, no sul da Ucrânia, tiveram pouco progresso, e o controle de Kiev sobre o sudoeste da Ucrânia prevaleceu.
O ministro de Relações Exteriores da Moldávia, Nicu Popescu, afirmou em um evento organizado esta semana pelo German Marshall Fund, em Washington, que a situação na Transnístria está “mais ou menos calma” e que a Moldávia não percebeu sinais de atividade militar incomum por lá.
O parlamentar moldávio Mihai Popsoi afirmou que as autoridades de seu país não receberam nenhum dado de inteligência indicando que tropas russas poderiam se movimentar em direção à Transnístria.
“As informações em campo mostram basicamente que os combates no Donbas são a área crucial para monitoramento neste momento, e a Rússia certamente não possui capacidade de fazer isso ao mesmo tempo que tenta avançar sobre o sul da Ucrânia sem uma mobilização em grande escala”, afirmou Barbashin.
A declaração do comandante russo pode ter sido um comentário de improviso, acrescentou ele — e numa guerra, particularmente numa guerra travada pela Rússia, “devemos desconfiar de tudo”.
Ainda assim, políticos moldávios e de outros países da região estão levando a ameaça a sério, afirmou Popsoi. Ele especulou que, no mínimo, Moscou buscou intimidar a Moldávia e outros vizinhos.
“É impossível não levar a sério esse tipo de ameaça, e temos levado tudo a sério desde o início dessa guerra monstruosa”, afirmou ele. / NYT, TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.