Acusação de genocídio contra Putin precisa de provas robustas em tribunais; leia o artigo

Definição criada pelo jurista polonês Raphael Lemkin não é uma acusação meramente retórica, mas também jurídica

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Por Phillip Sandes*

THE NEW YORK TIMES - A acusação do presidente Joe Biden de que a Rússia está cometendo genocídio ressoou entre os que se indignam com as imagens de aparentes massacres em Bucha, Mariupol e outras partes da Ucrânia. “Seu orçamento familiar, sua capacidade de encher o tanque — nada disso deveria ser influenciado por um ditador que declara guerra e comete genocídio do outro lado do mundo”, declarou Biden, que posteriormente retificou suas declarações, reconhecendo a necessidade de mais evidências. “Deixaremos os juristas decidirem internacionalmente se o episódio se qualifica ou não como tal, mas certamente me parece ser o caso.”

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É compreensível que Biden tenha se expressado dessa forma; seu uso do termo “genocídio” foi, fundamentalmente, uma expressão de ultraje e repulsa. E ainda assim, não ficou claro se ele reconhece a distinção entre conceitos populares a respeito do significado da palavra — com frequência usada como sinônimo de massacres em massa — e sua definição jurídica mais restrita.

Pergunto-me também se foi uma escolha sábia de palavras. Ainda que haja evidência de retórica e atos genocidas — incluindo assassinatos e estupros — que possam refletir uma intenção genocida por parte da Rússia, o exercício das cortes internacionais nos aconselha a ser cautelosos e nos diz que será preciso muito mais para sustentar um caso.

A palavra “genocídio” foi inventada no contexto da 2.ª Guerra, pelo jurista polonês emigrado Raphael Lemkin — é um amalgama entre a palavra grega “genos” (“tribo”ou “raça”) e a palavra latina “cide” (“matança”). Sobrevivente da guerra, Lemkin afirmou que a ideia remonta ao seus tempos de estudante na faculdade de direito da cidade polonesa de Lwow (a atual Lviv, no oeste da Ucrânia, submetida recentemente a ataques da Rússia) e seria uma reação aos conflitos intergrupais, pretendendo criar uma categoria de crime sob o direito internacional para proteger grupos determinados. O termo apareceu pela primeira vez em novembro de 1944, em seu livro “Domínio do eixo” e no ano seguinte, em razão da persistência de Lemkin, foi integrada ao julgamento de Nuremberg como exemplo de crime de guerra.

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Ucranianos enterram corpos de civis mortos em massacre em Bucha Foto: Emilio Morenatti/AP

Em Nuremberg, o genocídio juntou-se a dois outros crimes recém-cunhados: agressão (iniciar uma guerra ilegal) e crimes contra a humanidade (ataques indiscriminados contra civis). E ainda assim, o julgamento por fim se absteve de mencionar o termo — em parte como resposta a preocupações dos americanos a respeito da possibilidade de acusações de genocídio contra os Estados Unidos e suas implicações relativas a soberania nacional. Essa omissão foi descrita por Lemkin como “o dia mais obscuro” de sua vida.

Em 1948, novamente por causa da insistência de Lemkin, a recém-criada Organização das Nações Unidas adotou a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. O documento comprometeu seus signatários a evitar e punir “atos cometidos com intenção de destruir, totalmente ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. (Os EUA, ainda preocupados com sua própria situação, só assinaram em 1988.) A convenção adotou uma definição muito mais estreita do que Lemkin havia pretendido — por exemplo, excluindo o genocídio cultural e a proteção política, social e a outros grupos.

Nas décadas que se seguiram, o termo caiu na obscuridade. Mas as atrocidades dos anos 90 em Ruanda e na ex-Iugoslávia ocasionaram seu ressurgimento. Notórios atos de horror praticado entre grupos vizinhos fizeram da palavra genocídio sinônimo de crime absoluto. O termo passou a capturar a atenção do público de uma maneira que as classificações de crimes de guerra e crimes contra a humanidade não conseguem.

