Opinião|O que o conflito entre Israel, Hezbollah, Hamas e Irã realmente significa

Guerra está inserida na disputa geopolítica mundial entre Estados Unidos e eixo liderado pela Rússia, Irã e Coreia do Norte

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Por Thomas Friedman (The New York Times)

Para entender por que e como a devastadora investida de Israel contra o Hezbollah é uma ameaça tão retumbante mundialmente para o Irã, a Rússia, a Coreia do Norte e até para a China, nós temos de colocá-la no contexto da disputa mais ampla que substituiu a Guerra Fria enquanto o ordenamento das relações internacionais hoje em dia.

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Após a invasão do Hamas a Israel, em 7 de outubro, eu argumentei que nós não vivíamos mais a Guerra Fria nem o pós-Guerra Fria. Nós estávamos no pós-pós-Guerra Fria: uma disputa entre uma “coalizão da inclusão”, cumpridora de um objetivo específico: países decentes, nem todos democráticos, que percebem seu futuro melhor engendrado por uma aliança liderada pelos Estados Unidos estimulando o mundo a mais integração econômica, abertura e colaboração para lidar com desafios globais, como a mudança climática — versus uma “coalizão da resistência”, liderada por Rússia, Irã e Coreia do Norte: regimes brutais e autoritários que usam sua oposição ao mundo da inclusão liderado pelos EUA para justificar a militarização de suas sociedades e a imposição de um punho de ferro em relação ao poder.

A China tem transitado entre os dois campos porque sua economia depende do acesso à coalizão da inclusão, ao mesmo tempo que a liderança de seu governo compartilha de muitos instintos autoritários e interesses com a coalizão da resistência.

Imagem do dia 22 mostra fumaça em áreas do Líbano após explosões de Israel. Ataques no país se intensificaram e chegaram a áreas de Beirute Foto: Kawnat Haju/AFP

Nós temos de considerar as guerras na Ucrânia, em Gaza e no Líbano no contexto dessa disputa global. A Ucrânia estava tentando se juntar ao mundo da inclusão na Europa — buscando se livrar da esfera de influência da Rússia e aderir à União Europeia — e Israel e Arábia Saudita tentavam ampliar o mundo da inclusão no Oriente Médio normalizando suas relações.

A Rússia tentou impedir a Ucrânia de se juntar ao Ocidente (UE e Otan). E o Irã, o Hamas e o Hezbollah tentaram impedir Israel de se juntar ao Oriente (por meio dos laços com a Arábia Saudita). Porque se a Ucrânia aderisse à União Europeia a visão inclusiva de uma Europa “inteira e livre” estaria quase completa, e a cleptocracia de Vladimir Putin ficaria isolada quase completamente.

E se fosse permitido a Israel normalizar relações com a Arábia Saudita, isso não apenas expandiria vastamente a coalizão da inclusão nessa região — já ampliada pelos Acordos de Abraão, que criaram relações entre Israel e outros países árabes — mas isolaria quase completamente o Irã e seus inconsequentes aliados: o Hezbollah no Líbano, os houthis no Iêmen e as milícias xiitas pró-Irã no Iraque, grupos que têm transformados os países onde atuam em Estados falidos.

Na realidade é difícil exagerar a medida em que o Hezbollah e seu líder, Hasan Nasrallah, morto por um ataque de Israel na sexta-feira, eram detestados no Líbano e em muitas partes do mundo árabe sunita e cristão em razão da maneira que o grupo sequestrou o Líbano e o transformou em uma base do imperialismo do Irã.

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Eu conversei durante o fim de semana com Orit Perlov, que analisa as redes sociais árabes no Instituto de Estudos de Segurança Nacional de Israel. Ela relatou uma torrente de posts em redes sociais no Líbano e em todo o mundo árabe celebrando a derrocada do Hezbollah e instando o governo libanês a declarar um cessar-fogo unilateral para que o Exército do Líbano possa tomar do Hezbollah o controle do sul do país e acalmar a situação na fronteira. Os libaneses não querem que Beirute seja destruída como Gaza e estão verdadeiramente apavorados com a possibilidade de um retorno à guerra civil, explicou-me Perlov. Nasrallah já arrastou os libaneses para uma guerra com Israel que eles nunca desejaram, mas ordenada pelo Irã.

O que colabora para a fúria profunda decorrente da maneira que o Hezbollah se juntou com o ditador sírio, Bashar Assad, para esmagar o levante democrático por lá. É literalmente como se a Bruxa Malvada, do Mágico do Oz, tivesse morrido e agora todos estivessem agradecendo Dorothy (ou seja, Israel).

