MOSCOU - À medida em que o Kremlin concentra tropas nas proximidades da fronteira com a Ucrânia, o governo russo sinaliza uma convicção fundamental: a Rússia se importa mais com o destino de seu vizinho a sudoeste do que o Ocidente jamais se importará.
Em discursos, entrevistas e extensos artigos, o presidente Vladimir Putin e seus colaboradores mais próximos telegrafaram este ano uma fixação singular na ex-república soviética. A tese do Kremlin é que os ucranianos e os russos são “um só povo”, e que os vizinhos vivem sob um Estado falido controlado por forças ocidentais determinadas a dividir e conquistar o mundo pós-soviético.
Os ucranianos, que depuseram um presidente pró-Rússia em 2014 e têm se mostrado crescentemente a favor de estabelecer relações entre seu país e instituições ocidentais, em grande parte não concordariam com a tese. Mas a convicção de Putin é bem recebida entre muitos russos, que se veem ligados intimamente à Ucrânia por gerações, com laços linguísticos, culturais, econômicos, políticos e familiares. Agora, com um contingente estimado em 175 mil soldados a serem estacionados na fronteira com a Ucrânia até o início do próximo ano, numa manobra que autoridades ocidentais temem ser o prelúdio de uma invasão, séculos de história em comum pairam sobre os países.
A jogada de Putin pode ser um cálculo frio de coerção, apoiada por sinais de que a ameaça de guerra é real - uma maneira de forçar o presidente Joe Biden a reconhecer a esfera russa de influência no Leste Europeu. Putin afirmou em dias recentes que exigirá “garantias legais” de que a Ucrânia não se juntará à Otan nem abrigará em seu território mais forças ocidentais; e tem uma videoconferência marcada com Biden para esta terça-feira.
Mas para Putin - e muitos outros russos - o conflito de quase oito anos com a Ucrânia não trata simplesmente de geopolítica; trata de uma mágoa na psique nacional, de uma injustiça histórica a ser corrigida. Um de seus ex-conselheiros, Gleb Pavlovski, descreveu em uma entrevista a visão do Kremlin a respeito de Ucrânia como um “trauma embrulhado em outro trauma”: a dissolução da União Soviética aliada à separação de um país que os russos consideravam havia muito tempo uma extensão de seu território.
Para muitos ucranianos, o apelo de Putin para a história compartilhada entre os países não passa de uma tentativa vazia de se apropriar da herança ucraniana e justificar ambições territoriais.
“Eles já roubaram nosso passado”, afirmou Aliona Getmanchuk, diretora do Centro Nova Europa, um instituto de pesquisa e pensamento pró-Ocidente com base em Kiev. “Agora eles querem roubar nosso futuro.”
Após a revolução pró-Ocidente na Ucrânia, em 2014, a Rússia invadiu e posteriormente anexou a península ucraniana da Crimeia e fomentou uma guerra separatista ativa até hoje no leste ucraniano. Desde então, Putin tem buscado evitar uma aproximação da Ucrânia com o Ocidente - e tem expressado crescente insatisfação em relação aos Estados Unidos estarem treinando e ajudando a armar os militares ucranianos.
O uso de força militar para trazer a Ucrânia de volta ao domínio russo poderia prejudicar posições domésticas de Putin, sugerem pesquisas - razão para analistas russos estarem céticos em relação a Putin acionar uma invasão que provavelmente cobrará um preço terrível em termos de vidas ucranianas e russas. Mas a convicção de Putin de que russos e ucranianos estão divididos injustamente e artificialmente tem apoio amplo em seu país, incluindo de oponentes do presidente.
Enquanto outros conflitos no mundo pós-soviético antagonizaram grupos étnicos entre si, a querela entre Rússia e Ucrânia é mais complicada. A língua ucraniana é a língua oficial na Ucrânia, mas o russo - que é muito parecido - ainda é falado amplamente pela população.
Os russos com frequência consideram Kiev - a atual capital ucraniana, que já foi o epicentro da medieval Rússia de Kiev - como o local de nascimento de seu país. Famosos escritores de língua russa, como Nikolai Gogol e Mikhail Bulgakov, nasceram na Ucrânia, assim como o revolucionário comunista Leon Trotski e o líder soviético Leonid Brejnev. O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, passou a falar língua ucraniana em público, mas ficou famoso inicialmente como o comediante que viajava toda União Soviética apresentando-se em língua russa.
“Um dos problemas colossais empurrando-nos para o conflito é que a identidade russa não existe sem a identidade ucraniana”, afirmou Ilia Ponomarev, ex-membro do Parlamento russo que foi o único legislador a votar contra a anexação da Crimeia.
Ponomarev fugiu posteriormente para a Ucrânia, onde recebeu cidadania e continua a viver até hoje.