Mas a alegação de genocídio não é uma acusação meramente retórica, é também jurídica. No contexto da Ucrânia, conforme invocado pelo presidente Volodmir Zelenski e Biden, a acusação jurídica dependerá de prova de que Vladimir Putin ou outros perpetradores indiciados tenham tido intenção de destruir os ucranianos enquanto grupo, totalmente ou em parte. Tribunais internacionais estabeleceram requisitos extremamente exigentes para provar essa intenção: em seu julgamento dos casos apresentados pela Bósnia e pela Croácia contra a Sérvia, a Corte Internacional de Justiça, em Haia, aceitou que a prova da intenção genocida poderia ser inferida de um padrão de conduta, mas descartou que essa intenção deva ser a única inferência que poderia ser razoavelmente inferida dos atos em questão.

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Esse requisito é impossível de se atender e muito difícil de provar, já que as ações humanas são invariavelmente orientadas por múltiplas intenções. Em pouquíssimos casos tribunais internacionais decidiram que havia ocorrido genocídio, e isso ocasionou acusações de inconsistência, e colocaram o conceito jurídico de genocídio num pedestal, o que Lemkin jamais pretendeu. Portanto, o massacre de mais de 8 mil homens e meninos muçulmanos em Srebrenica, na Bósnia, foi considerado genocídio, mas as mortes de centenas nas proximidades de Vukovar, na Croácia, não foram.

Mãe chora morte de filho em Kiev, Ucrânia Foto: Zohra Bensemra/REUTERS

Nós não sabemos se Biden falou da maneira que falou atendendo conselhos ou se sua fala foi mera expressão do ultraje gerado por imagens terríveis. Ele certamente sabe que o uso desse termo também é ativismo, um ativismo que atrai ampla atenção, concentrando apoio à causa ucraniana e atribuindo ainda mais infâmia sobre Putin e seus comparsas.

As palavras de Biden poderão surtir consequências não intencionadas, reforçando a noção de que crimes de guerra e crimes contra a humanidade são, de alguma maneira, menos terríveis do que o genocídio. Mas não são: o direito internacional não reconhece hierarquia entre horrores, e utilizar rótulos para descrever atos de atrocidade em massa tende à irrupção de desentendimento, por exemplo quando o presidente Emmanuel Macron prontamente discordou da classificação de Biden.

O uso da palavra “genocídio” também levanta expectativas, assim como o prospecto da decepção: uma decisão de uma corte internacional no sentido de que esse crime não ocorreu seria devastadora para as vítimas e beneficiaria quem argumenta que as alegações são exageradas. Usar o termo e depois não fazer nada para evitar horrores similares — como os que podem vir a ocorrer no leste da Ucrânia — prejudicará aqueles que possam fazer a alegação no futuro.

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Nos nossos tempos, não faltam acusações de genocídio: de furis no Sudão, de yazidis no norte do Iraque e na Síria, de rohingyas em Mianmar, de uigures na China. No ano passado, Biden se tornou o primeiro presidente americano a classificar o massacre de armênios em 1915, praticado pelo Império Otomano, como genocídio — um ato que involuntariamente abriu a porta para o uso do termo para classificar atos mais próximos de transgressões sistêmicas, em relação ao histórico de escravidão dos EUA e ao tratamento do país em relação aos nativos americanos.

Lemkin, que morreu em 1959, teria aprovado o uso da palavra na definição de todas essas situações e muitas outras, incluindo o aparente massacre em Bucha. Ele sem dúvida ficaria satisfeitíssimo por saber que seu termo entrou no léxico jurídico e transformou nossas consciências em relação ao que os Estados podem ou não fazer com os seres humanos. Ele ficaria horrorizado, porém, com as análises linguísticas, com a atenção roubada pelas batalhas a respeito de como classificar crueldades abjetas e com o fato do estabelecimento de requisitos tão exigentes para o significado jurídico do “genocídio” afastar o termo de sua concepção comum. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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