Em seus 160 anos de história, o Partido Republicano aboliu a escravidão, deu os votos necessários à aprovação da Lei dos Direitos Civis e ajudou a pôr um fim na Guerra Fria. Os próximos seis meses não serão tão gloriosos. Depois das primárias do Estado de Indiana, na terça-feira, ficou claro que o candidato republicano nas eleições presidenciais deste ano será o sujeito que disse que os EUA deveriam perseguir e matar parentes dos terroristas do Estado Islâmico, o homem que não teve pejo de estimular uso da violência por sua militância, o indivíduo que parece ter um fraco pelas teorias conspiratórias mais delirantes e defende políticas protecionistas e economicamente analfabetas, as quais, quando não carecem de um pé na realidade, tendem a redundar em prejuízo para os próprios americanos. Para o Partido Republicano e, sobretudo, para os EUA, as consequências podem ser desastrosas. Mesmo que seu balão comece a murchar a partir de agora, Trump já causou muito estrago e vai continuar a dar dor de cabeça nos próximos meses. O pior é que, numa disputa limitada a dois candidatos, suas chances de conquistar a Casa Branca são bem maiores que zero. Com a indicação assegurada, é até possível que Trump resolva baixar o tom. Os insultos talvez deixem de ser tão xucros, agora que ele precisa tentar atrair pelo menos alguns dos eleitores, principalmente do sexo feminino, que atualmente lhe devotam tanta ojeriza. Quem sabe o magnata comece a se comportar de forma mais digna, como convém a um candidato presidencial - se bem que nãofoi exatamente isso o que se viu no começo da semana, quando Trump acusou o pai de seu até então adversário Ted Cruz de ter estado com Lee Harvey Oswald alguns meses antes de Oswald assassinar John Kennedy. O que Trump dificilmente fará é mudar o norte político de sua candidatura. É cada vez mais evidente que o bilionário cultiva alguns rudimentos de visão de mundo, que lhe são caros. Falta coerência e fundamento a essas crenças, que Trump amarra com uma capacidade de se comunicar politicamente muito singular, típica do século 21, em que sobressai, em igual medida, o regozijo com o confronto e o desprezo pelos fatos - um talento provavelmente aperfeiçoado nos anos em que o milionário se dedicou à carreira de apresentador de reality shows. Seja como for, são crenças firmes e vêm de longa data. Além da fanfarronice. Tal visão de mundo nasceu, em parte, nos canteiros de obras dos edifícios que o pai de Trump construiu em Nova York nos anos 60. O magnata gosta de contar que passou muitas de suas férias de verão trabalhando ao lado de carpinteiros, encanadores, serventes de pedreiro, homens carregando pesadas estruturas metálicas para montar andaimes. Segundo ele, a experiência o pôs em sintonia com as preocupações dos americanos que se esfalfam em serviços brutos ou semiqualificados, trabalhadores de que os políticos do país já não se lembram. Isso explica seu inveterado nacionalismo econômico. Há décadas, Trump fala poucas e boas dos acordos comerciais assinados pelos EUA. No início dos anos 90, ele atacava o Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte). Hoje, diz que o tratado assinado por EUA, Canadá e México foi o pior acordo comercial da história do planeta. Da mesma forma, para Trump o déficit comercial americano sempre foi prova de que os outros países não jogam limpo, ou então, de que os diplomatas americanos não sabem negociar. Obviamente, alguém que pensa assim só pode achar que a assinatura de novos tratados comerciais seria um desastre e as empresas americanas deveriam trazer sua produção de volta ao país - do contrário, teriam de submeter-se à punição das tarifas de importação. Talvez Trump até se dispusesse a negociar as penalidades a que as “entreguistas” recalcitrantes estariam efetivamente sujeitas, mas o fato é que há aí uma maneira enraizada de ver as coisas. O bilionário é protecionista por convicção, não por oportunismo. E, a se julgar pelos resultados das primárias republicanas, pelo menos 10 milhões de eleitores concordam com ele. Na política externa, Trump mistura a insatisfação com os custos inerentes ao papel desempenhado pelos EUA no cenário mundial, algo que se tornou comum depois das intervenções no Iraque e no Afeganistão, com o desejo de fazer com que o país seja temido e respeitado. Analistas estrangeiros que se horrorizam com a ignorância geográfica e diplomática do magnata - que de fato não é pequena - talvez não se deem conta do princípio muito simples que o anima: Trump quer fazer com que os outros países arquem com todos os custos associados à proteção hegemônica que os EUA lhes oferece. Dos aliados, o bilionário quer contribuições mais polpudas, tanto para bancar as bases americanas instaladas em seu território quanto para equipar e remunerar as tropas nelas estacionadas. É um equívoco chamar isso de isolacionismo, já que Trump também propõe algumas aventuras no exterior, incluindo a ocupação do Iraque e a apropriação de suas reservas de petróleo. Trata-se antes de uma visão romana de política externa, em que ao restante do mundo cabe remeter tributos à capital e agradecer pelas guarnições. O tamanho do estrago. Para os que, como The Economist, acreditam nos ganhos da globalização e da ordem liberal liderada pelos EUA, essa é uma visão de mundo aterradora. Por sorte, Trump deve perder a eleição. Um candidato malvisto por dois terços dos americanos dificilmente conseguirá conquistar 65 milhões de votos, que é o total aproximado que o candidato vitorioso terá de somar. A proporção de mulheres que o desaprovam é ainda mais elevada. A questão é que isso não serve de muito consolo: mesmo sem vencer em novembro, a nomeação de Trump como candidato terá consequências nocivas. A convenção republicana, a ser realizada em Cleveland, entre 18 e 21 de julho, pode ser palco de conflitos violentos entre partidários de Trump e grupos de manifestantes que denunciam o que veem como discurso de ódio do bilionário. Os eleitores passarão os próximos seis meses ouvindo Trump acusar sua adversária democrata, Hillary Clinton, de vigarista e mentirosa. Mesmo que Hillary vença a eleição, muitos dos ataques colarão nela, enfurecendo os que se deixarem levar por eles e enfraquecendo a democrata. Aliados dos EUA acompanharão as pesquisas eleitorais com nervosismo: daqui até 8 de novembro, seja no Conselho de Segurança da ONU, seja em negociações bilaterais em Pequim, o fantasma de Trump assombrará todas as reuniões. Sempre fragmentado, o Partido Republicano corre o risco de sofrer uma ruptura para valer. Mesmo perdendo a eleição, Trump terá mostrado que, para quem almeja a indicação do partido, há um caminho que passa pela xenofobia e pelo populismo econômico. Todo alpinista sabe que o caminho mais seguro até o cume é aquele que já deu certo antes. Alguns republicanos dirão que, suavizada em seus aspectos mais insalubres, a mensagem de Trump pode garantir a vitória da próxima vez. Outros sustentarão que o milionário perdeu porque não é um conservador autêntico. Sem um consenso sobre o que deu errado, será difícil construir algo novo. E há ainda, obviamente, a possibilidade de que Trump vença a eleição. Hillary não é detestada por tantos americanos como o bilionário, mas seus índices de rejeição estão bem acima dos que os candidatos costumam apresentar. Se os atentados de Paris, em dezembro, impulsionaram a campanha de Trump, um novo atentado, ou outro acontecimento que dissemine o medo entre os americanos, pode muito bem fazer a balança dos votos pender para o seu lado. Embora remota, a possibilidade existe. É por isso que no triunfo de Trump estão presentes os ingredientes de uma tragédia para os republicanos, para os EUA e para o restante do mundo. / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER
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