Milhões de russos e ucranianos têm parentes em ambos os países e são, em parte, descendentes das migrações ocorridas durante a era soviética, quando a Ucrânia era uma potência industrial. Por exemplo, Aleksei Navalni, o líder opositor russo preso este ano, passava verões em sua infância na Ucrânia, onde seu pai nasceu. Ainda que seja crítico da agressiva política externa de Putin, em 2014 Navalni afirmou discordar de ucranianos “para os quais é uma questão de princípio provar que somos povos diferentes”.
“Não vejo nenhuma diferença entre russos e ucranianos, absolutamente nenhuma diferença”, afirmou ele a uma rádio na época.
Emoções à parte, a ideia de uma Ucrânia alinhada com o Ocidente representar uma ameaça de segurança para a Rússia é amplamente comum nos círculos russos de política externa. Ivan Timofeev, diretor de programas do Conselho de Assuntos Internacionais, entidade financiada pelo governo russo, afirmou que a presença de tropas da Otan na Ucrânia alteraria drasticamente o equilíbrio militar, mesmo que a aliança já faça fronteira com a Rússia na região do Báltico e no Ártico.
“Se a Ucrânia também aderir à Otan, o teatro para uma potencial ação militar se amplia bastante”, afirmou Timofeev a respeito de uma possível expansão da Otan. “Quando mais extensa for a linha de frente, menos claridade haverá a respeito de onde poderá vir um ataque.”
Em um artigo publicado no mês passado pelo Valdai Club, um fórum online de discussão de política externa que mantém laços próximos o governo russo, Timofeev afirmou que uma invasão total da Rússia é altamente improvável, em parte porque poderia fomentar descontentamento doméstico. Mesmo que a Ucrânia seja invariavelmente uma prioridade maior para a Rússia do que para os EUA, observa ele, sanções e ajuda militar do Ocidente tornariam uma invasão russa imensamente custosa. Em vez de prenunciar uma guerra mais ampla, afirmou ele, a intensificação da presença militar russa na fronteira com a Ucrânia é destinada a sinalizar para o Ocidente o extremo descontentamento da Rússia com a crescente influência ocidental na Ucrânia.
“Mesmo que a reunião com a Crimeia tenha sido recebida com entusiasmo pelo público russo por muitas razões, uma grande guerra dificilmente teria esse apoio”, escreveu Timofeev.
Ainda assim, Putin aproveitou-se do peso emocional que muitos russos atribuem à Ucrânia para alcançar objetivos próprios, tanto na arena global quanto na política doméstica. Pavlovski, um antigo conselheiro do Kremlin até voltar-se contra Putin, em 2011, afirmou que a Ucrânia tornou-se agora um veículo para as ambições de Putin de ressuscitar o status da Rússia enquanto potência global. Em particular, isso resulta em negociações com os EUA - como têm se configurado nas semanas recentes, com a Rússia forçando Washington a negociar a respeito da Ucrânia num momento em que a movimentação de tropas russas fazem o Ocidente temer uma iminente invasão.
“A Ucrânia é um campo estratégico de manobras para levar a Rússia de volta ao diálogo estratégico”, afirmou Pavlovski. “Ele está interessado no nível global, não no regional.”
Domesticamente, a anexação da Crimeia, uma fulgurante península do Mar Negro, disparou a aprovação de Putin para perto de 90% em 2014. Este ano, o Kremlin intensificou seus ataques contra a liderança ucraniana pró-Ocidente apelando para a função da Ucrânia na identidade russa; Putin abriu um artigo publicado em julho a respeito dos motivos pelos quais ucranianos e russos são “um só povo" descrevendo sua atual divisão como “uma grande calamidade em comum”.
O Ocidente, escreveu ele, está tentando tornar a Ucrânia uma “cabeça de ponte contra a Rússia”, da mesma maneira que, alegou ele, os poloneses e os austríacos que tentaram afugentar os ucranianos séculos antes. Como evidências disso, Putin citou tendências que variaram entre as leis que promovem o uso da língua ucraniana dentro da Ucrânia e o aprofundamento da cooperação do país com forças militares ocidentais.
“Não seria nenhum exagero dizer que o curso da assimilação forçada, a formação de um Estado ucraniano etnicamente puro e agressivamente orientado contra contra a Rússia, é comparável em suas consequências ao uso de uma arma de destruição em massa contra nós”, escreveu Putin.
Essa narrativa está surtindo impacto. A proporção dos russos que afirmam ter uma visão negativa a respeito da Ucrânia cresceu para 49% em agosto, contra 31% em fevereiro, de acordo com pesquisas realizadas este ano pelo Centro Levada, um instituto independente com base em Moscou.
Na realidade, foram as políticas de Putin que fizeram os ucranianos voltar-se contra a Rússia em grandes números, afirmou Getmanchuk, a diretora do instituto de pesquisa e pensamento de Kiev. O apoio para a Ucrânia integrar a Otan subiu para 54% este ano no país, em comparação a 14% em 2012, de acordo com o Centro Razumkov, uma instituição de pesquisa de Kiev.
“Sem essa intenção, obviamente, ele contribuiu para o desenvolvimento da Ucrânia enquanto país”, afirmou ela. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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