Mas há muito trabalho diplomático a ser feito para o fim de Nasrallah significar um futuro sustentavelmente melhor para libaneses, israelenses e palestinos.

O governo Biden-Harris tem construído uma rede de alianças para conceder peso estratégico para a singular coalizão da inclusão— que envolve Japão, Coreia, Filipinas e Austrália no Extremo Oriente, passando pela Índia e então por Arábia Saudita, Egito e Jordânia até chegar à União Europeia e à Otan. A pedra fundamental de todo o projeto era a normalização proposta pela equipe de Biden das relações entre Israel e Arábia Saudita, que os sauditas estão dispostos a concretizar desde que os israelenses concordem em abrir negociações com a Autoridade Palestina na Cisjordânia sobre uma solução de dois Estados.

Imagem mostra presidente dos EUA, Joe Biden, em coletiva na Casa Branca nesta segunda-feira, 30. EUA tem construído rede de alianças para se opor a países autoritários Foto: Susan Walsh/AP

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E aí vem o problema. Prestem bastante atenção no discurso do primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, à Assembleia Geral da ONU na sexta-feira. Bibi compreende muito bem a disputa entre as coalizões da “resistência” e da “inclusão” de que falo. De fato, essa disputa foi central em seu pronunciamento à ONU.

De que forma? Bibi mostrou dois mapas durante seu discurso, um intitulado “A Bênção” e outro, “A Maldição”. “A Maldição” mostrou Síria, Iraque e Irã em preto, como uma coalizão obstrutiva entre o Oriente Médio e a Europa. O segundo mapa, “A Bênção”, mostrava o Oriente Médio com Israel, Arábia Saudita, Egito e Sudão em verde e uma flecha vermelha de duas pontas atravessando-os como uma ponte que conecta o mundo da inclusão na Ásia com o mundo da inclusão na Europa.

Mas quem olhou atentamente para o mapa da “Maldição” de Bibi viu Israel sem fronteiras nem com Gaza nem com a Cisjordânia ocupada por Israel (como se os territórios já tivessem sido anexados — que é o objetivo do atual governo israelense).

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E aí está o problema. A história que Bibi quer contar ao mundo é que o Irã e seus aliados são o principal obstáculo para um mundo da inclusão que abranja Europa, Oriente Médio e Ásia-Pacífico.

Mas permitam-me discordar. A pedra fundamental dessa aliança é a normalização de relações entre sauditas e israelenses com base na reconciliação entre Israel e os palestinos moderados.

Israel seguir adiante neste momento e abrir um diálogo sobre dois Estados para dois povos com uma Autoridade Palestina reformada, que já aceitou o tratado de paz de Oslo, desferiria uma pancada diplomática definitiva que acompanharia e solidificaria o nocaute militar que Israel acaba de impingir ao Hezbollah e ao Hamas.

Imagem de 27 de setembro mostra o primeiro-ministro israelense Binyamin Netanyahu durante o discurso na Assembleia-Geral da ONU, em Nova York. Netanyahu levou dois cartazes para a tribuna, opondo Israel a Irã Foto: Richard Drew/AP

Isso isolaria totalmente as forças da “resistência” na região e lhes privaria de seu escudo mentiroso: que eles são os defensores da causa palestina. Nada desconcertaria mais o Irã, o Hamas, o Hezbollah, a Rússia e até a China.

Mas para fazer isso Netanyahu teria de assumir um risco político ainda maior do que acabou de assumir ao assassinar as lideranças do Hezbollah, também conhecido como “O Partido de Deus”.

Netanyahu teria de romper com o “Partido de Deus” — a coalizão de judeus messiânicos, supremacistas, extremistas de direita e colonos que desejam Israel controlando permanentemente todo o território entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo sem fronteiras internas — igualzinho ao mapa que Bibi mostrou à ONU. Essas facções mantêm Bibi no poder, então ele precisaria substituí-las por partidos centristas que, tenho certeza, colaborariam com ele nesse movimento.

Portanto, eis o grande desafio do momento: a disputa entre o mundo da inclusão e o mundo da resistência depende de muitos elementos, nenhum mais essencial — hoje — do que a disposição de Netanyahu em dar continuidade à sua pancada no “Partido de Deus” no Líbano desferindo uma pancada política similar no “Partido de Deus” em Israel. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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Opinião por Thomas Friedman

É ganhador do Pullitzer e colunista do NYT. Especialista em relações internacionais, escreveu 'De Beirute a Jerusalém'

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